Passada à história como cineasta preferida de Hitler, Leni
Riefenstahl é responsável por duas das mais destacadas peças de propaganda
política: os formalmente impecáveis e tenebrosos O triunfo da vontade (Triumph
des willens, 1935) e Olimpíadas (Olympia, 1936-1938).
Este, dividido em duas partes — Festa das nações (Fest
des völker) e Festa da beleza (Fest
der schönheit) —, registra os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Com
eles, Hitler pretendia exibir ao mundo a supremacia ariana por meio de seus
atletas. Mas as idealizações do Führer e de sua diligente realizadora não
contavam com o fator concreto do corredor negro estadunidense Jesse Owens. Olimpíadas
vai além do mero registro esportivo. Acima de tudo, celebra o ideal de beleza
física nazista. As câmeras, os ângulos e os planos coordenados por Riefenstahl
desenvolvem singular atração erótica pelos corpos simétricos dos ginastas
germânicos. Toma-os como diretos herdeiros dos deuses do Olimpo e do que
supostamente foram os atletas gregos da antiguidade clássica. A partir daí, o
mundo que se preparasse para dias conturbados. Olimpíadas não só apresenta
imagens de homens e mulheres nas formas pretendidas pelo Reich de Mil Anos;
revela também um tipo de cinema totalmente alinhado ao corpo da nação
autoritariamente concebido. A apreciação é de 1995.
Olimpíadas
Olympia
Direção:
Leni Riefenstahl
Produção:
Leni Riefenstahl
Olympia Film GmbH, International
Oympic Committee (não creditado), Tobis Filmkunst (não creditado)
Alemanha — 1936-1938
Elenco:
Os reais e não creditados David
Albritton, Arvo Askola, Jack Beresford, Erwin Blask, Sulo Bärlund, Ibolya Csák,
Henri de Baillet-Latour, Philip Edwards, Donald Finlay, Tilly Fleischer, Wilhelm
Frick, Joseph Goebbels, Hermann Göring, Ernest Harper, Karl Hein, Rudolf Hess, Adolf
Hitler, Volmari Iso-Hollo, Cornelius Johnson, Matti Järvinen, Elfriede Kaun, Rei
Umberto II, Kalevi Kotkas, Gustaf Alfons Koutonen, Luise Krüger, Maria
Kwasniewska, Theodor Lewald, Luz Long, Spiridon Louis, John Lovelock, Gisela
Mauermayer, Earle Meadows, Ralph Metcalfe, Paula Mollenhauer, Väinö Muinonen, Seung-yong
Nam, Henri Nannen, Yrjö Nikkanen, Shûhei Nishida, Paavo Nurmi, Dorothy Odam, Martinus
Osendarp, Jesse Owens, Leni Riefenstahl, Mack Robinson, Ilmari Salminen, Julius
Schaub, Kee-chung Sohn, Julius Streicher, Gerhard Stöck, Naoto Tajima, Erkki
Tamila, Kalervo Toivonen, Forrest
Towns, Werner von Blomberg, August von Mackensen, Hans von Tschammer und Osten,
Hans Woellke, Sueo Ôe, Sheigo Arai, Jack Beresford, Ralf Berzsenyi, Ferenc Csík,
Richard Degener, Willemijntje den Ouden, Charles des Jammonières, Velma Dunn, Konrad
Frey, Marjorie Gestring, Albert Greene, Tetsuo Hamuro, Josef Hasenöhrl, Heinz
Hax, Adolph Kiefer, Albert Bachmann, Albert van den Weghe, Aleksanteri Saavala,
Alfred Schwarzmann, Alois Hudec, Catherina Wagner, Conrad von Wangenheim, Cornelius
van Oyen, Daniel Barrow, Dorothy Poynton, Elbert Root, Erich Krempel, Erwin
Sietas, Eugen Mack, Glenn Morris, Gustav Schäfer, Herman Stork, Hideko Maehata,
Jack Medica, Johanna Selbach, Josef Walter, Käthe Köhler, Katherine Rawls, Leon
Stukelji, Marshall Wayne, Masahari Taguchi, Masaji Kiyokawa, Masanori Yusa, Matthias
Volz, Michael Reusch, Neda Senff, Noboru Terada, Paul Laven, Reizô Koike, Rie
Mastenbroek, Rolf Wernicke, Shigeo Sugiura, Shôzô Makino, Shunpei Utô, Torsten
Ullman, Willy Rögeberg, Wladyslaw Karas.
