domingo, 9 de novembro de 2014

RIEFENSTAHL TENTOU, MAS NÃO CONSEGUIU EVITAR JESSE OWENS

Passada à história como cineasta preferida de Hitler, Leni Riefenstahl é responsável por duas das mais destacadas peças de propaganda política: os formalmente impecáveis e tenebrosos O triunfo da vontade (Triumph des willens, 1935) e Olimpíadas (Olympia, 1936-1938). Este, dividido em duas partes — Festa das nações (Fest des völker) e Festa da beleza (Fest der schönheit) —, registra os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Com eles, Hitler pretendia exibir ao mundo a supremacia ariana por meio de seus atletas. Mas as idealizações do Führer e de sua diligente realizadora não contavam com o fator concreto do corredor negro estadunidense Jesse Owens. Olimpíadas vai além do mero registro esportivo. Acima de tudo, celebra o ideal de beleza física nazista. As câmeras, os ângulos e os planos coordenados por Riefenstahl desenvolvem singular atração erótica pelos corpos simétricos dos ginastas germânicos. Toma-os como diretos herdeiros dos deuses do Olimpo e do que supostamente foram os atletas gregos da antiguidade clássica. A partir daí, o mundo que se preparasse para dias conturbados. Olimpíadas não só apresenta imagens de homens e mulheres nas formas pretendidas pelo Reich de Mil Anos; revela também um tipo de cinema totalmente alinhado ao corpo da nação autoritariamente concebido. A apreciação é de 1995.








Olimpíadas
Olympia

Direção:
Leni Riefenstahl
Produção:
Leni Riefenstahl
Olympia Film GmbH, International Oympic Committee (não creditado), Tobis Filmkunst (não creditado)
Alemanha — 1936-1938
Elenco:
Os reais e não creditados David Albritton, Arvo Askola, Jack Beresford, Erwin Blask, Sulo Bärlund, Ibolya Csák, Henri de Baillet-Latour, Philip Edwards, Donald Finlay, Tilly Fleischer, Wilhelm Frick, Joseph Goebbels, Hermann Göring, Ernest Harper, Karl Hein, Rudolf Hess, Adolf Hitler, Volmari Iso-Hollo, Cornelius Johnson, Matti Järvinen, Elfriede Kaun, Rei Umberto II, Kalevi Kotkas, Gustaf Alfons Koutonen, Luise Krüger, Maria Kwasniewska, Theodor Lewald, Luz Long, Spiridon Louis, John Lovelock, Gisela Mauermayer, Earle Meadows, Ralph Metcalfe, Paula Mollenhauer, Väinö Muinonen, Seung-yong Nam, Henri Nannen, Yrjö Nikkanen, Shûhei Nishida, Paavo Nurmi, Dorothy Odam, Martinus Osendarp, Jesse Owens, Leni Riefenstahl, Mack Robinson, Ilmari Salminen, Julius Schaub, Kee-chung Sohn, Julius Streicher, Gerhard Stöck, Naoto Tajima, Erkki Tamila, Kalervo Toivonen, Forrest Towns, Werner von Blomberg, August von Mackensen, Hans von Tschammer und Osten, Hans Woellke, Sueo Ôe, Sheigo Arai, Jack Beresford, Ralf Berzsenyi, Ferenc Csík, Richard Degener, Willemijntje den Ouden, Charles des Jammonières, Velma Dunn, Konrad Frey, Marjorie Gestring, Albert Greene, Tetsuo Hamuro, Josef Hasenöhrl, Heinz Hax, Adolph Kiefer, Albert Bachmann, Albert van den Weghe, Aleksanteri Saavala, Alfred Schwarzmann, Alois Hudec, Catherina Wagner, Conrad von Wangenheim, Cornelius van Oyen, Daniel Barrow, Dorothy Poynton, Elbert Root, Erich Krempel, Erwin Sietas, Eugen Mack, Glenn Morris, Gustav Schäfer, Herman Stork, Hideko Maehata, Jack Medica, Johanna Selbach, Josef Walter, Käthe Köhler, Katherine Rawls, Leon Stukelji, Marshall Wayne, Masahari Taguchi, Masaji Kiyokawa, Masanori Yusa, Matthias Volz, Michael Reusch, Neda Senff, Noboru Terada, Paul Laven, Reizô Koike, Rie Mastenbroek, Rolf Wernicke, Shigeo Sugiura, Shôzô Makino, Shunpei Utô, Torsten Ullman, Willy Rögeberg, Wladyslaw Karas. 



