Do conto de Rabindranath Tagore, Nashta neer, o maior cineasta da Índia, Satyajit Ray, extraiu A
esposa solitária (Charulata, 1964), décimo segundo dos
37 filmes que realizou. De formação eclética mas influenciado originalmente
pelo realismo poético francês de Jean Renoir e neorrealismo italiano via Ladrões
de bicicleta (Ladri di biciclette,
1948), de Vittorio de Sica, Ray localiza a ação da obra em apreço na segunda
metade do século XIX, quando a Índia sob dominação britânica experimenta uma
espécie de renascimento político-cultural fortemente ocidentalizado, com
aspirações à independência nacional. Neste contexto, entrecortado por
modernidade e tradição, movimenta-se Charulata (Madhabi Mukherjee), esposa sem
lugar do intelectual e jornalista progressista Bhupati Dutta (Shailen
Mukherjee). Centrado na personagem feminina, o diretor concebe uma narrativa
que trata de confiança, solidão e fidelidade, ambientada quase que integralmente
no interior de uma residência. O resultado é uma obra surpreendentemente bela. Nada
sobra ou falta em A esposa solitária. O filme é coroado pelo soberbo desempenho
de Madhabi Mukherjee, brilhantemente coadjuvada por Soumitra Chatterjee,
Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal e Gitali Roy.
A esposa solitária
Charulata
Direção:
Satyajit
Ray
Produção:
R. D.
Bansal
R. D. Banshal
& Co.
Índia — 1964
Elenco:
Soumitra
Chatterjee, Madhabi Mukherjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal, Gitali Roy,
Bholanath Koyal, Suku Mukherjee, Dilip Bose, Joydeb, Bankim Ghosh, Subrata
Sensharma.
À direita, o diretor Satyajit Ray |
Pode parecer supérfluo afirmar que Satyajit
Ray — diretor com 37 filmes realizados de 1955 a 1991 — tem lugar
garantido entre os mais renomados cineastas. Porém, o temor da redundância perde
sentido frente à certeza de que é praticamente desconhecido, apesar de merecer mostras,
retrospectivas e apresentações em festivais, principalmente na Europa. No
Brasil, é pouco mencionado. A maior parte de sua obra jamais veio a público.
Está restrita, quando muito, ao gueto das poucas cinematecas do país. Mesmo
assim, tal afirmação deve ser feita com parcimônia. Se tenho a oportunidade de
comentar um filme de Ray, isto se deve a um raro e feliz momento da televisão
brasileira, em particular ao canal por assinatura Telecine Classic das operadoras
NET e Sky. Hoje, sequer sombras restam dessa emissora. Sobrevive
descaracterizada como Telecine Cult, prestando-se, com raríssimas exceções, à
exibição de qualquer coisa. Em seu auge, dentre as muitas mostras programadas,
o Telecine Classic presenteou o cinéfilo com um punhado de filmes de Satyajit
Ray. Assim fui apresentado a esse cineasta, até então conhecido somente por
textos. Comecei com A esposa solitária,
considerado pelo próprio diretor como seu melhor trabalho. É realização
exemplar. Nada lhe falta ou sobra.
Madhabi Mukherjee interpreta Charulata, a esposa do título |
Satyajit Ray bebeu das fontes
realistas para se fazer cineasta. Sua primeira influência veio do realismo
poético francês, via Jean Renoir, para quem pesquisou locações quando o diretor
de A regra do
jogo (La règle du jeu, 1939) esteve na Índia para realizar O rio sagrado (The river, 1950). Sabendo
de sua atração por cinema, Renoir o incentivou a levar às telas a pretendida
adaptação da novela Pather Panchali, de
Bibhutibhushan Bandyopadhyay. O filme veio à luz em 1955 e recebeu no Brasil o nome
de A canção da
estrada (Pather Panchali). É a primeira parte de A trilogia de Apu, completada
por O
invencível (Aparajito, 1956) e O mundo de Apu (Apu
sansar, 1959). Mas o impulso
decisivo à formação de Satyajit Ray como cineasta decorre do neorrealismo
italiano, particularmente de Vittorio de Sica e Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette,
1948). Ele tomou conhecimento desse filme em 1950, durante temporada de três
meses em Londres. Na
ocasião assistiu a 98 filmes os mais diversos. John Ford é outra referência
inspiradora[1].
