Por onde passou, A comilança (La grande bouffe/La
grande abbuffata, 1973) não deixou pedra sobre pedra. O filme-manifesto
de Marco Ferreri iniciou carreira "rasgando" o Festival de Cannes de
1973: de um lado, aplausos; de outro, execrações. E assim seguiu enquanto cumpriu
carreira. No Brasil, sofreu seis anos de interdição. Foi liberado em 1980 —
ocasião em que o assisti —, no mesmo caudal que trouxe a público outras
realizações radicais e transgressoras que escandalizaram os anos 70, todas
proibidas pela nossa censura. Mantida a sua especificidade, a cáustica comédia
de Marco Ferreri poderia fazer dobradinha perfeita com Saló ou os 120 dias de Sodoma
(Salò
o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo Pasolini. Mas, aqui,
este somente receberia salvo conduto em 1989. Polemista e provocador, Ferreri
encena uma jornada sem retorno de seus desencantados e decadentes personagens
por caminhos pavimentados de niilismo e muita escatologia fétida.
Definitivamente, não é filme para certinhos e moralistas. Mas é um prazeroso,
divertido e, ao mesmo tempo, sério desafio para espectadores abertos a qualquer
tipo de profanação. Se pudessem tomar assento entre eles, Karl Marx e Sigmund
Freud certamente sorririam satisfeitos, de orelha e orelha, com esta alegórica
revolução estomacal que reencena, em tempos de afluência e consumismo burguês,
a decadência e queda do Império Romano numa mansão parisiense. É um filme profético. Só ganhou mais atualidade com
a passagem do tempo. O texto a seguir foi escrito há 35 anos.
A comilança
La grande bouffe/La grande abbuffata
Direção:
Marco Ferreri
Produção:
Vincent Malle
Mara Films, Les Films 66 (Paris),
Capitolina Produzzioni Cinematografiche (Roma)
Itália, França — 1973
Elenco:
Ugo Tognazzi, Philippe Noiret,
Michel Piccoli, Marcello Mastroianni, Andréa Ferréol, Henri Piccoli, Maurice
Dorléac, Simon Tchao, Louis Navarre, Bernard Ménez, Cordelia Piccoli, Jérôme
Richard, Patricia Milochevitch, James Campbell, Eva Simonnet, Solange Blondeau,
Florence Giorgetti, Michèle Alexandre, Monique Chaumette, Maurice Teynac,
Gérard Boucaron, Anette Carducci, Margaret Honeywell, Giuseppe Maffioli e a não
creditada Rita Scherrer.
Polemista, provocador, transgressor: o diretor Marco Ferreri |
Os personagens
principais são identificados pelos prenomes dos atores que os interpretam:
Marcello (Mastroianni), Michel (Piccoli), Philippe (Noiret), Ugo (Tognazzi) e
Andréa (Ferréol). O quinteto marca encontro com a morte em celebração do vazio
existencial nesta polêmica e provocadora realização de Marco Ferreri. A
comilança cindiu o Festival de Cannes de 1973. Uma ala o aplaudiu
enquanto outra o execrou. Não foi diferente nos demais círculos. Compõe com O
último tango em Paris (Le dernier tango à Paris, 1972), de
Bernardo Bertolucci; O império dos sentidos (Ai no
corrida, 1976), de Nagisa Oshima; e a "trilogia da vida" de
Pier Paolo Pasolini — Decameron (Il
Decamerone, 1972), Os contos de Canterbury (I
racconti di Canterbury, 1973), As flores das 1001 noites (Il
fiore delle mille e una notte, 1974) — um conjunto ímpar
de realizações que escandalizou os anos 70. São obras transgressoras e radicais.
Quanto a isto, A comilança endereça visão nada complacente aos rumos da vida
numa civilização que se locupleta nas armadilhas da aquisição, do consumismo e
descarte desenfreados, cada vez mais contínuos e acelerados, de bens materiais.
Os títulos referidos avançam do niilismo (os trabalhos de Bertolucci, Ferreri e
Oshima) ao bom humor irreverente (a trinca de Pasolini). Nenhum estreou de
imediato no Brasil. Proibidos pela censura do regime militar, tiveram que
aguardar a luz verde da abertura política do começo dos 80. La
grande bouffe permaneceu seis anos interditado entre nós.
Andréa (Andréa Ferréol) e Michel (Michel Piccoli) |
No sentido mais
lato A
comilança segue as pegadas do iconoclasta jovem Luís Buñuel,
declaradamente um dos cineastas preferidos de Marco Ferreri. Este, como o
mestre espanhol, tem a burguesia na alça de mira. Desfere crítica ácida, desencantada
e despudorada à classe síntese da civilização moderna. Aliás, o filme é mais
que um simples libelo antiburguês. A direção evita se perder no universo das
aparências. Persegue o mal estar dos valores estabelecidos e a falta de sentido
decorrente de uma determinada condição de vida.
Andréa (Andréa Ferréol) e Philippe (Philippe Noiret) |
A concepção
fílmica de A comilança não apresenta ousadias formais. A narrativa simples
vai direto ao xis da questão. Não se perde no atoleiro das meias medidas.
Marcelo, comandante de avião; Ugo, restauranteur;
Michel, produtor musical; e, Philippe, juiz de direito, são amigos bem situados
econômica e socialmente. Num fim de semana resolvem abdicar de seus afazeres e
se reúnem na mansão desabitada da família de Philippe, arredores de Paris. Aí —
como se fossem membros enfastiados da aristocracia dos tempos da decadência do
Império Romano —, entregam-se ao que bem sabem fazer: o orgiástico exercício da
gula; uma comilança sem limites que oculta um pacto de suicídio — palavra em
nenhum momento pronunciada. Pratos finíssimos, preparados pela renomada Casa
Fouchon, de Paris, são degustados sem deixar sobras. O ato de comer é
transformado em ritual de emoção exclusiva, interrompido apenas para dar lugar
a outra degustação, a da sexualidade, para a qual se servem três prostitutas e
uma professora primária, Andréa — das mulheres, a única que permanece na mansão
até o fim. Cabe a ela papel paradoxal: é um anjo, ao mesmo tempo da guarda e exterminador.
