domingo, 23 de novembro de 2014

A ESTAÇÃO BRANCA E SECA DO 'APARTHEID' SEGUNDO EUZHAN PALCY

Graças à repercussão internacional de seu primeiro longa, o surpreendentemente sensível e autoral Rue cases nègres (1983), a cineasta da periférica Martinica, Euzhan Palcy, chamou a atenção de Hollywood. Seis anos depois entregaria o próximo filme, quase que integralmente bancado por uma major company, a Metro-Goldwyn-Mayer. Assassinato sob custódia (A dry white season), infelizmente, como era esperado, custou a liberdade criativa da realizadora. É obra acadêmica, de estrutura quadrada e francamente previsível. Mesmo assim, comprova valor na intenção de denunciar, segundo o esquema dos filmes de protesto, o odioso Estado policial da África do Sul, estruturado em torno do regime da mais extrema e perversa segregação racial. O apartheid vigorava no país no momento da realização. Nelson Mandela, futuro presidente, encontrava-se encarcerado em Robben Island. Donald Sutherland é o protagonista. Mas quem rouba a cena é Marlon Brando em fulgurante aparição de apenas 10 minutos. A apreciação a seguir é de 1996. 







Assassinato sob custódia
A dry white season

Direção:
Euzhan Palcy
Produção:
Paula Weinstein
Metro-Goldwyn-Mayer, Davros Films, Star Partners II Ltd., Sundance Productions
EUA — 1989
Elenco:
Donald Sutherland, Janet Suzman, Zakes Mokae, Marlon Brando, Jürgen Prochnow, Susan Sarandon, Winston Ntshona, Thoko Ntshinga, Leonard Maguire, Gerard Thoolen, Susannah Harker, Andrew Whaley, Rowen Elmes, Stella Dickin, David De Keyser, John Kani, Sophie McGina, Berhithemha Mpofu, Tinashe Makoni, Precious Phiri, Richard Wilson, Derek Hanekom, Michael Gambon, Ronald Pickup, Ernest Ndhlovu, Stephen Hanly, Gerard Thoolen, Paul Brooke, Andrew Proctor, Kevin Johnson, Grant Davidson, Ndu Gumede, Sello Maake, Charles Pillai, Rosemary Martin, Willie Zweni, Mercia Davids, Mannie De Villiers, Anna Manimanzi, Hugh Masekela.



A cineasta da Martinica, Euzhan Palcy


Em 1983 Euzhan Palcy enquadrou sua Martinica natal no mapa cinematográfico mundial. Seu primeiro longa metragem, Rue cases nègres, recebeu o Leão de Prata no Festival de Veneza e, na França, o César de Melhor Primeira Obra. É retrato delicado e vigoroso da vida apinhada de privações em meio aos canaviais daquele departamento francês encravado no Caribe. Conta, apoiado em elenco não profissional, a história de um garoto negro e pobre. Estimulado pela avó visionária, superou a miserável condição por meio do estudo. A boa repercussão internacional da obra de estreia levou Palcy aos braços de Hollywood. Quatro anos depois, à frente de elenco principal all star, a diretora continua manifestando preocupação com a sorte dos negros, seus iguais. Vai à África do Sul para conhecer o mecanismo do odioso sistema de segregação racial então em vigor no país. Conversa com várias vítimas da violência policial. Auxiliada por Colin Welland, adapta para o cinema o romance anti-apartheid do escritor sul-africano André Brink. Amplia a força dramática do texto com a inclusão de informações das pesquisas realizadas. O resultado é Assassinato sob custódia, rodado no Zimbabwe.


O título original, A dry white season, significa literalmente “uma estação branca e seca”. Faz referência ao poema de igual nome[1] que Mongane Wally Serote dedicou a Soweto — gigantesca e explosiva favela sul-africana que amontoava negros nas mais precárias e miseráveis condições. Diz que o apartheid é como um ponto de parada branco e seco, no qual as estações do ano não duram o suficiente para uma conveniente apreciação, principalmente pelos negros segregados.


