A guerra fria estava em seus primórdios quando o sempre
bom e confiável diretor Henry Hathaway realizou Missão perigosa em Trieste
(Diplomatic
courier, 1952). Certamente, é um dos primeiros filmes a por em pauta o
de certo modo datado conflito ideológico entre Leste e Oeste. O que se vê é uma
aventura mirabolante e entretenimento de primeira ordem, com filmagens em
locações, assassinatos, desaparecimentos, mulheres fatais, correrias por cidades
europeias e um misterioso plano de expansão comunista elaborado pela União
Soviética. Tyrone Power interpreta Mike Kells, funcionário do corpo diplomático
do Departamento de Estado dos EUA. Escalado para missão de rotina na Europa, é,
por força das circunstâncias, envolvido numa trama de espionagem de proporções
internacionais. O ápice da aventura é na italiana Trieste, entreposto de agentes
secretos das mais variadas procedências e tendências. A ação contínua, as
reviravoltas e mulheres perigosas antecipam em dez anos as aventuras cinematográficas
de James Bond.
Missão perigosa em Trieste
Diplomatic courier
Direção:
Henry
Hathaway
Produção:
Casey
Robinson
20th
Century-Fox
EUA — 1952
Elenco:
Tyrone
Power, Patricia Neal, Stephen McNally, Hildegarde Neff, Karl Malden, James
Millican, Stefan Schnabel, Herbert Berghof, Arthur Blake, Helene Stanley,
Michael Ansara e os não creditados Sig Arno, Charles Bronson, Monique Chantal,
Peter Coe, Russ Conway, Lawrence Dobkin, Dabbs Greer, Lumsden Hare, Charles La Torre , Alfred Linder, Hugh
Marlowe, Lee Marvin, Tyler McVey, Nestor Paiva, Tom Powers, Stuart Randall,
Mario Siletti, Ludwig Stössel.
Henry Hathaway entre John Ford e o produtor Bernard Smith em 1961, durante as filmagens de A conquista do Oeste (How the West was won), realização conjunta de Ford, Hathaway e George Marshall. |
Do baú de
recordações da guerra fria emerge Missão perigosa em Trieste, provavelmente
uma das primeiras produções hollywoodianas a tematizar o conflito. Visto hoje,
60 anos após realizado, ainda prende a atenção, além de se revelar como
primo distante das aventuras cinematográficas de James Bond vindas à luz quando
a polarização entre “mundo livre” e “cortina de ferro" tinha plena sustentação. O tema está datado, é certo. Mas tal não significa o
envelhecimento dessa obra de Henry Hathaway como espetáculo fílmico. O
suspense, as intrigas, reviravoltas, perseguições, externas, interpretações, a
magnífica fotografia em preto-e-branco de Lucien Ballard e direção firme e
precisa são alguns atributos que mantêm de pé o interesse por Missão perigosa em Trieste.
Nos atuais tempos
de dissolução, como anda a reputação de Henry Hathaway? Ainda é lembrado? Seu
valor começou a ser notado na década de 30. Desenvolveu carreira discreta e
sólida nas temporadas seguintes, a ponto de estendê-la além dos
desmistificadores anos 60. Competente, talentoso e também seguro acerca do lugar
que ocupava na linha de produção do sistema de estúdios, Hathaway tinha ciência
do tamanho das suas possibilidades. Conhecia os terrenos nos quais pisava e não
ultrapassava limites. Não era um rebelde como John Ford. Este ficou famoso não
apenas pelas brigas com produtores, como pelas opiniões ferinas a eles
endereçadas. Porém, se Hathaway foi aparentemente um conformado, isso não lhe
retira o mérito de ser um dos grandes diretores da era dourada de Hollywood.
Por outro lado, quantos como ele conseguiram sobreviver no mesmo nível de
competência às ruínas desse período?
Os personagens de
seus filmes são, acima de tudo, indivíduos, não no sentido de seres que tudo
podem, apartados de situações e circunstâncias. Equiparam-se ao diretor em seus
atributos e qualidades. Fazem o que podem, sejam seres extraordinários ou comuns,
fincados nos limites das coordenadas existenciais que os amparam e absorvendo os
impactos de dilemas morais decorrentes das opções que tomam. São humanos, demasiadamente.