O japonês Yasujiro Ozu também seria?
A esposa
solitária é o décimo segundo título
da filmografia de Ray. Apresentado no Festival de Berlim de 1965, foi laureado
com o Urso de Prata atribuído ao Melhor Diretor. No mesmo certame mereceu
premiação do Ofício Católico Internacional de Cinema (OCIC) e concorreu ao Urso
de Ouro.
Charulata (Madhabi Mukherjee) |
É uma obra surpreendentemente
bela. Os planos, delicados e precisos nos detalhes, impressionam. Transmitem a sensação
de que foram obtidos por uma câmera operando qual cinzel nas mãos do mais hábil
e paciente escultor. A harmonia das cenas revela o rigor de uma direção de arte
não meramente decorativa, a ponto de se esgotar nela mesma, mas que existe em
função de personagens que se movimentam externando estados de alma variando da
alegria à tristeza, impregnando os ambientes com os diversos componentes desse
leque de sensações. As interpretações são verdadeiras. Os atores pulsam com
sinceridade. Frente a eles, o espectador envolvido pela encenação lhes empresta
solidariedade pela comunicação recebida da franqueza dos olhares e gestos, pelo
prolongamento do que há de mais humano nos objetos decorativos, prontamente
humanizados. Em meio a isso tudo avulta a aparentemente frágil Charulata, a esposa do título,
em desempenho soberbo de Madhabi Mukherjee. Mas ela não se destaca sozinha. Sua
afinada performance só é possível graças aos parceiros brilhantes que lhe
pavimentaram o caminho: Soumitra Chatterjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Ghoshal
e Gitali Roy nos respectivos papeis de Amal, Bhupati Dutta, Umapada e Manda.
De solidão,
confiança e fidelidade trata o filme, ambientado quase que integralmente no
interior de uma residência em Calcutá no final do século XIX. A Índia, sob jugo
britânico, vive uma fase de renascimento político e cultural. A questão
nacional é discutida. Movimentos de emancipação entram em cena. Bhupati —
intelectual idealista, honesto, socialmente bem posicionado e identificado com
a independência do país — edita em inglês o jornal The Sentinel. O lema do
periódico, com temática essencialmente política e ponto de vista
ocidentalizado, é: “Dedicado à exposição da verdade”. A editoria e a gráfica funcionam
no espaço inferior da casa, onde Bhupati passa a maior parte do dia. A moradia
luxuosa e ampla, repleta de serviçais, ocupa a parte superior do imóvel. É onde
a jovem, bela e perspicaz Charulata passa os dias envolvida pela rotina de uma existência
desprovida de maiores significados. Apesar de demonstrar interesse por artes, principalmente
literatura e poesia, não encontra correspondência e incentivos da parte de Bhupati,
interessado somente em política e jornalismo.
Esposa Charulata (Madhabi Mukherjee) e marido Bhupati (Shailen Mukherjee): tão perto e tão longe |
Entretanto,
Bhupati ama Charulata. Apesar do desinteresse pelos temas que chamam a atenção
da esposa, reconhece o vazio e a solidão da vida na qual ela está mergulhada. Tenta
atenuar esse estado de coisas. Convida o cunhado Umapada e esposa Manda a morar
com eles. Enquanto aquele assume cargos de gerência e controle financeiro do The Sentinel, ela faz companhia a Charulata. Mas a situação anterior
não se altera. Jogos de cartas e assuntos fúteis continuam a imperar no
cotidiano. Mudanças ocorrem quando Amal, irmão mais novo de Bhupati, chega para
uma temporada. É um jovem e romântico advogado. Recentemente formado,
entrega-se à poesia e cultiva outras ambições literárias.
