Contemporâneo de Corações e mentes (Hearts
and minds, 1974), de Peter Davis — e tão vigoroso e explosivo na
denúncia como esse filme —, é o documentário de Barbara Kopple, Harlan
County: tragédia americana (Harlan County U.S.A.), de 1976. Causou
sensação no Festival de Cinema de Nova York e foi premiado com o Oscar de
Melhor Documentário Longo. Conheço muitas realizações do gênero, originalmente
produzidas para o cinema. Mas a obra de Barbara Kopple está, sem dúvida, entre
as melhores. Acompanha, em formato de crônica, a luta dos mineiros da Brookside
Mine no Condado de Harlan — bastião de miséria e exploração típicas do terceiro
mundo, encravado nos liberais, igualitários e democráticos EUA — pela conquista
dos mais básicos direitos trabalhistas. Apesar das ameaças sofridas, diretora e
equipe finalizaram um produto de comovente autenticidade, estruturado em
linguagem livre e pouco comum aos documentários engajados. Nem a precária avaliação
política dos mineiros e da realizadora sobre os fatos em tela chega a
comprometer a força do trabalho. A apreciação a seguir foi escrita em 1979.
Harlan County:
tragédia americana
Harlan County U.S.A.
Direção:
Barbara Kopple
Produção:
Barbara Kopple
Cabin Creek Film
EUA — 1976
Elenco:
Vivendo seus próprios papéis —
Norman Yarborough, Houston Elmore, Phil Sparks, John Corcoran, John O'Leary,
Donald Rasmussen, Hawley Wells Jr., Tom Williams, Chip Yablonski, Ken
Yablonski, Logan Patterson, Harry Patrick, Mike Trbovich, Bernie Aronson, Guy
Farmer, Nimrod Workman, Bessie Lou Cornett, Jerry Wynn, Bob Davis, Lois Scott,
Joe Dougher, Jerry Johnson, Sudie Crusenberry, Dorothy Johnson, Betty Eldridge,
Ron Curtis, Bill Doan, Phyllis Boyens, Florence Reece, E. B. Allen, Jim Thomas,
Mickey Messer, Nanny Rainey, Tom Pysell, Tommy Fergerson, Bill Worthington,
Crystal Fergerson, Barry Speilberg, Polly Jones, Diane Jones, Otis King, Mary
Lou Fergerson, W. A. 'Tony' Boyle, Basil Collins, Carl Horn, Lawrence Jones,
John L. Lewis, Arnold Miller, William Simon, Richard Trumka, Billy G. Williams,
Joseph Yablonski, Barbara Kopple.
Barbara Kopple, realizadora de Harlan County: tragédia americana |
O documentário Harlan
County U.S.A. questiona duramente os mitos da formação dos Estados
Unidos: liberdade, igualdade perante a lei, democracia e terra das
oportunidades. Apresenta, em forma de crônica, a campanha em prol do
reconhecimento de direitos essenciais desencadeada pelos mineiros de carvão da
Brookside Mine, Condado de Harlan, sudeste do estado do Kentucky. O
empreendimento é possessão da Eastover Mining Company, subsidiária da Duke
Power. Os trabalhadores tiveram, ao longo de muitos anos, negadas todas as prerrogativas
básicas a um regime capitalista e democrático que se preze. Não eram alcançados
pela assistência médica; sequer lhes era permitida a organização sindical. Tais
condições permaneceram inalteradas por 40 anos, apesar de toda a mobilização
desse setor do proletariado estadunidense durante o período. O passado dos
mineiros de Harlan County é ilustrado por lutas e reivindicações em prol do cumprimento
dos ordenamentos trabalhistas mais elementares.
O documentário acompanha treze meses de greve dos mineiros de carvão da Brookside Mine |
O foco principal
do filme de Barbara Kopple é a greve de 13 meses deflagrada pelos mineiros
entre 1973 e 1974. A origem do movimento é a rebelião que explodiu em agosto de
1972. Mas o espectador, particularmente o não estadunidense — pouco
familiarizado com as distantes questões sindicais da terra do Tio Sam —, não é
atirado de supetão no turbilhão dos dramáticos acontecimentos. Uma
retrospectiva sobre as condições de vida e trabalho em Harlan County, desde os
anos 30, ajuda-o na compreensão dos fatos. Desde essa época o lugar ficou
afamado como “condado sangrento” ou Bloody Harlan, por causa da primeira
tentativa de greve, brutalmente sufocada, quando até os encapuzados da
Ku-Klux-Klan se juntaram aos algozes habituais: patrões, capatazes e polícia.
Mineiros da Brookside Mine, Condado de Harlan, Kentucky: 40 anos de luta pela conquista dos mais básicos direitos trabalhistas |
Cineasta radicada
em Nova York, Barbara Kopple não teve, de início, a intenção de realizar um filme.
Quando se dirigiu ao Condado de Harlan o fez na condição de participante da
campanha em prol da democratização do Sindicato dos Mineiros, movimento
deflagrado pelo assassinato do líder trabalhista Yablonski, fulminado ao lado
da mulher e filha, acontecimento que ganhou ampla repercussão. O projeto de um
filme sobre Harlan County somente tomou forma depois que a diretora sentiu a
temperatura explosiva do lugar. O que seria uma rápida visita se converteu em
permanência de quatro anos na localidade, período no qual conviveu em
proximidade aos mineiros, testemunhando-lhes os anseios sentidos nos círculos familiares
e profissionais. Em piquetes, reuniões, assembleias, correrias, ameaças de
policiais e fura-greves o filme foi nascendo. A equipe correu graves riscos,
mas contou sempre com a proteção dos mineiros. Das câmeras saíram mais de 50
horas de imagens, reduzidas a 103 minutos na montagem final. Os resultados compensaram:
Harlan
County: tragédia americana conquistou o Oscar de Melhor Documentário de
Longa Metragem de 1977 e causou furor quando exibido no Festival de Cinema de
Nova York em 1976.
