Nestes tempos de crescente paranoia estadunidense diante
da ascensão do fundamentalismo islâmico e de suas consequências explosivas,
Hollywood pouco tem flertado com motivos de procedência árabe. Mas, nesse
campo, os anos 40, 50 e 60 foram pródigos: como se abusou de Scheherazade e seus
contos das Mil e uma noites. Exemplo desse período fértil é Ali
Babá e os quarenta ladrões (Ali Baba and the forty thieves, 1944),
dirigido pelo pau-para-toda-obra Arthur Lubin. Pouca semelhança há entre a
realização e aquilo que ouvia o Califa de Bagdad. Os personagens do título
foram reinventados e retorcidos pela máquina de produção hollywoodiana.
Transformaram-se em indivíduos da ocidentalidade moderna. São paladinos da
justiça na luta contra o despotismo mongol. Até parece que Robin Hood e seus merry men foram transportados aos
desertos árabes e equipados com turbantes e cimitarras. É um exercício
rotineiro que pode agradar ao espectador pouco exigente, ainda mais nos dias
chuvosos. Por outro lado, é sempre um prazer ver Andy Devine — o cocheiro Buck
de No
tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford — em
ação. Mesmo com seu personagem Abdullah tecendo comentários no mínimo pouco
gentis às mulheres, ainda mais nestes bicudos tempos de correção política.
Ali Babá e os
quarenta ladrões
Ali Baba and the forty thieves
Direção:
Arthur Lubin
Produção:
Paul Malvern
Universal Pictures
EUA — 1944
Elenco:
Jon Hall,
Maria Montez, Turhan Bey, Andy Devine, Kurt Katch, Frank Puglia, Fortunio Buonanova,
Moroni Olsen, Ramsay Ames, Chris-Pin Martin, Scotty Beckett, Yvette Duguay,
Noel Cravat, Jimmy Conlin, Harry Cording e os não creditados Richard Alexander,
Jerome Andrews, Robert Barron, Alphonse Berg, Eric Braunsteiner, Ed Brown, John
Calvert, Dick D'Arcy, William 'Wee Willie' Davis, Dick Dickinson, Rex Evans,
Martin Faust, Alex Goudavich, Hans Herbert, David Heywood, James Khan, Ethan
Laidlaw, Pierce Lyden, George Martin, Don McGill, Art Miles, Belle Mitchell,
Theodore Patay, Joey Ray, Pedro Regas, Angelo Rossitto, Charles Wagenheim,
Norman Willis, Harry Woods, Ed Agreste, Fred Cavens, Alma M. Pappas, Alex
Romero.
O diretor Arthur Lubin |
Não é uma
aventura das Mil e Uma Noites! Mas não deixa de ser uma aventura das Mil e
Uma Noites! Explica-se a controvérsia: esta adaptação cinematográfica
de Ali
Babá e os 40 ladrões não guarda relações com o que nos contam as
histórias inventadas pela mítica Scheherazade. Permanecem alguns ingredientes: os
40 ladrões e Sésamo, a caverna mágica na qual aqueles ocultavam os produtos de
suas pilhagens. Todo o resto é invenção hollywoodiana com incorporação de elementos
de outros contos das Mil e Uma Noites aliada à franca inspiração
em histórias ocidentais como a de Robin Hood. Sim, os celerados do título
lembram muito os merry men da
britânica floresta de Sherwood. Pelo menos nos formatos que os tornaram
familiares a um sem número de leitores e espectadores de cinema. Os 40 ladrões
são cavaleiros gentis e alegres; cantam enquanto cavalgam e demonstram destreza
na coreografia de cimitarras. Também são justiceiros distributivistas: roubam
dos ricos para dar aos pobres. Se Robin Hood e os merry men formavam a única força organizada de resistência à
tirania do usurpador príncipe João Sem Terra, os 40 ladrões da história de
Arthur Lubin cumprem idêntico papel. Durante mais de 10 anos são apenas eles
que se levantam contra o despotismo e crueldade do invasor — o mongol Hulagu
Khan (Katch) que tomou Bagdad das mãos do califa Hassan (Olsen) e implantou no
lugar um regime de terror e sangue.