Estimula a orgia e presencia as sucessivas mortes de cada membro dos afluentes
comensais.
Marcello (Marcello Mastroianni) e uma das "bacantes" |
Michel (Michel Piccoli) e uma acompanhante |
Philippe (Philippe Noiret), Michel (Michel Piccoli) e Ugo (Ugo Tognazzi) |
O que pretende
Ferreri com esse argumento provocador? A radicalização do ato de comer é limitada
apenas à ingestão (consumo) desenfreada, irracional, de requintados pratos (bens).
O sexo praticado nos entremeios das degustações jamais chega aos estertores do
prazer liberador. É da pulsão de morte que trata o filme, tanto existencial
quanto física. Marcello, Ugo, Philippe e Michel são espectros de homens
reduzidos aos aspectos sensoriais ou primários, os mais básicas da existência.
Vivem num universo mecanizado, desumanizado, sem sentido, desesperançado,
angustiado, marcado por fastio, tédio, niilismo, alienação e ausência de racionalidade.
O espectador se posta diante de um cansaço de civilização conjuntamente
experimentado. Presencia e sente uma situação de pânico existencial para a qual
estão suspensos quaisquer mecanismos de controle. Liberdade — para o grupo —
significa comer/consumir e defecar/descartar até o derradeiro e fatal fim. O
desaguadouro de todo esse desatino, o vaso sanitário/planeta, não possui calado
suficiente para suportar toda a produção que lhe é atirada sem a menor
parcimônia. Numa sequência cômica explode, transformando tudo em fétido
atoleiro. Nesse momento, A comilança atinge o máximo de sua
escatologia desesperançada. A seguir vem a morte — o simbólico fim da burguesia
(e da civilização ocidental), predestinada a se afogar no próprio lixo que
produziu, aqui traduzido por um mar misturado de fezes, suco gástrico e urina.
Andréa (Andréa Ferréol), Michel (Michel Piccoli), Philippe (Philippe Noiret) e Ugo (Ugo Tognazzi) |
Philippe (Philippe Noiret), Ugo (Ugo Tognazzi) e Andréa (Andréa Ferréol) |
A comilança é uma epopeia
desencantada. Começa na mesa, frustra-se na cama e termina inevitavelmente no
vaso sanitário, escoadouro alegórico do consumismo, do desperdício e do
irracionalismo. Ferreri construiu um ótimo, corrosivo e inteligente filme,
mesmo que se perca, às vezes, no marasmo e na repetição. Mas qualquer senão é
anulado pelo elenco afinado e entrosado. Nele se destaca Andréa Ferréol,
gordinha maravilhosa e desinibida, que não teve medo de expor, com sua nudez,
um tipo pouco apregoado de sensualidade.
Direção de fotografia (Eastmancolor,
Panavision): Mario Vulpiani. Roteiro e adaptação: Marco Ferreri,
Rafael Azcona. Montagem: Claudine
Merlin, Gina Pignier. Preparação de
alimentos: Fauchon. Consultoria
gastronômica: Giuseppe Maffioli, assistido por Jacques Quelennec. Diálogos: Francis Blanche. Administração da produção: La Société
du Film. Música: Philippe Sarde. Músico: Michel Piccoli (piano). Direção musical: Alain Coiffier, Hubert
Rostaing. Engenharia musical:
William Flageollet (não creditado). Delegado
de produção: Jean-Pierre Rassam. Assistentes
de direção: Enrique Bergier, Jacqueline Perrier, Rémy Duchemin, François
Lavigne. Operador de câmera:
Pascuale Rachini. Gerente de produção:
Alain Coiffier.Gerente de unidade de
produção: Ilya Claisse. Decoração e
desenho de produção: Michel de Broin. Direção
de arte: Claude Suné. Figurinos:
Gitt Magrini. Engenheiro de som:
Jean-Pierre Ruh. Assistentes de câmera:
Yves Pouffary, Jacques Dorot. Fotografia
de cena: Bernard Prim. Assistente de
decoração: Maurice Sergent. Continuidade:
Claude Sune. Maquiagem: Jacky
Nouban, Alfonso Gola. Guarda-roupa: Geneviève
Tonnelier, Muriel Ghene. Contrarregra:
Michel Sune, Roger Jumeau. Chefe eletricista: Jean-Louis Dastugue. Chefe maquinista: Ferdinand Rocquet. Efeitos especiais: Paul Trielli. Administração do estúdio: Ilya Claisse. Administração adjunta: Volker Lemke, Henri Laurent, Claude Parnet. Administração: Colette Suder. Secretária de produção: Annie Cabat. Assistente de som: Michel Laurent, Jean
Fontaine. Assistentes de montagem:
Monique Prim, Laurence Lemaire. Material
de cozinha: Becuwe Thomselle. Tempo
de exibição: 125 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1980)
Nossa! Fiquei chocada...deve ser maravilhoso!
ResponderExcluirUm abraço, Eugenio. Bjs.
É uma daquelas películas que podem ser consideradas como necessárias no registro social e histórico de um determinado tempo, Sandra. Nestes aspectos, é, como foi frisado mais ao alto, uma película-manifesto. Ainda é fundamental.
ExcluirAbraços e beijos.