domingo, 6 de abril de 2014

SARACENI E A CRÔNICA DA DECADÊNCIA FAMILIAR A PARTIR DE LÚCIO CARDOSO

Com muitas premiações acumuladas no Brasil e exterior, A casa assassinada (1970), de Paulo César Saraceni, tem ilustre time de admiradores: Octávio de Faria, Glauber Rocha, Paulo Emílio Sales Gomes e Guilherme de Almeida Prado. O roteiro — adaptado do denso romance de Lúcio Cardoso, A crônica da casa assassinada — acompanha a decadência dos Menezes, tradicional família de origens rurais. É um filme sussurrado, alimentado de segredos e meias conversas, interpretado por elenco afinado com destaque para Carlos Kroeber na composição do difícil e incômodo Timóteo. Infelizmente, a opção pela filmagem em tela larga se mostrou equivocada, pois resultou na dispersão de elementos narrativos claustrofóbicos e intimistas plenamente condizentes com as pretensões da realização. Mesmo assim, A casa assassinada é obra a redescobrir e valorizar. O célebre casarão dos Pentagna em Valença/RJ serviu de cenário às filmagens.






A casa assassinada

Direção:
Paulo César Saraceni
Produção:
Paulo César Saraceni, Sérgio Saraceni, Mário Carneiro
Planiscope Planificações e Produções Cinematográficas Ltda.
Brasil — 1970
Elenco:
Carlos Kroeber, Nelson Dantas, Augusto Lourenço, Norma Bengell, Rubens Araújo, Josef Guerreiro, Tetê Medina, Nuno Veloso, Leina Krespi.



Lúcio Cardoso, autor do romance (à esquerda), e o diretor Paulo César Saraceni


Este quarto longa metragem de Paulo César Saraceni é resultado de anseio antigo. Em 1960 o diretor manifestou o primeiro desejo de realizá-lo, tão logo terminou a leitura das mais de 500 páginas do romance A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. No entanto, dez anos foram necessários para concretizar o projeto. Enquanto o momento não chegava, Saraceni estudou no Centro Experimental de Cinematografia, em Roma, de 1960 a 1961. Enquanto isso, outros eram contaminados pela ideia de transformar o romance em filme. Edla Van Steen — atriz revelada por Walter Hugo Khouri em Na Garganta do Diabo (1959) — manifestou a Saraceni o desejo de interpretar Nina, principal personagem feminino — papel que terminou com Norma Bengell —, e recomendou Luchino Visconti para adaptar a história — indicação plena de sentido, pois o cineasta italiano abordava como poucos o tema da decadência, central na obra de Lúcio Cardoso. Porém, a esta altura, o roteiro já recebia as primeiras pinceladas de Saraceni, auxiliado pelo autor — entusiasta da realização desde o primeiro momento.


O diretor voltou ao Brasil disposto a fazer o filme. Não encontrando condições propícias, realizou Porto das Caixas (1962) — com base em argumento de Lúcio Cardoso — seguido do curta Integração racial (1964). A seguir vieram O desafio (1965)  radiografia intimista do ambiente de perplexidade que tomou conta da intelectualidade brasileira após o golpe militar de 1964, realizada no calor da hora  e Capitu (1968)  adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis.


O roteiro de A casa assassinada guarda fidelidade ao original. Exigências da produção, infelizmente, provocaram profundas simplificações. Decorre daí a estranha linearidade da narrativa, crônica da decadência dos Menezes — tradicional família mineira — passada em ambiente rural. Em Valença/RJ, o casarão colonial dos Pentagna forneceu o ambiente às locações. Foi aí que Lúcio Cardoso concebeu a trama.


Timóteo (Carlos Kroeber) e Nina (Norma Bengell)


O filme tem narrativa centrada em Nina. Desenvolve-se em dois tempos: na década de 50 e cerca de 20 anos após. Na primeira fase o espectador é apresentado ao núcleo dos Menezes: os irmãos Demétrio (Dantas), Valdo (Araújo) — casado com Nina — e Timóteo (Kroeber) — homossexual em permanentes trajes femininos. Este, por ordem expressa da família, passa os dias trancafiado em seus aposentos, sob a alegação de que é a mais abominável das vergonhas. O papel de Nina é semelhante ao de anjo exterminador. Ela, como corpo estranho, chega para apressar a lenta dissolução da família. Torna-se confidente de Timóteo. Ao mesmo tempo nutre paixão proibida pelo jardineiro dos Menezes, o rapazola André (Lourenço), que sempre depositava violetas na janela do seu quarto. Timóteo, também atraído pelo moço, recolhia as flores todas as manhãs.


Nelson Dantas interpreta Demétrio Menezes

Timóteo (Carlos Kroeber)
  

O jardineiro é morto tragicamente assim que sua atração por Nina é descoberta. Ela, em nome da honra familiar, é enviada ao anonimato na cidade grande. Retornará em 17 anos, à beira da morte, acompanhada do filho Alberto (Lourenço), com o qual mantém estranha relação. Ele é imagem e semelhança de André. O falecimento de Nina apressa o fim simbólico dos Menezes. É a pá de cal ao que restava de aparência e honradez. Timóteo aproveita o velório para encenar um  espetáculo. Emancipado da clausura, maquiado e vestido como mulher, aproveita o momento para uma performance triunfal. Ao lado do caixão, comporta-se como autêntica carpideira. Em prantos e imprecações, constrangendo familiares e demais presentes, acrescenta a definitiva nota fúnebre ao carcomido brasão familiar.