Andy Devine interpreta Abdullah, guardião e preceptor de Ali Babá |
A resistência
oferecida pelo Califa dura pouco. Traído pelo auxiliar — o príncipe Cassim (Puglia)
—, Hassan e seus seguidores são mortos em emboscada da qual escapa apenas o
herdeiro do trono, o menino Ali (Becket). Sozinho, vagando pelo deserto, cai nas
graças de Babá (Bonanova) e seus 40 ladrões. Recebe o nome de Ali Babá e a
proteção de Abdullah (Devine). Contrariando as histórias das Mil e
Uma Noites, Ali Babá (Hall quando adulto) deixa de ser um pobre
comerciante para se converter no legítimo herdeiro do trono de Bagdad. Os
acontecimentos se precipitam quando reencontra Amara (Montez; Duguay, quando criança),
seu amor de infância e filha do traidor Cassim, oferecida pelo pai em casamento
ao tirano Hulagu Khan.
As crianças Ali (Scotty Beckett) e Amara (Yvette Duguay) |
O traidor príncipe Cassin (Frank Puglia) apresenta a filha Amara (Maria Montez) ao usurpador mongol Hulagu Khan (Kurt Katch) |
Ali Babá e os 40
ladrões pertence a um tempo no qual Hollywood flertava sem pudor
com o exotismo árabe, buscando nas fontes das Mil e uma noites e na
religiosidade do Islã motivos para incontáveis produções. Uma época bastante
diferente da atual, quando o fundamentalismo islâmico e suas células
terroristas se tornaram fontes de permanente obsessão para a política externa
da Casa Branca.
A princesa Amara (Maria Montez) e Jamiel (Turhan Bey), inesperado aliado mongol |
O ponto de vista
francamente ocidental pontua na história. Afinal, credibilidades históricas,
geográficas e antropológicas nunca foram preocupação de Hollywood. Bastava
apenas o que parecia exótico aos produtores e roteiristas, mais o tratamento
mirabolante e rocambolesco que transparecia nas telas. As filmagens, levadas a
termo nos desertos do estado de Utah, abusam das back projections e revelam narrativa pontuada por uma sucessão de
clichês. Destacam-se aqueles nos quais os personagens, principalmente Jamiel
(Bey) — mongol admirador de Ali Babá e convertido à sua causa —, fazem-se
passar por crias do credo liberal e deitam falação sobre liberdade e dignidade pessoal
como se fossem indivíduos ocidentais e modernos. Ao final, o povo se levanta
contra os mongóis e toma de assalto o palácio de Hulagu Khan enquanto Jamiel desfralda a bandeira do califado restituído no alto das torres. E não há como esquecer os comentários eróticos oferecidos por Amara nas cenas de banho.
Amara (Maria Montez) e Jamiel (Turhan Bey); Abdullah (Andy Devine) e Ali Babá (Jon Hall) |
No entanto,
apesar de tanta inverossimilhança, dos clichês e da direção burocrática, se o
espectador fechar os olhos a tudo isso terá em Ali Babá e os 40 ladrões
motivo de sobra para uma razoável diversão.
Ali Babá (Jon Hall) encobre a identidade de Ali, herdeiro do califado |
Nos tempos de
agora, dominados pela praga da correção política, o que teria acontecido ao
comentário que Abdullah tece ao que parece ser uma incompreensível fixação de
Ali por Amara?: “Tudo isso por uma mulher? Por mil peças de ouro pode-se comprar
a melhor mulher do mercado. Por seu país ou por seu estômago um homem pode dar
a sua vida... e até por seu cavalo. Mas jamais por uma mulher”.
Roteiro: Edmund L. Hartmann. Produção executiva: Jack J. Gross (não creditado). Música: J. Keirn Brennan. Direção musical: Edward Ward. Orquestração: Harold Zweifel (não
creditado). Direção de fotografia
(Technicolor): W. Howard Greene, George Robinson. Direção de Technicolor: Natalie Kalmus. Associado à direção de Technicolor: William Fritzsche. Montagem: Russell F. Schoengarth. Direção de arte: John B. Goodman,
Richard H. Riedel. Decoração:
Russell A. Gausman, Ira Webb. Maquiagem:
Jack
P. Pierce. Figurinos:
Vera West. Assistente de direção:
Charles S. Gould. Direção de segunda
unidade: Ray Taylor (não creditado). Direção
de som: Bernard B. Brown. Técnico de
som: Robert Pritchard. Efeitos fotográficos
especiais: John P. Fulton. Consultoria
técnica: Jamiel Hasson. Direção de
diálogos: Stacy Keach. Coreografia:
Paul Oscard. Direção musical: Edward
Ward. Instrutor de esgrima: Fred
Cavens (não creditado). Expert em
cavalos: Jimmy Phillips (não creditado). Joias: Eugene Joseff (não creditado). Dublê: David Sharpe (não creditado). Companhia de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 87 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2001)
Eugenio,
ResponderExcluirApesar de conhecer o diretor de nome, pois sempre li sobre ele criticas sem máculas, jamais vi um filme de sua criação.
