domingo, 13 de outubro de 2013

CANIBALISMO E OUTRAS BIZARRICES NO ESTRANHO CONDOMÍNIO DE UMA PARIS SOMBRIA E APOCALÍPTICA

O primeiro longa metragem dos franceses Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet é uma desvairada e inusitada comédia de absurdos na qual se acumulam muitas esquisitices. Delicatessen (Delicatessen, 1991) merece inclusão na seleta categoria dos filmes únicos. As situações são encenadas num prédio mal afamado e conservado de uma Paris atemporal e decadente. Trajes e feições remetem aos anos 50, mas a cenografia e a atmosfera dos ambientes sugerem um futuro pouco promissor, tingido de apocalipse. O abastecimento alimentar dos condôminos, à base de proteína animal principalmente, é garantido pelo açougue instalado no térreo do edifício. Mas o fornecimento regular do produto depende da constante rotatividade dos zeladores. A fome ronda o local, habitado por tipos os mais excêntricos. A produção forma um conjunto desigual, nem sempre conduzido de forma satisfatória pelos realizadores.







Delicatessen

Delicatessen

Direção:
Jean-Pierre Jeunet, Marc Caro
Produção:
Claudie Ossard
Constellation, Union Générale Cinématographique (UGC), Hachette Première, Sofinergie Films, Sofinergie 2, Investimage 2, Investimage 3, Fondation GAN pour le Cinéma, Victoires Productions
França — 1991
Elenco:
Dominique Pinon, Marie-Laure Dougnac, Jean-Claude Dreyfus, Silvie Laguna, Anne-Marie Pisani, Karin Viard, Ticky Holgado, Rufus, Jean-François Perrier, Jacques Mathou, Howard Vernon, Chick Ortega, Eric Averlant, Dominique Zardi, Dominique Bettenfeld, Jean-Luc Caron, David Defever, Raymond Forestier, Robert Baud, Pascal Benezech, Boban Janevski, Mikael Todde, Edith Ker, Patrick Paroux, Maurice Lamy, Marc Caro, Bernard Flavien, David Defever, Clara.



Os diretores Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet - 1995



Delicatessen merece inclusão na seleta categoria dos filmes únicos. Como ele, pode-se dizer, não há nada parecido sob o céu do cinema. Apesar de não formar um conjunto satisfatoriamente entrosado, esbanja criatividade em vários momentos, a começar pela apresentação dos créditos: os membros da equipe de realização são identificados junto de peças ou instrumentos alusivos às suas respectivas atividades e ao estado arruinado do prédio que serve de cenário às histórias contadas. O nome do diretor de fotografia (Darius Khondji) aparece sobre a sucata de uma máquina fotográfica; o do músico (Carlos D'Alessio) junto a um long play quebrado; o da figurinista (Valérie Pozzo Di Borgo) entre retalhos e sobras de costura etc.


É comédia de absurdos (será?), sucessão desvairada de inusitadas esquisitices encenadas no mal afamado edifício situado no lote 129-A da Praça de Albumina de uma Paris atemporal e para lá de decadente. O lugar é um Balança-Mas-Não-Cai, o caos em termos de moradia. Os trajes e feições dos personagens lembram os anos 50, mas o desenho de produção e as situações sugerem um futuro nada promissor, de tons apocalípticos.


Delicatessen é o longa de estreia de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, egressos do curta-metragem e do videoclip musical. O filme não nega essas origens. Mas também busca inspiração no vasto universo da linguagem publicitária e dos quadrinhos futuristas.