Charulata (Madhabi Mukherjee), ao centro, na companhia de Amal (Soumitra Chatterjee) e Manda (Gitali Roy) |
As primeiras
imagens de A esposa solitária mostram, em primeiro plano, mãos
entregues ao bordado enquanto correm os créditos. A sequência é comentada
musicalmente pelos acordes repetidos de uma cítara. A atmosfera é preenchida
pela sensação de enfado, logo ampliada: Charulata abandona o artesanato, come,
senta-se, chama a serviçal, apanha um livro, perambula pela casa, volta às
estantes, passeia entre os móveis, canta, ouve sons da rua, toma um binóculo e
observa pelas frestas das janelas o movimento dos transeuntes. A casa se assemelha
à cela de uma prisão. Ela parece dispor de todo o tempo do mundo e conta
somente com o vazio para preenchê-lo. Bhupati, com toda a atenção voltada à
leitura de um livro, passa ao lado sem sequer percebê-la. Assemelha-se mais ao
estereótipo do britânico típico, cheio de si. A distância entre marido e esposa
é comentada pelas imagens em que ela o observa com o binóculo, como a
aproximá-lo, mesmo estando ambos a tão poucos passos um do outro.
Charulata (Madhabi Mukherjee) na observação do mundo no qual vive |
A visita de Amal se
revela providencial. É convencido por Bhupati a despertar o interesse prático
de Charulata pela literatura. Ela e o cunhado se desafiam. Escrevem e publicam.
A relação, demasiado próxima, acende a chama da paixão nunca consumada.
Charulata comunica tudo com a expressividade do olhar potencializada por
canções. Encanta-se com o espírito livre e espontâneo do cunhado. Destacam-se
as cenas do balanço e o instante envolvente e belíssimo em que Amal canta[2].
Acima e abaixo: Amal (Soumitra Chatterjee) e Charulata (Madhabi Mukherjee) |
Arma-se uma torrente
de situações levadas ao conhecimento de Bhupati com o amargo sabor da traição.
Numa recepção oferecida aos amigos, surpreende-se com a revelação de que
Charulata publicara alguns escritos. Depois, desencanta-se com a perda de
confiança em Umapada, que se apropriou de fundos da empresa. Bhupati, tão
inocentemente idealista e honesto, fraqueja com as decepções. Nem parece o
jornalista político tão seguro de si. Externando o desapontamento, discursa
sobre traição e o descrédito das pessoas. Amal tudo ouve. Percebe o risco de
também trair o irmão devido ao seu envolvimento crescente com Charulata.
Silenciosamente, resolve partir. Ela não se contém com a ausência do cunhado.
Chora. Decepcionados, cada qual por seu motivo, Bhupati e esposa viajam para um
período de descanso. Na ocasião, reaproximam-se e discutem a diversificação das
matérias do jornal. Charulata terá espaço no periódico.
Amal, no entanto, mais
que lembrança viva é uma ferida aberta. Diante das notícias enviadas pelo cunhado,
Charulata cai em prantos, clamando por ele. Bhupati testemunha a cena e se
retira. Ela percebe a presença do marido e se refaz para recebê-lo em acordo à situação
anterior aos abalos na relação. Após breve ausência, o decepcionado Bhupati
retorna. Charulata lhe estende a mão. Ele corresponde. Estão quase se tocando
quando o filme termina em imagens congeladas. De outra forma não poderia ser. A
incerteza que as cenas fixas do epílogo deixam no espectador também é parte das
novas sensações vivenciadas por marido e esposa. Certamente, nada mais será o
mesmo. O clima de melancolia, tão presente em Charulata, envolve todo o final. A
rotina de antes retomará o seu lugar? E da parte dos anseios ingênuos de
Bhupati — jornalista político tão idealista e compromissado com a verdade —, a
sua Índia superará séculos de tradição, que praticamente a condenaram ao
imobilismo, com uma possível independência? Até que ponto Charulata se
identifica com o próprio país em movimento?
Charulata (Madhabi Mukherjee) |
Havia deixado uma
dúvida no ar: Yasujiro Ozu teria influência no cinema de Satyajit Ray? A
resposta é positiva, pelo menos com respeito a A esposa solitária. Pode-se dizer
que, neste filme, Ray, como o colega japonês, também discute os encantos e
desencantos da rotina. A diferença é dada pela maneira de filmar. A câmera se
movimenta extraordinariamente bem em Satyajit Ray , ao passo que enquadra com o rigor
da imobilidade no cinema de Ozu.
