Com muitas premiações acumuladas no Brasil e exterior, A
casa assassinada (1970), de Paulo César Saraceni, tem ilustre time de
admiradores: Octávio de Faria, Glauber Rocha, Paulo Emílio Sales Gomes e
Guilherme de Almeida Prado. O roteiro — adaptado do denso romance de Lúcio
Cardoso, A crônica da casa assassinada — acompanha a decadência dos
Menezes, tradicional família de origens rurais. É um filme sussurrado,
alimentado de segredos e meias conversas, interpretado por elenco afinado com
destaque para Carlos Kroeber na composição do difícil e incômodo Timóteo. Infelizmente,
a opção pela filmagem em tela larga se mostrou equivocada, pois resultou na
dispersão de elementos narrativos claustrofóbicos e intimistas plenamente condizentes
com as pretensões da realização. Mesmo assim, A casa assassinada é obra
a redescobrir e valorizar. O célebre casarão dos Pentagna em Valença/RJ serviu
de cenário às filmagens.
A casa assassinada
Direção:
Paulo César Saraceni
Produção:
Paulo César Saraceni, Sérgio
Saraceni, Mário Carneiro
Planiscope Planificações e
Produções Cinematográficas Ltda.
Brasil — 1970
Elenco:
Carlos Kroeber, Nelson Dantas,
Augusto Lourenço, Norma Bengell, Rubens Araújo, Josef Guerreiro, Tetê Medina,
Nuno Veloso, Leina Krespi.
Lúcio Cardoso, autor do romance (à esquerda), e o diretor Paulo César Saraceni |
Este quarto longa
metragem de Paulo César Saraceni é resultado de anseio antigo. Em 1960 o
diretor manifestou o primeiro desejo de realizá-lo, tão logo terminou a leitura
das mais de 500 páginas do romance A crônica da casa assassinada, de Lúcio
Cardoso. No entanto, dez anos foram necessários para concretizar o projeto. Enquanto
o momento não chegava, Saraceni estudou no Centro Experimental de
Cinematografia, em Roma, de 1960 a 1961. Enquanto isso, outros eram
contaminados pela ideia de transformar o romance em filme. Edla Van
Steen — atriz revelada por Walter Hugo Khouri em Na Garganta do
Diabo (1959) — manifestou a Saraceni o desejo de interpretar Nina, principal
personagem feminino — papel que terminou com Norma Bengell —, e recomendou Luchino
Visconti para adaptar a história — indicação plena de sentido, pois o cineasta
italiano abordava como poucos o tema da decadência, central na obra de Lúcio
Cardoso. Porém, a esta altura, o roteiro já recebia as primeiras pinceladas de
Saraceni, auxiliado pelo autor — entusiasta da realização desde o primeiro
momento.
O diretor voltou
ao Brasil disposto a fazer o filme. Não encontrando condições propícias,
realizou Porto das Caixas (1962) — com base em argumento de Lúcio
Cardoso — seguido do curta Integração racial (1964). A seguir vieram
O
desafio (1965) — radiografia intimista do ambiente
de perplexidade que tomou conta da intelectualidade brasileira após o golpe
militar de 1964, realizada no calor da hora — e Capitu
(1968) — adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
O roteiro de A
casa assassinada guarda fidelidade ao original. Exigências da produção,
infelizmente, provocaram profundas simplificações. Decorre daí a estranha
linearidade da narrativa, crônica da decadência dos Menezes — tradicional
família mineira — passada em ambiente rural. Em Valença/RJ, o casarão colonial
dos Pentagna forneceu o ambiente às locações. Foi aí que Lúcio Cardoso concebeu
a trama.
Timóteo (Carlos Kroeber) e Nina (Norma Bengell) |
O filme tem
narrativa centrada em
Nina. Desenvolve-se em dois tempos: na década de 50 e cerca
de 20 anos após. Na primeira fase o espectador é apresentado ao núcleo dos
Menezes: os irmãos Demétrio (Dantas), Valdo (Araújo) — casado com Nina — e
Timóteo (Kroeber) — homossexual em permanentes trajes femininos. Este, por
ordem expressa da família, passa os dias trancafiado em seus aposentos, sob a
alegação de que é a mais abominável das vergonhas. O papel de Nina é semelhante
ao de anjo exterminador. Ela, como corpo estranho, chega para apressar a lenta
dissolução da família. Torna-se confidente de Timóteo. Ao mesmo tempo nutre
paixão proibida pelo jardineiro dos Menezes, o rapazola André (Lourenço), que
sempre depositava violetas na janela do seu quarto. Timóteo, também atraído
pelo moço, recolhia as flores todas as manhãs.
Nelson Dantas interpreta Demétrio Menezes |
O jardineiro é morto
tragicamente assim que sua atração por Nina é descoberta. Ela, em nome da honra
familiar, é enviada ao anonimato na cidade grande. Retornará em 17 anos, à
beira da morte, acompanhada do filho Alberto (Lourenço), com o qual mantém
estranha relação. Ele é imagem e semelhança de André. O falecimento de Nina
apressa o fim simbólico dos Menezes. É a pá de cal ao que restava de aparência
e honradez. Timóteo aproveita o velório para encenar um espetáculo. Emancipado da clausura, maquiado e
vestido como mulher, aproveita o momento para uma performance triunfal. Ao lado
do caixão, comporta-se como autêntica carpideira. Em prantos e imprecações, constrangendo
familiares e demais presentes, acrescenta a definitiva nota fúnebre ao
carcomido brasão familiar.