Sentem o peso dessa condição, ainda mais quando de suas decisões dependem a
segurança e o bem estar de terceiros. Dois bons exemplos dessa sina do
indivíduo, na filmografia de Hathaway, apresentam-se em Almas ao mar (Souls at sea, 1937) e Sublime devoção (Call Northside 777, 1948). No
primeiro, Taylor (Gary Cooper), em nome da sobrevivência de alguns náufragos, provoca
a morte de outros em igual situação, impedindo-os de entrar no escaler lotado, ameaçado
de ir a pique. No segundo, o repórter J. P. McNeal (James Stewart),
contrariando fatos que pareciam sólidos, prova, depois de muitas idas e vindas,
a inocência de um condenado.
Os indivíduos
muito humanizados de Hathaway estão distribuídos pelos mais diversos gêneros. Ele
transitou em praticamente todos, com destaque para melodramas — Amor sem fim (Peter Ibbetson, 1935), Torrentes de paixão (Niagara, 1953); aventuras
de capa e espada — O Príncipe Valente (Prince Valiant, 1954), A rosa negra (The black rose, 1950); guerra — A raposa do deserto (The Desert Fox: the story of Rommel, 1951), Uma asa e uma prece (Wing and a prayer, 1944); aventuras
coloniais — Lanceiros da Índia (The lives of a Bengal Lancer, 1935), A verdadeira glória (The real glory, 1939); policiais — O beijo da morte (Kiss of death, 1947), Sete ladrões (Seven thieves, 1960); thrillers
— A 23 passos da rua Baker (23 paces to Baker
Street, 1956), Envolto nas sombras (The dark corner, 1946); e westerns — Correio do inferno (Rawhide, 1951), Jardim do pecado (Garden of evil, 1954), Caçada humana (From hell to Texas, 1958), Os filhos de Katie Elder (The sons of Katie Elder, 1965), Nevada Smith (Nevada Smith, 1966), Bravura indômita (True grit, 1969).
Mike Kells, interpretado por Tyrone Power, é um espião improvisado |
Henry Hathaway é
um dos precursores da espionagem política no cinema. Antes de se arriscar com Missão perigosa em Trieste, conheceu o terreno com A casa da Rua 92 (The house on 92th Street, 1945) — veículo de
divulgação para o FBI, realizado com a colaboração da agência. O estilo
semidocumental desse filme voltaria em 13 Rua Madeleine (13 Rue Madeleine, 1947), sobre o envolvimento do Serviço Secreto dos
Estados Unidos com a resistência francesa no combate ao nazismo.
Tyrone Power é
Mike Kells, membro do corpo diplomático do Departamento de Estado em Missão perigosa em
Trieste. Enviado a Paris para uma atividade de
aparência rotineira, envolve-se em intriga de espionagem com proporções
internacionais. É conduzido por diversos meios às cidades de Salzburgo
(Áustria), Bucareste (Romênia) e Trieste (Itália) em busca das informações
sobre um plano de expansão comunista pela Europa, guardadas desde a União
Soviética pelo colega Sam Carew (Millican) e desaparecidas após seu assassinato
a bordo do Orient Express. Convencido pelo Coronel Mark Cagle (McNally) das
forças estadunidenses de ocupação em solo europeu, Kells se passa por espião na
tentativa de recuperar os documentos. Acredita que estão com a enigmática
Janine Betki (Neff), que Carew contactou no trem. A busca o leva a Trieste, entreposto
de espiões de todas as procedências e tendências. Agentes da KGB aí estão,
buscando as mesmas informações. Enquanto Kells levanta pistas, a fatal estadunidense
Joan Ross (Neal), sua companheira de viagem no trecho Paris-Salzburgo, reaparece
como agente a soldo dos soviéticos.
Difícil também
será acreditar em Janine. Q uando encontrada, apresenta-se como fugitiva da URSS e companheira de Carew.