O projeto de um filme sobre Harlan County só tomou forma após Barbara Kopple sentir a temperatura explosiva do lugar |
As lentes de Barbara
Kopple captam a resistência dos mineiros a toda uma ignominiosa jornada de intimidação
que incluía atentados, assassinatos de lideranças, ameaças, intrigas,
espancamentos e invasões de domicílio. Ao fim do processo os trabalhadores
obtiveram direito de sindicalização e filiação à United Mine Workers of
America. Essa conquista é registrada passo a passo pela realização.
Os mineiros da Brookside Mine diante da intimidação e violência da polícia |
Harlan County
U.S.A. custou a bagatela de 300 mil dólares, quantia levantada junto a igrejas
e entidades de apoio aos movimentos civis. Originalmente foi concebido em 16 mm
e, posteriormente, ampliado para 35 mm. É estruturado como um diário de
intensa dramaticidade. O relato é comovente. Surpreende pela linguagem livre da
concepção, uma surpresa em se tratando de documentário engajado. Desde as
primeiras imagens a produção toma partido ao lado dos trabalhadores sem deixar
que modelos ideológicos ditem os rumos da narrativa. A própria visão da direção
não opta por uma postura revolucionária. Isso foi bom, pois dogmatismos e
paternalismos, tão comuns nessas ocasiões, ficaram de fora. Por outro lado,
tanto a cineasta como os mineiros não tiveram a intenção — como se percebe
claramente — de promover qualquer mudança radical no
sistema. A greve visava apenas a correção de uma injustiça e o filme registra
as etapas percorridas para se atingir esse objetivo. Porém, evidencia-se uma
precária visão política sobre os fatos mostrados. Ao tomar a defesa dos
trabalhadores, Barbara Kopple, equivocadamente, elege como “judas” do movimento
os fura-greves e colaboracionistas declarados e envergonhados do setor patronal,
todos igualmente explorados mas ignorantes das próprias condições em que
viviam. É uma saída, pode-se dizer, mesquinha, mas tipicamente americana:
centra o foco das explicações sobre as escolhas individuais e deixa de lado as
contradições do sistema que gera, realimenta e perpetua as injustiças.
Apesar de se posicionar a favor dos trabalhadores, Barbara Kopple deu voz a todos os lados do movimento |
Porém, é sempre
louvável ressaltar a liberdade da diretora e sua tendência de mostrar todas as
facetas do movimento. Operários, patrões, líderes sindicais, policiais,
fura-greves e políticos emitem opiniões que auxiliam o espectador a conceber percepção
mais ampla dos acontecimentos e, mesmo, a tomar posição a respeito dessas ações.
Solidariedade: mineiros da Virginia marcham em apoio ao colegas do Kentucky |
A trilha sonora é
um dos trunfos da realização. Reúne uma coleção de composições significativas que
cantam a vida dos operários das minas de carvão, como: Black lung (pulmão
preto), Cold blooged murder (assassinato a sangue frio) e Dark
as a dungeon (escuro como um calabouço).
Direção de fotografia (cores): Hart Perry, Kevin Keating. Fotografia adicional: Tom Hurwitz, Flip McCarthy, Phil Parmet. Gravação de som: Barbara Kopple. Som adicional: Tim Colman, Bob Gates,
John Watz. Mixagem da regravação de som:
Lee Dichter. Edição de som: Joshua Waletzky. Música:
Hazel Dickens, Merle Travis. Assistentes
da edição de som: Rhetta Barron, Judy Rabinovitz, Helene Susman. Canções:
Nimrod Workman, Sarah Cunnings, Florence Reese, David Morris, Country Cookin,
Roscoe Holcomb, Wade Ward, Bill Worthington. Montagem: Nancy Baker, Mirra Bank, Lora Hays,
Mary Lampson, Lawrence
Mischel, Sue Mischel. Gerente de produção pela Miller-Boyle Campaign: Marc N. Weiss. Assistentes de câmera: Dick Donovan,
Michael Hamilton, Anne Lewis II, George Liebert, Alex Lukman, Shane Zarintash. Músico: David Morris. Créditos: Jean Bertl, Jose Gallardo. Assistentes gerais: Mariann Dusseldorp,
Barbara Johnson, Teri Siegel. Associado
à direção: Anne Lewis II. Agradecimentos
a: Bernie Aronson, Ting Barrow, Robert Boehm, Bernie Chertok, David
Chertok, Heleny Cook, Alida Davison, Suzy Elmiger, Leon Gast, Robert Gumpert,
Carol Guyer, Cynthia Guyer, Barbara Haspiel, Nancy Higgins, Anne Hoblitzelle,
Robert Kaylor, Alfred S. Kopple, Majorie Kopple, Peter Kopple, Laura Lesser,
Alan Manger, Richard Pearce, Michael Penland, D.A. Pennebaker, Hart Perry,
George Pillsbury, Barrie Singer, Marvin Soloway, Bill Susman, Simone Swan, Rip
Torn, Merry Weingarten, Moe Weitzman, Myrna Zimmerman. Tempo de
exibição: 103 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1979)
Nenhum comentário:
Postar um comentário