Nina (Norma Bengell) |
A apoteose de Timóteo (Carlos Kroeber) durante o velório de Nina (Norma Bengell) |
A casa
assassinada é filme sussurrado. Dialoga com o presente constantemente
alimentado de passado, segredos e meias conversas. Os personagens não são
revelados em sua inteireza. Cada qual, parece, faz questão de conhecer apenas
uma parte dos assuntos tratados e discutidos no isolamento e escuridão de
porões, quartos e corredores. Dessa forma, os Menezes vão vivendo de
aparências, sombras, fantasmas e recordações. A fotografia de Mário Carneiro e
a música de Tom Jobim fornecem a atmosfera essencial ao clima e ao andamento da
narrativa. O filme foi rodado em tela larga — experiência rara no cinema
brasileiro. A opção, pelo visto, mostrou-se equivocada a uma história quase
toda encenada em
interiores. Os tons claustrofóbicos e intimistas da narrativa
se diluem com a ampliação do campo de encenação.
Norma Bengell no papel de Nina |
Lúcio Cardoso,
infelizmente, morreu sem ver o filme concluído. A casa assassinada
recebeu muitos elogios na estreia. Conquistou, de imediato, respeitável time de
admiradores como o escritor e crítico Octávio de Faria — que lhe
endereçou referências entusiasmadas como membro do Conselho Federal de Cultura —, Glauber Rocha,
Paulo Emílio Sales Gomes, Guilherme de Almeida Prado e o Senador José Sarney.
Este defendeu a inscrição de A casa assassinada no Festival de
Brasília — época em que o país vivia sob o império do pleno arbítrio e da
censura do governo do General Emílio Garrastazu Médici. As participações e premiações
em certames nacionais e internacionais não demoraram a acontecer.
Em 1971, no
Festival de Brasília, A casa assassinada ganhou os prêmios
Candango de Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Ator (Carlos Kroeber), Melhor
Montagem e Melhor Trilha Musical. Na ocasião, Paulo César Saraceni também
conquistou o Buriti de Prata e o prêmio da Fundação Cultural do Distrito
Federal. O Festival Internacional do Panamá, 1971, premiou Paulo César Saraceni
pelo Melhor Roteiro e Tetê Medina como Melhor Atriz. Em igual categoria Norma Bengell
foi, nesse mesmo ano, agraciada com o prêmio Governador do Estado de São Paulo.
Em 1973, no Festival de Gramado, Carlos Kroeber levou o Kikito de Melhor Ator e
Antônio Carlos Jobim o de Melhor Trilha Musical. Do finado Instituto Nacional
do Cinena (INC) a produção conquistou o Prêmio Adicional de Qualidade e Carlos
Kroeber a Coruja de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante. Kroeber também ganhou, em
1972, o Prêmio Air France de Melhor Ator. Da associação Paulista de Críticos de
Arte (APCA), em 1972, foram premiados, com o troféu Carlitos, Paulo César
Saraceni (Melhor Diretor), Carlos Kroeber (Melhor Ator), Norma Bengell (Melhor
Atriz), Tetê Medina (Melhor Atriz Coadjuvante) e Mário Carneiro (Melhor Direção
de Fotografia). A casa Assassinada também recebeu quatro láureas no Festival do
Peru[1].
Timóteo (Carlos Kroeber) e Nina (Norma Bengell) |
Carlos Kroeber
ganhou projeção com A casa assassinada. É a melhor figura do filme. Sua desenvoltura
como Timóteo — o tempo todo envergando trajes femininos, carregado de maquiagem
e lantejoulas — é admirável. O incômodo personagem valeu ao ator oito prêmios
em festivais nacionais e internacionais. Trata-se de papel difícil, ousado até,
ainda mais considerando a época da realização.
Nina, interpretada por Norma Bengell |
Direção de fotografia (Cinemascope,
Eastmancolor), montagem: Mário
Carneiro. Roteiro e adaptação: Paulo
César Saraceni, baseado em A crônica da casa assassinada,
romance de Lúcio Cardoso. Produção
executiva: Sérgio Saraceni. Produtor
associado: Roberto Baker. Assistente
de fotografia: Pedro de Moraes. Maquiagem:
Jean Louis. Assistente de maquiagem:
Ronaldo Abreu. Contrarregra: Jarbas
Amaral. Laboratórios: Rex, Somil, Áudio
Studio B. Assistente de montagem,
continuidade: Ana Maria Magalhães. Música:
Antônio Carlos Jobim. Canções: Trem
para Cordisburgo, de Antônio Carlos Jobim, O jardim abandonado, de
Antônio Carlos Jobim; Milagres e palhaços, de Antônio
Carlos Jobim; Chora coração, de Vinícius de Moraes (letra) e Antônio Carlos
Jobim (música). Direção musical:
Dori Caymmi. Cenografia, figurinos, assistência
de direção, letreiros de apresentação: Ferdy Carneiro. Som: Geraldo José. Assistente
de som: Victor Raposeiro. Gerente de
produção: Marcelo Albuquerque. Tempo
de exibição: 103 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1997)
[1] Não foram encontradas maiores informações sobre o
ano em que aconteceu o festival, muito menos sobre as premiações conquistadas
por A
casa assassinada.
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