Mas posso imaginar que passeio ao mundo encantado das Arábias o Lubin carregou seus espectadores com Ali Baba E Os Quarenta Ladrões.
Com certeza que foi um divertimento que não teria pagamento que sobrepujasse ver algo tão delicioso, divertido e muito mágico.
Foi um pouco distante desta época do Lubin, mas no Nathan Juran nos arrastou a belas fantasias também com seu Simbad e a Princesa/58, uma aventura deslumbrante, cujo maior responsável por tantos truques e beleza na criação do filme foi o processo de trucagem Dynatation.
Tres anos depois o mesmo Juran nos deu outro memorável presente: O Matador de Gigantes, dentro do mesmo tema e uma aventura que a todos deixavam de bocas abertas com tanta imaginação e criatividade e com o Kerwin Matheus como um verdadeiro e convincente mocinho. Lindos, lindos!
Hoje fazem filmes muito diferentes e muito mais fáceis com a computação muito à disposição e com muitas possibilidades de invenções.
Queria ver era se fazer um filme quase que inteirinho na base do quadro a quadro. E eles saíam tão gostosos de ver que não nos decepcionamos com eles vendo o que fazem hoje.
FUGINDO UM POUCO DO TEMA EM PAUTA:
Sabe, amigo Eugenio, recordo que todas as companhias de cinema, como a Columbia, a Fox, a Paramont, a Warner Bros, A Metro e todos os demais tinham seus processos de filmagem e de coloração.
Lembra que existia a Columbiacolor? Que somente a Columbia utilizava?
Recorda da Cor de Luxe da Fox? E do Warnecolor da Warner?
Já a Paramont tinha seu technicolor exaltado brilhantemente por seu processo Vista Vision. Era como se um filme visto na TV no processo HD hoje em dia.
E ainda existis o Trucolor, da Imperial. Havia o Magicolor de fitas russas. O NewEastman, que a Cia American utilizava, dentre muitos outros processos de cores.
Claro que sem esquecer o Metrocolor da Metro e o Cine Color da Republic.
Ainda existiam o Gevacolor da Condor e mais o PatheColor, o Magna Color e o Wide Vison COlor, o Specta Color que também eram cores da Imperial.
Não deixar de enumerar o Ferranicolor, o Tacking Color, O Ansco Color e o belo Eastmancolor.
Desculpem pulo fora da linha da Postagem. Porém, o desejo de falar de cinema é sempre maior que tudo.
jurandir_lima@bol.com.br
Olá, Jurandir.
ExcluirConheço mais filmes de Nathan Juran que de Lubin. Evidentemente, vi "O matador de gigantes", de Juran, quando deveria estar com os meus 7 ou 8 anos, por volta de 1963/4. Até hoje tenho algumas cenas na memória, de tão marcantes eram. De Nathan Juran também vi o delicioso - ao menos para a época - "Os primeiros homens na lua".
Tenho lembranças de todos esses processos de cor que enumera. Vez ou outra ainda me deparo, no caso de alguma revisão, com velhos filmes em Warnercolor, por exemplo. Outro processo,muito utilizado na Europa, era o Agfacolor. Nos meus tempos de Cine Clube cheguei a exibir alguns filmes russos coloridos pelo processo do Magicolor. Hoje, está tudo mais pasteurizado.
Abraços.
Eugenio,
ResponderExcluirPerfeito, perfeito. O Agfacolor, que não citei, mas o amigo, que é tão observador quanto eu, não o deixou de lado.
Valeu.
jurandir_lima@bol.com.br
Provavelmente há muitos outros processos ocultos pela muralha do esquecimento, Jurandir. Eram muitos.
ExcluirAbraços.
Estupenda entrada Eugenio y fabulosas fotografías,es un placer llegar y disfrutar del cine a través de tus letras...Como siempre te mando abrazos y dulce beso...!!! :)
ResponderExcluirMuchas gracias, Maria. Este es un tipo de cine que brilló mucho en los días de mi infancia.
ExcluirSaludos y besos.
He vuelto a leer tu reseña y cada vez que la leo sigo impresionada de lo maravilloso de tu pluma...Gracias cielo,es un placer llegar y comentar ¡Abrazos y un muy dulce beso...!!!
ResponderExcluirQuedo muy honrado y satisfecho por su retorno a este texto, Maria Del Socorro. Muchas gracias por las buenas impresiones que siente de mi pluma. Sin embargo, en lo que concierne a este caso particular, usted es una mestra y su blog viene funcionando, actualmente, como fuente de inspiración.
ExcluirAbrazos y besos