A diretora Leni Riefenstahl.
Abaixo, com membros da equipe, conversa com Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Reich


Olimpíadas — documentário sobre os XI Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim — é, ao lado de O triunfo da vontade (Triumph des willens, 1935)  também dirigido por Leni Riefenstahl , o suprassumo do cinema como propaganda política. Os dois foram realizados por ordem expressa do Partido Nazista no poder. Enaltecem com clareza cristalina o mundo imaginado por Hitler em seu intento de devolver a Alemanha à suposta “grandeza perdida” com base no mito da superioridade racial ariana. A diretora, ainda viva e com 92 anos[1], alega que não fazia, conscientemente, a apologia dos tempos e ideais hitlerianos. Se é merecedora de crédito não se sabe, nem cabe desenvolver isso aqui. Porém, as imagens de ambos os títulos soam como cabal desmentido. Nem o tempo que Olimpíadas dedica ao campeão estadunidense Jesse Owens  o corredor negro que humilhou Hitler em seu sonho de superioridade ao derrotar as pretensões arianas no próprio terreno do mito  oculta as verdadeiras intenções da produção. A respeito disso, as imagens são emblemáticas. Riefenstahl associa o vigor olímpico dos antigos gregos, criadores dos jogos, aos “eleitos” da nova Alemanha.


O atleta negro estadunidense Jesse Owens desmente o mito da superioridade ariana

O discóbulo ariano de Riefensthal


A câmera praticamente disseca, com o ardor de um culto quase erótico, os corpos atléticos, o vigor físico, a simetria dos movimentos e dos músculos. Atletas alemães  homens e mulheres  evoluem em coreografias captadas por imagens privilegiadas. Movimentam-se em sequências extra-jogos com sentido de evocação do próprio Olimpo, abrigo de divindades gregas. Surgem como deuses na execução de bailados matematicamente perfeitos. Às vezes, os detalhes corporais revelados pela objetiva — nos quais se pode mesmo notar a anatomia da respiração — são, por si, um processo coreográfico. São corpos desnudos elevados à dimensão da sacralidade física a partir de um ponto de vista profano sobre pureza e perfeição. Por isso não se pode classificar Olimpíadas como o simples documentário que aparenta ser. Na verdade, é um filme-manifesto. Faz a defesa de uma estética perversa de endeusamento a partir de um ideal de perfeição para o cinema, o homem e o mundo.




O atletismo e a ginástica: a linguagem corporal em evolução, como modelo da perfeição


A realização de Olimpíadas gastou cerca de 800 mil metros de película e o trabalho de montagem durou 18 meses. A edição das imagens, ao que consta, contou com a colaboração de Walter Ruttmann, celebrizado pelo vanguardista Berlim, sinfonia da metrópole (Berlin: die sinfonie der grosstadt, 1927). Utilizando teleobjetivas, Riefenstahl elaborou sua estética de humanização e deificação da imagem do atleta alemão: as lentes aproximam-no do público, permitindo a visualização, com toda a nitidez possível, do corpo em movimento e ondulações no esforço de conseguir vitória e perfeição — algo que apenas os racialmente puros poderiam conseguir segundo a cartilha em vigor. As angulações de câmera possibilitam a ilusão da transcendência ao elevar homens e mulheres ao patamar da aterradora sobrenaturalidade em que seria forjado o próprio corpo forte da nação segundo a vontade hitlerista.


Olimpíadas e o culto à perfeição da simetria corporal

  
Riefenstahl alega ter dirigido Olimpíadas a convite do Comitê Olímpico Internacional. Porém, conforme Susan Sontag[2], é fora de dúvida que o III Reich produziu totalmente o filme, ocultando-se sob a identidade de uma falsa companhia estabelecida no nome da própria diretora, “porque se achava insensato que o governo aparecesse como produtor”[3]. Até mesmo as informações de que Riefenstahl e Joseph Goebbels  Ministro da Propaganda do Reich  teriam se estranhado durante a realização, por apresentarem concepções diferentes, são falsas. Aliás, Riefenstahl seguiu as orientações do condestável ao pé da letra. Partiu dele a ideia de transformar Olimpíadas em celebração da raça ariana, aproximando a imagem do atleta alemão ao padrão de força e beleza da antiguidade clássica[4]. Por outro lado, o Ministério procurou facilitar ao máximo o trabalho de filmagens, em todos os momentos. Recursos materiais e técnicos não foram poupados. A ensaísta estadunidense adianta outra informação que não deixa dúvidas sobre os verdadeiros motivos do filme: sua estreia mundial se deu em Berlim, em abril de 1938, como parte das comemorações dos 49 anos do Führer[5]. Por outro lado, Olimpíadas foi o principal representante alemão no Festival de Veneza, quando arrebatou o Leão de São Marcos de Melhor Filme. É provável que Mussolini — criador do festival em 1932 — tenha influenciado o Júri em favor do aliado.