Roteiro: Satyajit Ray, com base em Nashta neer, conto de Rabindranath
Tagore. Música: Satyajit Ray. Direção
de fotografia (preto e branco): Subrata Mitra,
Satyajit Ray. Montagem: Dulal Dutta. Desenho
de produção: Bansi Chandragupta. Primeiro
assistente de direção: Amiya Sanyal. Som: Atul Chatterjee, Nripen
Paul, Sujit Sarkar. Cantor
em playback: Kishore Kumar. Tempo de exibição:
117 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2012)
Eugenio,
ResponderExcluirInteressantíssima a leitura desta fita, seu bojo, suas adjacências, sua estética e, de um modo geral o filme como um todo.
Não conheço nada do cinema Indiano, mas tenho lido que é um dos centros cinematográficos mais pungentes de todo o mundo, com filmes como os que cita e alguns outros que já andei lendo.
Porém, é um cinema que dificilmente chega a nós.
Nos meus tempos de moleque, lá pelos meus 14/15 anos, ainda podiamos ver nas telas de SSA filmes de outros centros, senão apenas os dos EUA e os Nacionais. Passava-se muitas fitas francesas, italianas, russas, mexicanas e até Indiadas, quando vi o belo Fantasia Oriental/53.
Porém, hoje tudo está tudo muito voltado apenas para o cinema Americano, fazendo os amantes do bom cinema se ver impedido de ver filmes de outros centros, como o forte cinema Indiano.
Achei, no seu descrever, um filme de uma pureza e simplicidade e beleza impar.
A maneira de como este diretor veio a realizar A Esposa Solitária é de uma maestria onde somente em alguns filmes japoneses se ver.
É como se estivesse vendo algo como se a câmera de Walter Hugo Khoury deslizando lenta por seus personagens, deixando atmosferas no ar com seus movimentos e nos dando uma sensação de estarmos postado diante da pura realidade da vida.
Amei ler sobre esta fita, seu conteudo, simples mas bem desbravatado, da desatenção aos desejos e anseios da esposa, como sua solidão e a falta constante da percepção da mesma, do instante de reflexão do marido sobre o modo de vida da mesma e a vinda de parentes seus para lhe fazer companhia. Da paixão impossivel e da não concretização do ato entre a belissima atriz e o cunhado, assim como de todos demais conteúdos que comprimem este filme leve e presumivelmente delicioso de ver.
Mais uma potente postagem numa narrativa linear, segura e como se mostrando ao vivo o filme narrado.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir;
ExcluirTambém conheço muito pouco do cinema indiano. Mas posso afirmar que conheço quase tudo do cineasta Satyajit Ray. É um valor raro. Merece ser descoberto e, acima de tudo, apreciado com a maior atenção. Muitas coisas dele estão disponíveis para download nos programas de compartilhamento da Internet. Procure ver, acima de tudo, "A canção da estrada", "O invencível" e "O mundo de Apu". Esses títulos fazem parte da famosa "Trilogia de Apu". Ao todo, Ray dirigiu 37 filmes entre 1955 a 1991. Faleceu aos 70 anos, em 23 de abril de 1992. Está entre os diretores mais premiados de todo o cinema.
Neste link você poderá tomar conhecimento de todos os filmes que ele dirigiu além das demais coisas que fez no cinema: http://www.imdb.com/name/nm0006249/?ref_=fn_al_nm_1#director
Neste outro, terá ciência dos prêmios aos quais foi indicado e de outros que recebeu: http://www.imdb.com/name/nm0006249/awards?ref_=nm_ql_2
Abraços.
Wuauu...Que bella forma de transmitir la emoción de la película...Siento un gran deseo de perderme en esas escenas tan bellas y profundas... traspasar la pantalla y llegar al corazón no es sencillo ,mucho menos llegar al alma y por lo que leo en tu reseña es una película que llega al alma,una gran experiencia digna de ver...ME HA GUSTADO MUCHO Eugenio...Me gusta perderme e ir al cine contigo entre tus letras...¡Te mando abrazos y dulces,dulcicimos besos...!!!
ResponderExcluirPues es esto. Es una película que toca el fondo del alma de los personajes como de los espectadores. Sin olvidar que es formalmente belíssima también, en sus encuadramientos y movimientos que parecen tán bien calculados. Vale la pena conocer toda la obra para el cine del diretor Satyajit Ray, Maria Del Socorro Duarte. Besos y gracias.
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