Um dia complicado (A busy day) é o décimo quarto filme
protagonizado por Charles Chaplin em 1914, ano em que estreou no cinema e na Keystone
de Mack Sennett. Até 1970 foi dado como perdido. Não se sabe exatamente quem o
dirigiu. Atualmente, tem valor essencialmente histórico. Resiste como
curiosidade ao cinéfilo interessado nos primórdios do desenvolvimento da
narrativa e da linguagem cinematográficas bem como no modo apressado e
descuidado de se fazer filmes, típico do período e principalmente da Keystone.
Chaplin, ainda distante de Carlitos, interpreta uma megera enciumada, afoita e
agressiva na tentativa de enquadrar o marido mulherengo durante uma festa
cívica. Com duração de apenas 6 minutos, é exemplo bem acabado de comédia
pastelão com movimentação contínua e ritmo acelerado do início ao fim.
Um dia complicado
A busy day
Direção:
Mack
Sennett
Produção:
Mack Sennett (não creditado)
Keystone Film Company
EUA
— 1914
Elenco:
Os não creditados Charles Chaplin, Mack Swain, Phyllis
Allen, Ted Edwards, Billy Gilbert, Mack Sennett.
A apreciação credita a Mack Sennett a direção de Um dia complicado. Mas há controvérsias sobre a real identidade do realizador. Seria Mack Sennett, Mabel Normand, Charles Chaplin ou George Nichols? |
A direção desta rasgada e rápida comédia maluca com pouco
mais de 6 minutos de duração costuma ser atribuída a Charles Chaplin. Assim
registra o estudo de Carlos Heitor Cony[1].
Porém, registros da companhia Keystone e do próprio criador de Carlitos não
confirmam a informação. Provavelmente, então, os créditos pela realização podem
ser do próprio Mack Sennett ou da temperamental Mabel Normand, que volta e meia
batia o pé e assumia a condução de alguns filmes da empresa — para desespero
de Sennett e do próprio Chaplin. No entanto, segundo informações veiculadas
pelo Internet Movie Data Base (Imdb)[2],
George Nichols — espécie de gerente e faz tudo da Keystone — pode ser o titular
da produção.
Um dia complicado
foi dado como perdido até 1970, quando uma cópia razoavelmente bem preservada,
em suporte do perigosamente inflamável acetato, foi encontrada. É um exemplo de
produção cinematográfica de valor puramente histórico. Resiste apenas como
curiosidade ao cinéfilo interessado nos primórdios do desenvolvimento da
narrativa e da linguagem cinematográficas, bem como no modo descuidadamente
apressado, a toque de caixa, de se fazer filmes, típico não somente da Keystone
mas de boa parte da produção do período. Na ocasião, o cinema era uma diversão
assumidamente popular, para não dizer popularesca. Os primitivos estúdios
filmavam a todo vapor, operando azeitadas e contínuas linhas de montagem para
abastecer os nicklodeons e feiras de
variedades em seus fornecimentos de diversão de consumo fácil aos apetites pouco
burilados das classes trabalhadoras. O cinema ainda estava distante dos seus
períodos mais glamourosos. Mesmo assim, Chaplin já era atração, espécie de
coqueluche do público a antecipar a loucura do star system. Mais de uma vez apelou ao recurso de se vestir de
mulher para escapar do assédio de fãs mais aguerridos. Parte dessa experiência
de efeminação é aproveitada em Um dia complicado. Assim, não deve o
espectador, ainda mais o hodierno, estranhar o que parece ausência de Chaplin
neste filme do qual é astro. Ele marca presença, sim, vestido de mulher e
interpretando uma megera, de forma até convincente não fossem os trejeitos da
comédia pastelão, repletos de grosseria, que é obrigado a incorporar.
Acima, ao centro e abaixo: um travestido Charles Chaplin é a ciumenta e grosseira megera de Um dia complicado |
Um dia complicado
traz o primeiro personagem feminino de Chaplin. Repetirá a proeza também em
1914, no vigésimo quarto título que protagonizou para a Keystone: The
masquerader, o qual também dirigiu. Porém, nessa realização de
aproximadamente 10 minutos, as particularidades biológicas do sexo oposto estão
excluídas. Ele vive apenas um ator desleixado e mulherengo. De tanto aprontar, estragou
o filme no qual atuava. Despedido, retorna disfarçado de mulher.
Realizado no incrível tempo de apenas 120 minutos, Um
dia complicado é, certamente, o melhor exemplo do método Keystone de filmar.