Aurore Interligator (Silvie Laguna) ouvindo vozes


A edificação  caindo de podre, atacada por infiltrações, defeituosa nos utensílios e equipamentos  é ocupada por tipos os mais excêntricos, grotescos e bizarros. O solitário homme grenouille (Vernon) habita o porão entre infiltrações e bichos de estimação: lesmas, caracóis e rãs. Os irmãos Robert (Rufus) e Roger Kube (Mathou) vivem da fabricação de inusitadas caixas mugidoras. O esnobe casal sexomaníaco Aurore (Laguna) e Georges Interligator (Perrier) costuma se largar ao prazer numa cama de molas que rangem com elevada estridência, comunicando o que fazem para todo o prédio. Em outros momentos ela é ouvinte privilegiada de vozes que a convocam a seguidas e hilárias tentativas de suicídio ao passo que o marido é maníaco espectador de programas captados por um aparelho de televisão em preto-e-branco. Também há o desempregado Marcel Tapioca (Holgado) — dedicado ao sustento da esposa, Madame Tapioca (Pisani), da sogra (Kerr) e de duas crianças endiabradas —, virando-se como pode na qualidade de vendedor ambulante de bugigangas de pouca serventia como o apito que atrai o rato para a ratazana e o aparelho detector de idiotices; a desfrutável Madamoiselle Plusse (Viard), amante de Clapet (Dreyfus), proprietário do Delicatessen — açougue localizado no térreo — e pai da jovem virtuosa e míope Julie Clapet (Dougnac). O maior prazer da garota é tocar violoncelo, pelo menos até a chegada do novo zelador, o sensível Louison (Pinon), artista de circo, expert no sopro de bolas de sabão e exímio músico de serrote.  


Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac) e Louison (Dominique Pinon) em idílio musical no alto do edifício

O açougueiro Clapet (Jean-Claude Dreyfus)


A rotina do edifício é quebrada quando Julie, apaixonada por Louison, decide salvá-lo do fim de todos os demais zeladores: viraram porções de carne fresca vendidas a quilo no Delicatessen. O filme começa com o açougueiro afiando os instrumentos de trabalho. Enquanto isso, o zelador anterior (Benezech) tenta escapar ao triste destino, ocultando-se em uma lata de lixo. Mas é descoberto e abatido. No dia seguinte, depois de convenientemente processado e fatiado, é vendido e servido nas refeições de todos os apartamentos. Do canibalismo escapam apenas Julie e o morador do porão. Ela prefere chá e biscoitos. Quanto a ele, digere seus bichinhos de estimação.


Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac)


A fome ronda o lugar. Conseguir comida, principalmente de origem animal, é a preocupação básica dos condôminos. Abastecê-los é função do açougueiro, sempre à cata de novos zeladores, pois segundo as normas do condomínio os residentes não podem servir de petisco. Porém, toda regra tem exceção: desesperado com as dívidas acumuladas no Delicatessen, Marcel Tapioca prepara uma armadilha para a sogra. Ela termina pendurada nos ganchos do estabelecimento de Clapet. Ainda não é chegado o melhor momento para fatiar Louison. O novo zelador, demasiado magro, precisa engordar.


Temerosa com a sorte do amado, Julie fará de tudo para salvá-lo. Desce aos subterrâneos de Paris, refúgio de um grupo revolucionário e vegetariano. Seus membros (Bettenfeld, Caron, Flavien, Defever, Forestier e Bald) são conhecidos na superfície pela preconceituosa designação de trogloditas. A duras penas Julie os atrai a um acordo. Pela salvação do zelador, poderão entrar na posse de grãos — usados como dinheiro na superfície — acumulados em farta quantidade nos fundos do açougue. Desencadeada a operação, segue-se uma comédia de erros. Os trogloditas confundem Louison com a amante do açougueiro. Percebido o engano, atacam novamente, a tempo de encontrar o ensandecido Clapet encurralando o zelador. Este escapa na companhia da amada, provocando gigantesca inundação que por pouco não destrói o prédio. Ao fim, Louison se salva do açougueiro graças ao 'australiano', poderoso e afiado canivete em formato de boomerang. O final é feliz.



Os 'Trogloditas': revolucionários e vegetarianos


Considerado em seu conjunto, Delicatessen não funciona bem, principalmente na meia hora final, quando os diretores claramente se perdem, não conseguindo coordenar de forma satisfatória a profusão de elementos convocados. Mas se o todo é falho, sobra interesse no tom inusitado da encenação. A montagem inspirada e meteórica combina perfeitamente bem os elementos cênicos e sonoros. Exemplo disso é a sequência em formato de clip musical, desencadeada pelo ranger das molas da cama do casal Interligator, sintonizadas com a limpeza de tapetes pela esposa de Tapioca, o enchimento de um pneu de bicicleta, a execução do violoncelo por Julie e os movimentos de Louison na pintura do teto do apartamento. O tom apocalíptico é sugerido por uma fotografia carregada nas cores vermelha e laranja, que remetem a um interminável e assustador crepúsculo. Esse espectro também comunica as características internas do prédio, plenas de escuridão, solidão, umidade e sufoco. A esquisitice dos personagens é garantida por uma câmera sempre próxima aos rostos dos atores. Ângulos pouco convencionais realçam a perspectiva gótica e macabra dos ambientes. Toda essa combinação de exageros lembra ao espectador que ele está diante de uma farsa, de uma história que ganharia mais pontos caso optasse por explorar mais os aspectos negros do humor ao invés de se abrir, como geralmente faz, às convenções do pastelão.