Donald Sutherland interpreta Ben Du Toit, o protagonista 

Marlon Brando em rápida aparição como o advogado antissegregacionista Ian McKenzie


Palcy, conforme alega, fez Rue cases nègres com amor. Mas foi o ódio que a levou à realização de Assassinato sob custódia[2]. É obra de denúncia e desmascaramento, porém despersonalizada. No filme de estreia ela estampou claramente uma inestimável marca autoral impregnada de espontaneidade narrativa. Agora, não! Na trilha do cinema de protesto realizado com capital hollywoodiano, deixou-se levar pelo tom de Constantin Costa-Gavras mas sem atingir o melhor nível do realizador de Z (Z, 1968). No entanto, apesar de quadrado e acadêmico, Assassinato sob custódia é bem feito e cumpre o papel de denunciar a arbitrariedade de um Estado terrorista. Aborda sem retoques a violência gerada pelo racismo como política de Estado. Só isso já é motivo para ser justificado e valorizado.


A ação se passa em 1976, quando dos explosivos e tristemente célebres acontecimentos de Soweto. Um protesto pacífico, deflagrado por estudantes negros contra as deficiências do sistema educacional, foi desbaratado à força de cassetetes, tiros e bombas. As vítimas, contadas aos montes, eram principalmente mulheres e crianças. Os muitos prisioneiros, imediatamente conduzidos aos porões da polícia política e submetidos a intermináveis interrogatórios, geralmente não sobreviviam às torturas. A violenta repressão era justificada pela doutrina de segurança sul-africana como prevenção ao movimento comunista internacional   balela ouvida por brasileiros em tempos igualmente bicudos. Entre os prisioneiros está Jonatham (Mpofu), filho menor de Gordon (Ntshowa), jardineiro da família branca de classe média de Ben Du Toit (Sutherland). Ben, professor de história, é homem bom mas totalmente alienado à situação do país. Quando Jonatham é solto, com as nádegas laceradas por açoites, acredita simplesmente que ele cometeu algo muito grave para merecer tamanho castigo.


Ben Du Toit (Donald Sutherland) e Stanley Makhaya (Zakes Mokae) em luta contra o apartheid
  

Fichado, o jovem é marcado pela repressão. Novamente aprisionado, perece na tortura. Os algozes lhe exigiram nomes das lideranças dos protestos em Soweto. O corpo desaparece. Gordon sai em sua busca. Também é aprisionado. Emily (Nishinga), sua esposa, alerta Ben. Este percorre os cárceres e ouve as costumeiras justificativas das autoridades. Acredita na sinceridade e boas intenções da polícia. Os oficiais afirmam que o detido está bem e será liberado após os procedimentos de praxe. Portanto, não há motivos para preocupações. Mais tarde receberá a trágica notícia de sua morte.


Incrédulo, acompanhado de Stanley Makhaya (Mokae), amigo de Gordon, Ben vai a Soweto, território fechado aos brancos. Passa mal diante do corpo do jardineiro tomado por hematomas. Ato contínuo desperta para a realidade da África do Sul. Busca justiça para a família do empregado. Contrata Ian Mckenzie (Brando), famoso advogado anti-apartheid e defensor dos direitos humanos para mover ação contra o Estado.


Ben Du Toit (Donald Sutherland), acompanhado de Stanley Makhaya (Zakes Mokae), começa a conhecer os duros e brutais bastidores da segregação racial na África do Sul

Susan Sarandon é a jornalista Melanie Bruwer

Protestos no tribunal


No tribunal os esforços de McKenzie são inúteis. O julgamento assume tonalidades surreais. As provas mais evidentes são recusadas. Os acusados — entre os quais o Capitão Stulz (Prochnow), carrasco de Gordon — atribuem às vítimas as responsabilidades por suas próprias mortes. A defesa se baseia em teses absurdas, prontamente encampadas pela Corte. Inconformados, Ben, Stanley, Emily e Melanie Bruwer (Sarandon)   jornalista branca progressista   preparam dossiê sobre as mortes de Gordon e Jonathan. Mas o posicionamento público do personagem de Sutherland lhe custará o emprego. Aos poucos perderá a família. Primeiro é evitado pela esposa Suzan (Suzman); depois, será acusado de traição. Ela se cobre de vergonha ao ver na primeira página dos jornais a foto do marido em abraço solidário à viúva de Gordon após a farsa do julgamento. Em casa, Ben conta apenas com o apoio de Johan (Elmes), o filho caçula. De outro lado, o arbitrário capitão Stulz passa a pressioná-lo. A residência dos Du Toit é revistada e bombardeada. Emily é assassinada. Melanie é expulsa do país. Suzette (Harker), filha adolescente de Ben, colabora com a repressão. Acredita inocentemente que assim o salvará e tudo voltará a ser como antes. Sua intervenção gera o assassinato do pai por Stulz. Quanto a este, será morto por Stanley, ao amanhecer, quando uma publicação liberal chega às bancas com a divulgação do dossiê incriminador do Estado.


