A Essanay é a companhia que abrigou Chaplin ao término de
seu contrato com a Keystone de Mack Sennett. Na nova casa, realizou e estrelou
14 filmes curtos. Também encontrou mais liberdade para criar e experimentar.
Como resultado desse conforto, definiu em O vagabundo (The tramp) — sexto filme
concebido para a empresa — os contornos do seu personagem emblemático. Ao mesmo
tempo, tornava o humor mais contemplativo e reflexivo. No entanto, a obra
seguinte, Carlitos na praia (By the sea), representa uma
involução. É um retorno ao desvairado burlesco típico da Keystone. Vai ver, Chaplin
pretendia reencontrar a simples e descompromissada diversão à larga. Mas o
resultado está longe de ser uma peça de pouca relevância no 'museu do cinema'.
Ao cinéfilo interessado também no desenvolvimento da arte fílmica, é sempre
interessante verificar como o gênio de Chaplin criava em meio à exiguidade dos
materiais e da inspiração, levando-se em conta, ainda mais, os progressos que
vinha obtendo.
Carlitos na praia
By the sea
Direção:
Charles Chaplin (não creditado)
Produção:
Jess Robbins (não creditado)
The Essanay
Film Manufacturing Company
EUA — 1915
Elenco (não
creditado):
Charles
Chaplin, Edna Purviance, Billy Armstrong, Bud Jamison, Ben Turpin, Margie
Reiger, Charles Insley, Leo White, Paddy McGuire.
Charles Spencer Chaplin |
Também conhecido
no Brasil como Carlitos à beira-mar, este curta de apenas um rolo é a sétima
realização de Chaplin na Essanay, para onde migrou ao término do contrato com a
Keystone de Mack Sennett, que o lançou no cinema e na qual atuou em 35 filmes
rodados em 1914.
Chaplin realizou
e estrelou 14 produções durante o período Essanay, o que compreende o ano de
1915. Seu novo emprego (His new job), Carlitos se diverte[1]
(A
night out), Campeão de boxe[2]
(The
champion), Carlitos no parque (In the park), Carlitos quer casar[3]
(The
jitney elopement) e O vagabundo (The tramp) antecedem a By
the sea.
Carlitos na praia pode ser visto
como um retrocesso ou um saudável interregno na carreira de Chaplin. O título que
lhe é imediatamente anterior, O vagabundo, coroa um esforço na
definição do personagem que seria sua marca registrada até O grande ditador (The
great dictator, 1940). Nesse curta de dois rolos, Carlitos se apresenta
plenamente consolidado. O tom desvairado da comédia pastelão — tão
característico da Keystone — começa a dar espaço ao humor mais contemplativo e reflexivo.
O riso se combina à amargura. O patético invade a cena. Carlitos, em sua vida
solta e desregrada, deixa de ser o anárquico representante da liberdade, mas
alguém marcado pelas limitações decorrentes da esfera da necessidade. A
existência passa a depender de esforços que exigem sangue, suor e lágrimas. A
felicidade é mais uma miragem distante.
O vagabundo (Charles Chaplin) contracena com o marido (Billy Armstrong) insatisfeito |
Carlitos na praia devolve Chaplin
ao pastelão. É uma descompromissada comédia maluca movida a equívocos, repleta
de tombos, agressões físicas e revolta de equipamentos e utensílios. A câmera,
na maioria das vezes, praticamente reencontra sua mirada estática na elaboração
de planos fixos. A movimentação se deve aos cortes que abrem e fecham o
enquadramento ou aos esforços dos personagens. É tudo muito simples e
rotineiro. Mesmo assim, se o espectador conseguir a proeza de se abstrair,
fazendo-se contemporâneo da realização, encontrará uma peça cativante. Além de
dirigi-la, Chaplin também elaborou o roteiro e cuidou da montagem. As filmagens
aconteceram em um único dia, nos cenários ainda desertos de Los Angeles, em
particular nos arredores de Crystal Pier.
É dia de vendaval.
O marido (Armstrong) está na praia a contragosto, premido pela esposa (Reiger)
que logo se afasta. Carlitos se aproxima, saboreando uma banana. Escorrega na
casca que lançou fora descuidadamente. A ventania arranca das cabeças todos os
chapéus. Para recuperá-los, arma-se uma confusão entre o personagem de Chaplin
e o contrariado marido. Trocam chutes e tabefes em meio a escorregões e trombadas.