O zelador Loison (Dominique Pinon)


Os melhores momentos de Delicatessen são garantidos por cenas isoladas: o açougueiro medindo Louison e, ao mesmo tempo, pedindo-lhe informações sobre o peso; o zelador fazendo poesia com bolas de sabão, consertando as molas da cama dos Interligator e comprovando a qualidade do serviço ao se balançar em posição de prontidão sobre o colchão; Julie oferecendo chá com biscoitos a Louison e provocando pequenos acidentes na tentativa de disfarçar a própria miopia; o dueto formado por ela (ao violoncelo) e Louison (no serrote) na extração de um inusitado lamento musical; o cerco do açougueiro à sogra de Tapioca; e as tentativas de suicídio de Aurore Interligator.



O açougueiro Clapet (Jean-Claude Dreyfus), fulminado pelo 'australiano'

Servidos para o chá: Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac) e Louison (Dominique Pinon)


Delicatessen foi campeão de bilheteria na França. Aí conquistou, em 1992, os prêmios César de Melhor Montagem (Hervé Schneid), Melhor Trabalho de Estreia (Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet), Melhor Roteiro (Jeneut, Caro e Gilles Adrien) e Melhor Direção de Arte e Decoração (Jean-Philippe Carp e Miljen Kreka Kljakovic). Nesse ano recebeu também o Prêmio do Júri, para Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, no Festival do Filme Fantástico do Porto (Fantasporto), Portugal. Em 1991 conquistou o Gold Hugo de Melhor Realização no Festival Internacional do Filme de Chicago, o European Film Award de Melhor Decoração e Figurinos (Miljen Kreka Klakovic e Valérie Pozzo Di Borg0) e, no Festival Internacional do Filme de Stiges (Catalunha), foi agraciado nas categorias de Melhor Ator (Dominque Pinon), Melhor Direção (Caro & Jeunet), Melhor Trilha Musical (Carlos D'Alessio) além do Prêmio da Associação de Roteiristas, Escritores e Críticos da Catalunha endereçado aos diretores, também laureados com o Gold Award no Festival Internacional do Filme de Tóquio. Recebeu o Grande Prêmio no Festival de Chicago e o troféu Jovem Cinema no Festival de Tóquio. Em 1993 fez jus ao Prêmio de Prata de Melhor Filme Estrangeiro, ofertado a Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet pelo Guild of German Art House Cinemas. Participou como hors-concours nos festivais de Toronto, Montreal e Nova York.