Olimpíadas celebra o corpo em força, movimento e equilíbrio


O filme é dividido em duas partes. Na primeira, Fest der völker (Festival das nações), é enaltecido o próprio ideal olímpico de confraternização internacional. O público multinacional presente ao estádio participa ativamente da festa. Predomina a claridade da luz solar. Jesse Owens tem seus momentos de glória. Hitler comparece, não como Chefe de Estado, mas na posição de espectador comum, comentando com seus acompanhantes, torcendo pelos atletas alemães, demonstrando tensão e nervosismo ante a possibilidade da derrota ou vitória, comemorando efusivamente. Fest der schönheit (Festival de beleza) é a segunda parte. Aqui a luz é substituída pela sombra. O público comparece pouco. As imagens privilegiam acima de tudo os atletas alemães. Parece o prelúdio dos tempos sem sol que viriam, de fato hitlerianos em sua mais terrível acepção.


Adolf Hitler e Leni Riefensthal


Apesar de tudo os alemães não foram os grandes vencedores dos jogos.







Roteiro e montagem: Leni Riefenstahl. Gerente de produção (não creditado): Walter Traut. Assistente de câmera: Luggi Waldleitner. Operador de câmera: Georg Fleischmann. Fotografia subaquática: Hans Ertl (não creditado). Assistente de montagem: Erna Peters (não creditada). Dedicado ao: Barão Pierre de Coubertin. Direção de fotografia (preto e branco): os não creditados Hans Ertl, Walter Frentz, Guzzi Lantschner, Kurt Neubert, Hans Schweib, Wilfried Basse, Leo De Lafrue, Josef Dietze, E. Epkins, Hans Karl Gottschalk, Richard Groschopp, Willy Hameister, Wolf Hart, Hasso Hartnagel, Walter Hege, Paul Holzki, Werner Hundhausen, Albert Höcht, Carl Junghans, Herbert Kebelmann, Sepp Ketterer, Albert Kling, Ernst Kunstmann, Leo de Laforgue, Lagorio, E. Lambertini, Otto Lantschner, Waldemar Lembke, Georg Lemke, C. A. Linke, Erich Nitzschmann, Albert Schattmann, Wilhelm Schmidt, Hugo O. Schulze, Leo Schwedler, Alfred Siegert, W. Siehm, Ernst Sorge, Károly Vass, Andor von Barsy, Eberhard von der Heyden, Fritz von Friedl, Heinz von Jaworsky, Hugo von Kaweczynski, Alexander von Lagorio, H. von Stwolinski, Willy Zielke, Guzzi Lantschner, Károly Vass. Música: Herbert Wind, Walter Gronostay (não creditado). Tempo de exibição: 217 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1995)




[1] Idade de Leni Riefenstahl em 1995, quanto esta apreciação foi escrita. Ela faleceu em 2003.
[2] SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno, 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1986. p.64.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.

4 comentários:

  1. Un estupendo post. Enhorabena amigo, muy buen trabajo.
    Saludos.
    RjLebrancón

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  2. No sé leer bralileño pero lo he intentado jeje. Has desplegado una buena y cualificada información. Muy bueno tu aporte. Me fascina el personaje y la persona de Riefenstahl. No entiendo, como alguien de su talante, puso su obra al servicio de un régimen tan perverso. Tiene razón la periodista Claudia Lenssen cuando en su obituario menciona que para los amantes del cine, Leni Riefenstahl es la mujer que amamos odiar.
    Muy buen aporte. Te agrego a mi lista de blogs.
    Un saludo.

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    1. Sí, es verdad, Marybel. Sin embargo, además de la talentosa Leni, el nazismo también atrajo para su campo inclusive filósofos renomados, como Heideger, para quedar sólo con este ejemplo.

      Aquí, en Brasil, fue exhibida, hay poco tiempo, una gigantesca muestra dedicada a la obra de Leni, inclusive de sus películas sobre la naturaleza, hechos antes de su adhesión la Hitler. Era una cineasta muy talentosa, como somos obligados a reconocer.

      Muchas gracias, Marybel.

      Abraços Y saludos.

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