Até piolhos entram em
cena. Outra mulher (Purviance) passa ao largo do tumulto e
ganha a atenção de Carlitos. É companheira do mal humorado grandalhão de
cartola (Jamison). Chega um policial (McGuire) para dar fim à contenda na
areia. É nocauteado e pisoteado. Carlitos e o marido, agora amigos, resolvem
celebrar na lanchonete. Reiniciam a briga, esfregando sorvetes um na cara do
outro quando se descobrem sem dinheiro para o pagamento da conta. Sem querer, o
grandalhão se envolve no tumulto. Outro policial (Van Pelt) tenta apaziguar os
ânimos. Carlitos consegue se livrar do imbróglio para cortejar a personagem de
Purviance. Depois, envolve-se com a esposa de seu oponente. Termina nas areias
da praia, num banco, acuado por todos os casais. O filme chega ao fim com os
personagens lançados abruptamente ao chão.
A esposa (Mergie Reiger) e o marido (Billy Armstrong) |
Chaplin retorna ao burlesco e contrai piolhos em Carlitos na praia |
No início da
carreira Chaplin declarou que suas comédias curtas exigiam apenas uma moça, um
banco e um policial. Em Carlitos na praia todos esses
elementos surgem em dobro. O
resultado final não é dos mais alvissareiros. Porém, cabe ressaltar: há aqui um
tipo de humor dos mais elementares, tornado rasteiro e obsoleto pelo avanço do tempo. Mas
é nisso que reside a graça de assistir Carlitos na praia quase 100 anos
após realizado. Para não se sentir simplesmente enfastiado diante de uma peça
de antiguidade, preservada pelo 'museu do cinema', o espectador deve se valer
da sensibilidade histórica e procurar entender o significado de filmes como as
comédias curtas de Chaplin e dos elementos que atraíam o público da época.
Outro casal, vivido por Edna Purviance e Bud Jamison |
Apesar de tudo, Carlitos
na praia não é obra totalmente envelhecida, com interesse apenas para cinéfilos
esforçados e historiadores. A realização, pelo que sei, é pioneira na
utilização de recursos humorísticos que seriam utilizados à exaustão em outros
filmes cômicos, inclusive pelo próprio Chaplin. Pela primeira vez se provoca
riso com o escorregão na casca de banana, com toda a graça que se poderia
extrair desse truque. Outro achado são os chapéus atados aos corpos com o
auxílio de barbantes. O vento não os leva simplesmente para longe. Rodopiam nas
proximidades dos personagens — o que amplia a inutilidade dos esforços despendidos
na tentativa de recuperá-los, ainda mais quando os fios se embaraçam. Estes
também auxiliam na graça quando utilizados nas reverências que Carlitos endereça
às mulheres, sem se valer das mãos para cumprimentá-las com o chapéu. A briga
com sorvetes tem o seu valor. O riso, aí, não decorre apenas do esforço físico
dos atores. Afinal, não se trata meramente de esfregar as cremosas iguarias nos
rostos um do outro, mas da leveza dos movimentos, orquestrados como suave bailado.
Não deixa de ser genial a gag dos
piolhos que Carlitos contrai de seu oponente. A praga não é vista,
evidentemente. Mas sobra para o espectador a piada visual decorrente dos trejeitos
do personagem tomado de coceiras provocadas pelos bichinhos. E não se pode
esquecer o temor revestido de antipatia que tanto Chaplin como seu personagem
sentiam pelas representações fardadas da autoridade. Vingam-se delas,
reduzindo-as ao ridículo das situações mais humilhantes.
O vagabundo (Charles Chaplin) e seu oponente (Billy Armstrong) na sorveteria. |
Formalmente, o
filme apresenta progressos. Carlitos não entra em cena bruscamente, surgindo de
um dos cantos do quadro. Avança em direção à câmera, descendo uma rua. O
personagem faz um movimento obliquo à objetiva, contra o simples e tão
comum recurso do paralelismo. A maneira de filmar também se desvencilha, em
alguns momentos, da fixidez dos planos de média distância, que revelam os
personagens quase sempre de corpo inteiro. Há alguns primeiros planos e
aproximações de close-ups.
O vagabundo e galanteador (Charles Chaplin) acuado ao final de Carlitos na praia. À esquerda, Edna Purviance e Bud Jamison; à direita, Billy Armstrong e Margie Reiger |
Por fim, é sempre
digno de nota ver o que Chaplin conseguia extrair de parcos adereços e da
maleabilidade corporal peculiar a ele e aos companheiros de cena. Pouco se
exige de Edna Purviance, que será de suma importância em realizações vindouras
da chapliniana. Mas Billy Armstrong e Bud Jamison em tudo colaboram, principalmente
o primeiro. Há também a rápida aparição do magricela e estupendo Ben Turpin no
papel de um louco.
Imagem de 1915: Charles Chaplin com o cast da Essanay |
Roteiro: Charles Chaplin (não creditado). Direção de fotografia (preto e branco):
Harry Ensign (não creditado). Montagem:
Charles Chaplin (não creditado). Assistente
de direção: Ernest Van Pelt (não creditado). Tempo de exibição: 14 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1994)
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