Ben Du Toit (Donald Sutherland) com a filha Suzette (Susannah Harker) - uma inocente útil aliada à repressão


À medida que avança, mais hollywoodiano, convencional e previsível o filme fica. Mesmo assim, apoiando-se nas personagens de Suzan, Suzette e nos colegas de trabalho de Ben, Euzhan Palcy pinta um quadro implacável e nada lisonjeiro da sociedade branca sul-africana. Seus integrantes, não importa se desinformados ou iludidos, são considerados cúmplices do regime segregacionista. Acreditam piamente na naturalidade do mundo em que habitam. Assim contribuem para a legitimação de uma relação social firmada na intolerância e no ódio.


Marlon Brando é o advogado defensor dos direitos humanos Ian Mackenzie

  
Os atores de Assassinato sob custódia — comprometidos com a luta anti-apartheid — trabalharam por um terço do que normalmente receberiam. Marlon Brando agita a tela numa aparição fulgurante de apenas 10 minutos. A princípio, atuaria de graça. Como isso é proibido pelo Sindicato dos Atores, recebeu o valor mínimo regulamentado. Sua participação nos resultados gerados pela bilheteria foi direcionada às organizações anti-apartheid. Ele aceitou trabalhar para Euzhan Palcy graças à boa impressão que lhe causou Rue cases nègres. Porém, não gostou da montagem final de Assassinato sob custódia. Sustentou que foi editado pela companhia produtora à revelia da diretora. Temerosa de ser banida do mercado exibidor da África do Sul, a Metro-Goldwyn-Mayer amaciou o impacto do filme ao deixar no chão da sala de montagem passagens consideradas excessivamente fortes, que poderiam mexer com as susceptibilidades do regime segregacionista.





Produção de elenco: Mary Selway, Wallis Nicita. Música: Dave Grusin. Montagem: Sam O’Steem, Glenn Cunmingham. Desenho de produção: John Fenner. Direção de fotografia (cores): Kelvin Pike, Pierre-William Glenn. Produção executiva: Tim Hampton, Mary Selway. Roteiro: Colin Welland, Euzhan Palcy, com base em romance de André Brink. Direção de arte: Mike Phillips. Supervisão da direção de arte: Alan Tomkins. Decoração: Peter James. Figurinos: Charles Knode. Maquiagem: Magdalen Gaffney. Supervisão de maquiagem: Tommie Manderson. Penteados: Vera Mitchell, Lisa Tomblin. Chefes de maquiagem: Peter Robb-King, Jane Royle. Gerente de produção: Rory Kilalea. Executivo da pós-produção: Leonard C. Kroll. Gerente de unidade de produção: Jeannie Stone. Supervisão da produção: Vincent Winter. Primeiros assistentes de direção: Jonathan Benson, Michel Cheyko. Segundos assistentes de direção: Michel Ferry, Efstathios Fillis, Gerard Wall. Terceiros assistentes de direção: Antony Ford, Isaac Mabhikwa. Storyboard: Martin Asbury, Bill Stallion. Esboços: Michael Boone. Assistente de direção de arte: Tracy Dunn. Contrarregra: Tony Teiger. Assistente de direção de arte: Carine Tredgold. Gerente de construções: Bill Welch. Gravação de som: James Cavarretta, Jack Keller. Mixagem de som: Roy Charman. Mixagem da regravação de som: Rick Kline. Mixagem da regravação de som: Donald O. Mitchell, Kevin O'Connell. Ruídos de sala: James Moriana, Jeffrey Wilhoit. Operador de microfones: David Pearson. Supervisão da edição de som: Bill Phillips. Supervisão de efeitos especiais: David Harris, John Morris. Coordenação de dublês: Marc Boyle. Dublês: Valentino "Val" Musetti, Mark Anthony Newman, Tip Tipping. Eletricistas-chefe: Bob Bremner, John Higgins. Fotografia adicional: Dominique Chapuis, Ernest "Ernie" Day. Assistente de câmera: Kevin Edland, Bill Thornhill. Operadores de câmera: Jamie Harcourt, Jean Harnois, Michael Roberts, Jean-Claude Vicquery, David Worley. Fotografia de cena: David James. Primeiro assistente da segunda câmera: Martin Kenzie. Segundo assistente de câmera: Clive Mackey. Primeiro assistente de câmera: Eamonn O'Keeffe. Operador da dolly (Inglaterra): Tony Rowland (não creditado). Eletricista: Jimmy Worley (não creditado). Seleção de vozes: Barbara Harris. Produção associada de elenco: Joanne Zaluski. Guarda-roupa feminino: Elaine Dawson. Supervisão de guarda-roupa: Germinal Rangel. Corte do negativo: Donah Bassett. Segundo assistente de montagem: Paul Elman. Correção de cor: Bob Hagans. Edição musical: Else Blangsted. Músico: James Thatcher. Continuidade: Many Barthod, Ene Watts. Serviços legais: Robert Conway. Coordenação da produção: Marianne Jacobs, Janine "Lodge" Modder. Consultor de dialetos: Tim Monich. Assistente ao produtor: Alexandra Stone. Publicidade: Ann Tasker. Estudios de filmagem: Pinewood Studios. Equipamentos de iluminação: Lee Lighting. Sistema de mixagem de som: Dolby. Tempo de projeção: 107 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1996)