A diretora Leni Riefenstahl. Abaixo, com membros da equipe, conversa com Joseph Goebbels, ministro da propaganda do Reich |
Olimpíadas — documentário
sobre os XI Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim — é, ao lado de O
triunfo da vontade (Triumph des willens, 1935) — também dirigido
por Leni Riefenstahl —, o suprassumo do cinema como propaganda
política. Os dois foram realizados por ordem expressa do Partido Nazista no poder.
Enaltecem com clareza cristalina o mundo imaginado por Hitler em seu intento de
devolver a Alemanha à suposta “grandeza perdida” com base no mito da
superioridade racial ariana. A diretora, ainda viva e com 92 anos[1],
alega que não fazia, conscientemente, a apologia dos tempos e ideais hitlerianos.
Se é merecedora de crédito não se sabe, nem cabe desenvolver isso aqui. Porém,
as imagens de ambos os títulos soam como cabal desmentido. Nem o tempo que Olimpíadas
dedica ao campeão estadunidense Jesse Owens — o corredor negro
que humilhou Hitler em seu sonho de superioridade ao derrotar as pretensões
arianas no próprio terreno do mito — oculta as verdadeiras
intenções da produção. A respeito disso, as imagens são emblemáticas.
Riefenstahl associa o vigor olímpico dos antigos gregos, criadores dos jogos,
aos “eleitos” da nova Alemanha.
O atleta negro estadunidense Jesse Owens desmente o mito da superioridade ariana |
A câmera
praticamente disseca, com o ardor de um culto quase erótico, os corpos atléticos,
o vigor físico, a simetria dos movimentos e dos músculos. Atletas alemães — homens e
mulheres — evoluem em coreografias captadas por
imagens privilegiadas. Movimentam-se em sequências extra-jogos com sentido de
evocação do próprio Olimpo, abrigo de divindades gregas. Surgem como deuses na
execução de bailados matematicamente perfeitos. Às vezes, os detalhes corporais
revelados pela objetiva — nos quais se pode mesmo notar a anatomia da
respiração — são, por si, um processo coreográfico. São corpos desnudos
elevados à dimensão da sacralidade física a partir de um ponto de vista profano
sobre pureza e perfeição. Por isso não se pode classificar Olimpíadas como o simples
documentário que aparenta ser. Na verdade, é um filme-manifesto. Faz a defesa
de uma estética perversa de endeusamento a partir de um ideal de perfeição para
o cinema, o homem e o mundo.
A realização de Olimpíadas
gastou cerca de 800 mil metros de película e o trabalho de montagem durou 18
meses. A edição das imagens, ao que consta, contou com a colaboração de Walter
Ruttmann, celebrizado pelo vanguardista Berlim, sinfonia da metrópole (Berlin:
die sinfonie der grosstadt, 1927). Utilizando teleobjetivas,
Riefenstahl elaborou sua estética de humanização e deificação da imagem do
atleta alemão: as lentes aproximam-no do público, permitindo a visualização, com
toda a nitidez possível, do corpo em movimento e ondulações no esforço de
conseguir vitória e perfeição — algo que apenas os racialmente puros poderiam
conseguir segundo a cartilha em vigor. As angulações de câmera possibilitam a
ilusão da transcendência ao elevar homens e mulheres ao patamar da aterradora
sobrenaturalidade em que seria forjado o próprio corpo forte da nação segundo a
vontade hitlerista.
Olimpíadas e o culto à perfeição da simetria corporal |
Riefenstahl alega
ter dirigido Olimpíadas a convite do Comitê Olímpico Internacional. Porém, conforme
Susan Sontag[2], é
fora de dúvida que o III Reich produziu totalmente o filme, ocultando-se sob a
identidade de uma falsa companhia estabelecida no nome da própria diretora,
“porque se achava insensato que o governo aparecesse como produtor”[3].
Até mesmo as informações de que Riefenstahl e Joseph Goebbels — Ministro da
Propaganda do Reich — teriam se estranhado durante a realização, por
apresentarem concepções diferentes, são falsas. Aliás, Riefenstahl seguiu as
orientações do condestável ao pé da letra. Partiu dele a ideia de transformar Olimpíadas
em celebração da raça ariana, aproximando a imagem do atleta alemão ao padrão
de força e beleza da antiguidade clássica[4].