Nina (Norma Bengell)

A apoteose de Timóteo (Carlos Kroeber) durante o velório de Nina (Norma Bengell)


A casa assassinada é filme sussurrado. Dialoga com o presente constantemente alimentado de passado, segredos e meias conversas. Os personagens não são revelados em sua inteireza. Cada qual, parece, faz questão de conhecer apenas uma parte dos assuntos tratados e discutidos no isolamento e escuridão de porões, quartos e corredores. Dessa forma, os Menezes vão vivendo de aparências, sombras, fantasmas e recordações. A fotografia de Mário Carneiro e a música de Tom Jobim fornecem a atmosfera essencial ao clima e ao andamento da narrativa. O filme foi rodado em tela larga — experiência rara no cinema brasileiro. A opção, pelo visto, mostrou-se equivocada a uma história quase toda encenada em interiores. Os tons claustrofóbicos e intimistas da narrativa se diluem com a ampliação do campo de encenação.


Norma Bengell no papel de Nina


Lúcio Cardoso, infelizmente, morreu sem ver o filme concluído. A casa assassinada recebeu muitos elogios na estreia. Conquistou, de imediato, respeitável time de admiradores como o escritor e crítico Octávio de Faria  que lhe endereçou referências entusiasmadas como membro do Conselho Federal de Cultura , Glauber Rocha, Paulo Emílio Sales Gomes, Guilherme de Almeida Prado e o Senador José Sarney. Este defendeu a inscrição de A casa assassinada no Festival de Brasília — época em que o país vivia sob o império do pleno arbítrio e da censura do governo do General Emílio Garrastazu Médici. As participações e premiações em certames nacionais e internacionais não demoraram a acontecer.


Rubens Araújo no papel de  Valdo Menezes

  
Em 1971, no Festival de Brasília, A casa assassinada ganhou os prêmios Candango de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Ator (Carlos Kroeber), Melhor Montagem e Melhor Trilha Musical. Na ocasião, Paulo César Saraceni também conquistou o Buriti de Prata e o prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal. O Festival Internacional do Panamá, 1971, premiou Paulo César Saraceni pelo Melhor Roteiro e Tetê Medina como Melhor Atriz. Em igual categoria Norma Bengell foi, nesse mesmo ano, agraciada com o prêmio Governador do Estado de São Paulo. Em 1973, no Festival de Gramado, Carlos Kroeber levou o Kikito de Melhor Ator e Antônio Carlos Jobim o de Melhor Trilha Musical. Do finado Instituto Nacional do Cinena (INC) a produção conquistou o Prêmio Adicional de Qualidade e Carlos Kroeber a Coruja de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante. Kroeber também ganhou, em 1972, o Prêmio Air France de Melhor Ator. Da associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 1972, foram premiados, com o troféu Carlitos, Paulo César Saraceni (Melhor Diretor), Carlos Kroeber (Melhor Ator), Norma Bengell (Melhor Atriz), Tetê Medina (Melhor Atriz Coadjuvante) e Mário Carneiro (Melhor Direção de Fotografia). A casa Assassinada também recebeu quatro láureas no Festival do Peru[1].


Timóteo (Carlos Kroeber) e Nina (Norma Bengell)


Carlos Kroeber ganhou projeção com A casa assassinada. É a melhor figura do filme. Sua desenvoltura como Timóteo — o tempo todo envergando trajes femininos, carregado de maquiagem e lantejoulas — é admirável. O incômodo personagem valeu ao ator oito prêmios em festivais nacionais e internacionais. Trata-se de papel difícil, ousado até, ainda mais considerando a época da realização.


Nina, interpretada por Norma Bengell


Direção de fotografia (Cinemascope, Eastmancolor), montagem: Mário Carneiro. Roteiro e adaptação: Paulo César Saraceni, baseado em A crônica da casa assassinada, romance de Lúcio Cardoso. Produção executiva: Sérgio Saraceni. Produtor associado: Roberto Baker. Assistente de fotografia: Pedro de Moraes. Maquiagem: Jean Louis. Assistente de maquiagem: Ronaldo Abreu. Contrarregra: Jarbas Amaral. Laboratórios: Rex, Somil, Áudio Studio B. Assistente de montagem, continuidade: Ana Maria Magalhães. Música: Antônio Carlos Jobim. Canções: Trem para Cordisburgo, de Antônio Carlos Jobim, O jardim abandonado, de Antônio Carlos Jobim; Milagres e palhaços, de Antônio Carlos Jobim; Chora coração, de Vinícius de Moraes (letra) e Antônio Carlos Jobim (música). Direção musical: Dori Caymmi. Cenografia, figurinos, assistência de direção, letreiros de apresentação: Ferdy Carneiro. Som: Geraldo José. Assistente de som: Victor Raposeiro. Gerente de produção: Marcelo Albuquerque. Tempo de exibição: 103 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1997)



[1] Não foram encontradas maiores informações sobre o ano em que aconteceu o festival, muito menos sobre as premiações conquistadas por A casa assassinada.






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