As reviravoltas não param. Envolvem tentativas de assassinato e perseguições
por becos, ruínas, bares e vielas escuras. O relógio de Sam Carew surge como componente
fundamental da intriga. Em seu interior estão os dados que faltam à solução do
caso. Ao final, quase eliminado pela KGB e ciente da confiabilidade de Janine, Kells
consegue resgatá-la do inimigo. O filme termina com ambos estirados ao lado da
via férrea, apaixonados. Ele diz: “É a primeira vez que a vejo como garota”. Esse
comentário remete o espectador à comédia Ninotchka (Ninotchka, 1939), de Ernst Lubitsch, na qual Greta Garbo, uma
assexuada agente soviética em Paris, revela aos poucos sua porção feminina à
medida que é envolvida na sedução do bon
vivant capitalista vivido por Melvyn Douglas. O perfil, as roupas e o
sotaque de Janine lembram a personagem de Garbo. Porém, se Ninotchka é uma referência, O terceiro homem (The third man, 1949) é outra. As influências dessa obra mestra de Carol
Reed transparecem principalmente na composição, no enquadramento e na
iluminação.
Imagem promocional: Janine Betiki (Hildegarde Neff) e Mike Kells (Tyrone Power) |
Filmado em
locações (Salzburgo, Trieste, Veneza), Missão perigosa em Trieste valoriza esse
esforço de autenticidade via fotografia de Lucien Ballard. Seguramente, é um
dos trunfos do filme. O elenco também não deixa a desejar. O normalmente
menosprezado Tyrone Power (Inácio Araújo, crítico de cinema da Folha de São Paulo que o diga!) está convincente como espião
improvisado. Sem esquecer que o ator esteve bem sob as ordens de Henry King — Jesse James (Jesse James, 1939), O cisne negro (The Black Swan, 1942), O capitão de Castela (Captain from Castile, 1947) e O favorito dos Bórgia (Prince of foxes, 1947); Rouben
Mamoulian — A marca do Zorro (The mark of Zorro, 1940) e Sangue e areia (Blood and sand); Edmundo Goulding — O fio da navalha (The razor’s edge, 1946); e do próprio Henry Hathaway — O correio do inferno.
Na mira da arma, Mike Kells (Tyrone Power) e Janine Betki (Hildegard Knef, creditada como Hildegarde Neff) |
Patricia Neal e
Hildegarde Neff oferecem pelo Ocidente e Oriente, respectivamente, exemplos
cinematográficos bem acabados de mulheres fatais. Karl Malden está
particularmente divertido como o sargento Ernie Guelvada, um providencial anjo
protetor de Mike Kells. Em início de carreira aparecem os não creditados Lee
Marvin — policial em Trieste — e Charles Bronson — agente soviético que entra
mudo e sai calado.
Ernie Guevada (Karl Malden) e Mike Kells (Tyrone Power) |
Missão perigosa em Trieste não decepciona como filme de ação,
mistério e suspense, ainda mais se o espectador situá-lo devidamente à época em
que foi realizado. A encenação do jogo de gato e rato no Orient Express revela
os talentos da direção de Hathaway e da montagem a cargo do futuro realizador
James B. Clark. A perseguição ao táxi que conduz Kells a Trieste nada ficaria a
dever a Bullit (Bullit, 1968), de Peter
Yates, se essa fosse uma produção dos anos 50. O assassinato por atropelamento
de Cherenko (Linder), o vendedor de relógios, oferece bom momento de tensão em
filmagem noturna.
Janine Betki (Hildegard Knef, creditada como Hildegarde Neff) no perigoso jogo de espiões |
Num raro instante de
descontração, Kells — na plateia de uma casa noturna em Trieste — assiste a quadros
satirizando Carmen Miranda e Margo Channing. A primeira — contratada da 20th
Century-Fox, companhia produtora do filme — dispensa maiores comentários. A
segunda é a personagem de Bette Davis em A malvada (All about Eve, 1950), de Joseph L. Mankiewicz — um dos maiores sucessos
da empresa no período —, no momento em que pronuncia “Apertem os cintos, pois a
noite será turbulenta”. Esses famosos dizeres praticamente alertam o espectador
para a ação contínua de Missão perigosa em Trieste.
Roteiro: Casey Robinson, Liam O'Brien, baseados na novela Sinister errand, de Peter Cheyney. Música: Sol
Kaplan. Direção de fotografia (preto-e-branco): Lucien Ballard. Montagem: James
B. Clark. Direção de arte: John De Cuir,
Lyle R. Wheeler. Decoração: Thomas
Little, Stuart A. Reiss. Figurinos: Eloise
Jensson. Maquiagem: Ben Nye, Lynn F.