[1] A dry white season: It is a dry white season/dark leaves don’t last, their brief lives dry out/and with a broken heart they/dive down gently headed for the earth/not even bleeding./It is a dry white season brother, only the trees know the pain as they still stand erect/dry like steel, their branches dry like wire,/indeed, it is a dry white season but seasons come to pass. Cf. ALBAGLI NETO, Benjamin. Assassinato sob custódia. Cinemin. Rio de Janeiro, Brasil-América, n. 62, 5. série, abr.-maio/1990. p. 16.
[2] Cf. SCHILD, Susana. Volta de Marlon Brando. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22/nov/1989. Caderno B.

4 comentários:

  1. Eugenio,

    Não conheço a pelicula. Porém, de tudo que li e por todo este conteudo, fiquei muito inclinado a vela. Ademais é um filme de 1989 e não sei como o deixei passar em branco.

    Vou estar muito atento, pois o Canal de TV da SKY, o CULT, passa muito destas peliculas mais antigas e manterei os olhos aberto.

    Outra bela postagem do bom amigo escritor.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir;

      Apesar de todos os problemas do filme e da forma quadrada que preside a realização, confesso que também gostaria muito de rever CULPADO POR SUSPEITA. Foi apenas uma vez que o vi.

      Quanto à Sky e ao canal Telecine Cult, como estão ficando ruins, não acha? Cada vez mais!

      Abraços.

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  2. Eugenio,

    Tens razão. E razão até demais!
    E o pior é que estão repetindo muito os filmes, sem falar na sessão faroeste das segundas, que não aparece nada de novo. Sempre reprise dos mesmos filmes.

    Reclamo muito para lá, mas nunca me respondem. Acho que reconhecem os erros , além de receberam, acredito, muitas reclamações como as minhas.

    Entretanto, muito pior está o TCM, que chegou prometendo novidades, com a passagem de classicos antigos, e hoje é uma fabrica de repetições e sem qualquer qualidade de imagem.

    Desagradável demais!!!

    Grande abraço

    jurandir_lima@bopl.com.br

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    1. Minhas relações com a Sky chegaram ao fim, Jurandir. Não dava mais para manter uma assinatura caríssima com tão pouco de qualidade em troca. Os canais de filmes, os que mais interessavam, nada mais exibem de interessante, a não ser uma vez ou outra. Para não dizer que rompi totalmente com a operadora, reduzi os serviços ao básico. Fiquei praticamente reduzido aos noticiosos e aos canais de séries. A promessa da TV por assinatura como serviço de qualidade durou pouco tempo no Brasil. De certa forma, isso já era previsto, desde que a Direct TV foi adquirida pela Sky. Monopólio nunca é bom.

      Abraços.

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