Roteiro: Jean-Pierre Jeneut, Marc Caro, Gilles Adrien. Diálogos: Gilles Adrien. Direção de fotografia (cores): Darius Khondji. Produção de elenco: Pierre-Jacques Bénichou. Montagem: Hervé Schneid. Música: Carlos D'Alessio. Direção de produção: Michèle Arnould. Direção de arte: Miljen Kreka Kljakovic. Desenho de produção: Marc Caro. Costumes: Valérie Pozzo Di Borgo. Assistente de maquiagem: Myriam Coulet. Decoração: Jean-Philippe Carp, Miljen Kreka Kljakovic, Aline Bonetto, Jean Rabasse. Primeiro assistente de direção: Jean-Marc Tostivint. Aprendiz de gerente de unidade de produção: Nadine Chaussonnière. Camareiro: Jean-Philippe Carp. Chefe de construções: Bernard Boivin. Concepção de modelos: Jean Rabasse. Construções: Fabrice Maux, Jacques Mery, Igor Mollet, Claude Sanzey, Silvia Sella, Yann Sibiril, Bertrand Terreyre, Denis Vassal, Serge Vassal, Tom Wiggins, Gilles Baillot, Jean-Michel Boivin, Gilles Faraldo, Eric Frion, Richard Gerardin, Jean-François Juvanon, Vincent Lebrinon. Contra-regra: Yves Domenjoud. Direção artística e storyboard: Marc Caro. Esculturas: Nicolás Díaz. Fabricação de modelos: Andréa Llinaeres, Valérie Sebast, Jérôme Signori, Valérie Berthoux, Marie Desforge. Pinturas: Noël Guillot. Segundo assistente de decoração: Lotte Lemorgne. Segundo assistente de direção de arte e segundo assistente de decoração: Simon Carp. Segundo assistente de direção de arte: Loïc Lemoigne. Segundo assistente de direção: Jean-Christophe Spadaccini. Assistente de engenharia de som e microfones: Laurent Zeilig. Assistente de mixagem de som: Laurent Dreyer. Assistente de ruídos de sala: Mario Melchiorri. Edição de diálogos: Muriel Moreau. Edição de som: Gérard Hardy. Efeitos sonoros, engenharia e supervisão de som: Jérôme Thiault. Efeitos sonoros: Marc Caro. Mixagem de som: Vincent Arnardi. Ruídos de sala: Jean-Pierre Lelong. Efeitos especiais: Jean-Baptiste Bonetto, Yves Domenjoud, Olivier Gleyze, Lionel Mathis. Efeitos ópticos: Baptiste Magnien. Direção de efeitos visuais digitais: Antoine Simkine. Produção executiva de efeitos visuais: Jean-Marie Vives. Pintura matte digital e direção de pesquisa e desenvolvimento: Rip Hampton O'Neil (não creditado). Dubles: William Cagnard, Rémi Canaple, Tom Wiggins, Arlette Spetebroot. Coordenação de dubles: Patrick Cauderlier. Eletricistas: Franck Barreau, Bernard Gemähling, Nicolas Juge, Olivier Lancelle, Lionel Perrin, Ferencz Radnai, Michel Sabourdy. Fotógrafo no set: Eric Caro. Mecânicos: Bruno Dubet, Stéphane Vidal, Yorgo Voyagis. Primeiro assistente de câmera: Rémy Chevrin. Segundos assistentes de câmera: Philippe Le Sourd, Philippe Lesard. Assistentes de confecção de figurinos: Véronique Degy, Marianne Vally. Chefe de confecção de figurinos: Valérie Pozzo Di Borgo. Colorização: Yvan Lucas. Arranjos musicais: Jean-Michel Bergounboux. Músicos: Isabele Pinadel (violoncelo), Lev Sipolos (serrote), Herbert Varron (violoncelo), Hubert Varron (cello). Consultoria musical: René Taquet. Acessórios: Yves Domenjoud. Administração da produção: Arlette Mas. Alimentação: Emmanuel Jaffre. Concepção dos créditos: Marc Bruckert. Continuidade: Aruna Villiers. Financiamento da produção: Michael Mendelsohn. Groupman: Gérard Sionneau. Pesquisa de locações: Pierre Dufour. Publicidade: Marie-Christine Malbert. Agradecimentos a: Thérèse Chevalier, Olivier Chiavassa, Jean Villiers. Companhias de efeitos especiais: ACME Films, Duran, Duboi. Equipamentos de dubles: Actions Movies. Gravação da trilha musical: London Records. Sistema de mixagem de som: Dolby. Tempo de exibição: 99 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)

4 comentários:

  1. O filme deve ser bom, interessante, mas muito forte !
    não gosto muito de assistir a filmes desse gênero, não o desmerecendo, é claro!
    Boa dica!!!!
    http://www.elianedelacerda.com

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    1. Prezada Elyane Lacerdda,

      Recomendo que não se deixe levar pelas aparências. O filme é muito interessante. Não chega a ser forte como você deve estar imaginando. Os tons de farsa e comédia, mais as inúmeras bizarrices que pontuam em cena, impedem que chegue a tanto. Pode vê-lo sem susto. Garanto que não irá se arrepender. Nem ficará mal impressionada.

      Abraços.

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  2. No he visto la película, amigo, pero nos presentas una estupenda reseña.

    Gracias + Abrazo

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    1. Muchas gracias pela sua apreciação, José Valle Valdés!

      Abraços e saludos.

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