Reynolds (não creditado). Gerente de unidade de produção: Abe Steinberg (não creditado). Direção de
segunda unidade: Stanley Goldsmith (não
creditado), Bert Leeds (não creditado). Assistentes de direção: Gerd Oswald (não creditado), Don Torpin (não
creditado). Contrarregra: Don B.
Greenwood (não creditado). Som: W.D.
Flick, Roger Heman Sr. Efeitos especiais fotográficos: Ray Kellogg. Direção de guarda-roupa: Charles Le Maire. Supervisão de
guarda-roupa: Sam Benson (não creditado). Aprendiz
de montagem: Lyman Hallowell (não creditado). Direção
musical: Lionel Newman. Orquestração: Edward B. Powell. Dublê de Tyrone Power: Jack Clinton (não creditado). Sistema de
mixagem sonora: Western Electric Recording. Tempo
de exibição: 97 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2012)
Eugenio,
ResponderExcluirO diretor Hathaway, depois de Gordon Douglas, foi o diretor de quem mais vi filmes, ao lado de Raoul Walsh.
Como iniciei no cinema cedo e o genero da década de 1950 era o western, pude então me abastecer de fitas deste diretor, assim como de muitos outros.
Entretanto, mesmo vendo uns 25 filme do Hathaway, este da postagem eu não conheço. E, por coincidencia, foi editada há pouco tempo uma postagem do Henry King, onde o ator Tyrone Power foi o meado da escrita, pois este houvera sido lançado pelo diretor King.
Assim, falamos muito do ator que, também estrela esta fita da postagem, agora sob a direção do bom Hathaway.
Foi este um dos nomes mais citados na midia cinematográfica entre os anos 40 a 1950/60, fazendo filmes de gêneros variados, porém se especializando em faroestes e filmes de aventura.
Costumo dizer que Meu Coração Tem Dois Amores/58, foi o melhor filme sob a direção do Henry Hathaway que eu vi.
No entanto, não me esquivo de ressaltar que pode este ter sido esta preferencia minha por ser este um filme que me tocou bastante. Isso não somente pelo tema como pelas atuações de Stephen Boyd e Susan Hayward.
Tenho convicção, outrossim, que o Hathaway fez fitas ótimas e que podem superar o meu predileto citado acima, como alguns de seus westerns ( Jardim do Pecado/54, Furia no Alaskca/60, Os Filhos de Kate Elder/65, Bravura Indomita/69, dentre muitos outros mais, e também fitas de outros generos como; O Beijo da Morte/47, O Filho dos Deuses/40 e Torrentes de Paixões/53, apenas para ilustrar.
Infelizmente estes generos de fitas estão extintos e temos de nos contentar em assistir ao que já foi feito, que é também uma jornada dificil, já que as TV não se permitem exibir coisas raras e belas como estas, assim como temos dificuldades para encontra-las em outros segmentos.
Ficamos então com as lembranças e as palavras de saudade que podemos soltar em momentos como o desta postagem.
jurandir_lima@bol.com.br
Caro Jurandir,
ExcluirFiz umas contas, por alto. Sei que o Henry Hathaway é responsável por 67 filmes, pelo menos os títulos em que foi oficialmente creditado. Ele começou a dirigir em 1930, num filme chamado “Por detrás da máscara” (“Behind the make-up”). Neste título, estão creditados os diretores Robert Milton e Dorothy Arzner. Mas Hathaway também participou da realização, junto ao também não creditado Rollo Lloyd, do qual nunca ouvi maiores referências. Do Hathaway devo ter visto uns 30 títulos, até o momento. Então, os diretores de quem mais vi filmes são John Ford – tudo o que está preservado – Charles Chaplin – tudo, também – Allan Dwan e David Wark Griffith. Com relação ao Griffith, considero-me abençoado. Passo dos cem títulos e devo beirar os duzentos, graças à gigantesca mostra dedicada ao cineasta que percorreu o Brasil em 1985.
Jurandir, “Missão perigosa em Trieste” é um filme delicioso. Procure vê-lo. Garanto que não irá se arrepender.
Abraços.