É o décimo quarto filme que Chaplin estrelou para a companhia de Mack Sennett. Como
no plot de Corrida de automóveis para
meninos (Kid auto races at Venice, 1914) — segundo título no qual atua —
seu personagem volta a atrapalhar as atividades de uma equipe de filmagem. Mas,
além disso, intromete-se de forma comprometedora em um evento inteiro. Tomando
emprestadas as roupas e adereços de Alice Davenport[3],
atriz da Keystone, Chaplin faz a esposa muito ciumenta e agressiva de um homem
(Swain) flagrado no flerte a outras mulheres quando o casal assistia a um
desfile cívico.
O marido (Mack Swain) e a enciumada esposa (Charles Chaplin) durante um evento cívico |
Mack Swain (à esquerda) é o mulherengo marido da megera (à direita) interpretada por Charles Chaplin |
Tal qual a corrida de automóveis do título referido, o
desfile é exemplo de acontecimento real acintosamente instrumentalizado como
motivo e/ou pano de fundo para a encenação dos atos burlescos da Keystone. É
incrível o que fazem equipe e atores, sem a menor cerimônia, em meio aos
eventos ou posicionados junto ao público que os acompanhava. A fórmula é
simplória. A destrambelhada mulher saltita, cai, chuta, rodopia, corre, agride
com o guarda-chuva não apenas o marido, mas a todos que, de certo modo,
interferem nos laços sagrados do seu matrimônio. Da plateia a baderna descamba
para os bastidores do evento e se intromete no meio dele. Depois de atrapalhar
a equipe de filmagens, o personagem de Chaplin — como não poderia deixar de ser
— apronta com a polícia à base de chutes no traseiro. Tudo termina à beira do
cais, onde o público se acotovela para prestigiar uma regata. No
empurra-empurra resultante das tentativas de enquadrar o marido, a mulher é
lançada ao mar — momento em que o filme termina.
Ao final, depois de muita confusão, a megera (Charles Chaplin) é lançada ao mar |
As tomadas, com câmera invariavelmente fixa,
captam planos de conjunto ou em meia distância conforme o figurino
generalizado da época, excluídas, claro, as experimentações de David Wark
Griffith em realizações que culminariam em O nascimento de uma nação (The
birth of a nation, 1914) e, consequentemente, em novas maneiras de
comunicar as histórias contadas pelo cinema.
A megera (Charles Chaplin) enquadra o marido mulherengo (Mack Swain) diante da câmera e em meio a um desfile cívico |
Uma apreciação com excesso de má vontade classificaria Um
dia complicado como mero exercício de rotina. Mas algo se destaca. É a
maneira, ainda rudimentar, encontrada pela Keystone, de dar vazão a um
primitivo trabalho de edição. As filmagens acontecem em dois locais razoavelmente
distantes — mas nos quais os personagens se movimentam praticamente sem sofrer
solução de continuidade. Após os reordenamentos possibilitados pela montagem, os
cenários parecem contíguos: a avenida de Los Angeles na qual acontece o desfile
e o cais onde a acontece o epílogo.
Outra qualidade a destacar é o ritmo. A
"peteca" não cai depois de lançada. A
aceleração no desenvolvimento das ações é mantida do início ao fim. Ao
espectador contemporâneo — que desconhece as mudanças acontecidas na forma de se
fazer cinema e no gosto dos espectadores — tudo pode soar muito pueril e
despropositado. Mas com alguma boa vontade verá que o filme cumpre razoavelmente
bem a tarefa de oferecer diversão descompromissada a um público em tudo
distante das exigências, por assim dizer, mais sofisticadas das plateias de
hoje.
A megera (Charles Chaplin) interrompe as filmagens, briga com a polícia e perturba um evento cívico À direita, o marido interpretado por Mack Swain |
Um dia complicado
traz a terceira colaboração de Mack Swain com Chaplin. Ele foi, provavelmente,
o melhor suporte do criador de Carlitos nos tempos da Keystone. Atuaram juntos
pela primeira vez em Bobote em apuros (Caught
in a cabaret, 1914); a seguir em Caught in the rain (1914).
O jovem Charles Chaplin |
Argumento: Charles
Chaplin (não creditado). Direção de
fotografia (preto-e-branco): Frank D. Williams (não creditado). Montagem: Charles Chaplin (não creditado).
Tempo de exibição: 6 minutos.
(José
Eugenio Guimarães, 1994)
[1] CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 58.
[2] A BUSY day. <http://www.imdb.com/title/tt0003733/combined>,
acessado em 12 ago. 1994.
[3]
CONY, Carlos Heitor. Op. cit. p. 58.
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