Por outro lado, o Ministério procurou facilitar ao máximo o trabalho de
filmagens, em todos os momentos. Recursos materiais e técnicos não foram
poupados. A ensaísta estadunidense adianta outra informação que não deixa
dúvidas sobre os verdadeiros motivos do filme: sua estreia mundial se deu em
Berlim, em abril de 1938, como parte das comemorações dos 49 anos do Führer[5].
Por outro lado, Olimpíadas foi o principal representante alemão no Festival de
Veneza, quando arrebatou o Leão de São Marcos de Melhor Filme. É
provável que Mussolini — criador do festival em 1932 — tenha influenciado o
Júri em favor do aliado.
Olimpíadas celebra o corpo em força, movimento e equilíbrio |
O filme é
dividido em duas partes. Na primeira, Fest der völker (Festival
das nações), é enaltecido o próprio ideal olímpico de confraternização
internacional. O público multinacional presente ao estádio participa ativamente
da festa. Predomina a claridade da luz solar. Jesse Owens tem seus momentos de
glória. Hitler comparece, não como Chefe de Estado, mas na posição de
espectador comum, comentando com seus acompanhantes, torcendo pelos atletas
alemães, demonstrando tensão e nervosismo ante a possibilidade da derrota ou
vitória, comemorando efusivamente. Fest der schönheit (Festival
de beleza) é a segunda parte. Aqui a luz é substituída pela sombra. O
público comparece pouco. As imagens privilegiam acima de tudo os atletas
alemães. Parece o prelúdio dos tempos sem sol que viriam, de fato hitlerianos em
sua mais terrível acepção.
Adolf Hitler e Leni Riefensthal |
Roteiro e montagem: Leni Riefenstahl. Gerente de produção (não creditado): Walter Traut. Assistente de câmera: Luggi Waldleitner.
Operador de câmera: Georg
Fleischmann. Fotografia subaquática:
Hans Ertl (não creditado). Assistente de
montagem: Erna Peters (não creditada). Dedicado
ao: Barão Pierre de Coubertin. Direção
de fotografia (preto e branco): os não creditados Hans Ertl, Walter Frentz,
Guzzi Lantschner, Kurt Neubert, Hans Schweib, Wilfried Basse, Leo De Lafrue,
Josef Dietze, E. Epkins, Hans Karl Gottschalk, Richard Groschopp, Willy
Hameister, Wolf Hart, Hasso Hartnagel, Walter Hege, Paul Holzki, Werner
Hundhausen, Albert Höcht, Carl Junghans, Herbert Kebelmann, Sepp Ketterer,
Albert Kling, Ernst Kunstmann, Leo de Laforgue, Lagorio, E. Lambertini, Otto
Lantschner, Waldemar Lembke, Georg Lemke, C. A. Linke, Erich Nitzschmann,
Albert Schattmann, Wilhelm Schmidt, Hugo O. Schulze, Leo Schwedler, Alfred
Siegert, W. Siehm, Ernst Sorge, Károly Vass, Andor von Barsy, Eberhard von der
Heyden, Fritz von Friedl, Heinz von Jaworsky, Hugo von Kaweczynski, Alexander
von Lagorio, H. von Stwolinski, Willy Zielke, Guzzi Lantschner, Károly Vass. Música: Herbert Wind, Walter Gronostay
(não creditado). Tempo de exibição:
217 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1995)
Un estupendo post. Enhorabena amigo, muy buen trabajo.
ResponderExcluirSaludos.
RjLebrancón
Muchas gracias, caro Ricardo. É um prazer tê-lo aqui.
ExcluirAbraços.
No sé leer bralileño pero lo he intentado jeje. Has desplegado una buena y cualificada información. Muy bueno tu aporte. Me fascina el personaje y la persona de Riefenstahl. No entiendo, como alguien de su talante, puso su obra al servicio de un régimen tan perverso. Tiene razón la periodista Claudia Lenssen cuando en su obituario menciona que para los amantes del cine, Leni Riefenstahl es la mujer que amamos odiar.
ResponderExcluirMuy buen aporte. Te agrego a mi lista de blogs.
Un saludo.
Sí, es verdad, Marybel. Sin embargo, además de la talentosa Leni, el nazismo también atrajo para su campo inclusive filósofos renomados, como Heideger, para quedar sólo con este ejemplo.
ExcluirAquí, en Brasil, fue exhibida, hay poco tiempo, una gigantesca muestra dedicada a la obra de Leni, inclusive de sus películas sobre la naturaleza, hechos antes de su adhesión la Hitler. Era una cineasta muy talentosa, como somos obligados a reconocer.
Muchas gracias, Marybel.
Abraços Y saludos.