O primeiro longa metragem dos franceses Marc Caro e
Jean-Pierre Jeunet é uma desvairada e inusitada comédia de absurdos na qual se
acumulam muitas esquisitices. Delicatessen (Delicatessen, 1991) merece
inclusão na seleta categoria dos filmes únicos. As situações são encenadas num
prédio mal afamado e conservado de uma Paris atemporal e decadente. Trajes e
feições remetem aos anos 50, mas a cenografia e a atmosfera dos ambientes
sugerem um futuro pouco promissor, tingido de apocalipse. O abastecimento
alimentar dos condôminos, à base de proteína animal principalmente, é garantido
pelo açougue instalado no térreo do edifício. Mas o fornecimento regular do
produto depende da constante rotatividade dos zeladores. A fome ronda o local,
habitado por tipos os mais excêntricos. A produção forma um conjunto desigual,
nem sempre conduzido de forma satisfatória pelos realizadores.
Delicatessen
Delicatessen
Direção:
Jean-Pierre Jeunet, Marc Caro
Produção:
Claudie
Ossard
Constellation,
Union Générale Cinématographique (UGC), Hachette Première, Sofinergie Films,
Sofinergie 2, Investimage 2, Investimage 3, Fondation GAN pour le Cinéma,
Victoires Productions
França — 1991
Elenco:
Dominique
Pinon, Marie-Laure Dougnac, Jean-Claude Dreyfus, Silvie Laguna, Anne-Marie Pisani,
Karin Viard, Ticky Holgado, Rufus, Jean-François Perrier, Jacques Mathou,
Howard Vernon, Chick Ortega, Eric Averlant, Dominique Zardi, Dominique Bettenfeld,
Jean-Luc Caron, David Defever, Raymond Forestier, Robert Baud, Pascal Benezech,
Boban Janevski, Mikael Todde, Edith Ker, Patrick
Paroux, Maurice Lamy, Marc Caro, Bernard Flavien, David Defever, Clara.
Os diretores Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet - 1995 |
Delicatessen merece inclusão
na seleta categoria dos filmes únicos. Como ele, pode-se dizer, não há nada parecido
sob o céu do cinema. Apesar de não formar um conjunto satisfatoriamente
entrosado, esbanja criatividade em vários momentos, a começar pela apresentação
dos créditos: os membros da equipe de realização são identificados junto de
peças ou instrumentos alusivos às suas respectivas atividades e ao estado
arruinado do prédio que serve de cenário às histórias contadas. O nome do diretor
de fotografia (Darius Khondji) aparece sobre a sucata de uma máquina
fotográfica; o do músico (Carlos D'Alessio) junto a um long play quebrado; o da figurinista (Valérie Pozzo Di Borgo) entre
retalhos e sobras de costura etc.
É comédia de
absurdos (será?), sucessão desvairada de inusitadas esquisitices encenadas no
mal afamado edifício situado no lote 129-A da Praça de Albumina de uma Paris
atemporal e para lá de decadente. O lugar é um Balança-Mas-Não-Cai, o caos em termos de moradia. Os trajes e feições
dos personagens lembram os anos 50, mas o desenho de produção e as situações
sugerem um futuro nada promissor, de tons apocalípticos.
Delicatessen é o longa de
estreia de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, egressos do curta-metragem e do videoclip
musical. O filme não nega essas origens. Mas também busca inspiração no vasto
universo da linguagem publicitária e dos quadrinhos futuristas.
Aurore Interligator (Silvie Laguna) ouvindo vozes |
A edificação — caindo de podre,
atacada por infiltrações, defeituosa nos utensílios e equipamentos — é ocupada por
tipos os mais excêntricos, grotescos e bizarros. O solitário homme grenouille (Vernon) habita o porão
entre infiltrações e bichos de estimação: lesmas, caracóis e rãs. Os irmãos Robert
(Rufus) e Roger Kube (Mathou) vivem da fabricação de inusitadas caixas mugidoras.
O esnobe casal sexomaníaco Aurore (Laguna) e Georges Interligator (Perrier) costuma
se largar ao prazer numa cama de molas que rangem com elevada estridência, comunicando
o que fazem para todo o prédio. Em outros momentos ela é ouvinte privilegiada
de vozes que a convocam a seguidas e hilárias tentativas de suicídio ao passo
que o marido é maníaco espectador de programas captados por um aparelho de
televisão em preto-e-branco. Também há o desempregado Marcel Tapioca (Holgado)
— dedicado ao sustento da esposa, Madame Tapioca (Pisani), da sogra (Kerr) e de
duas crianças endiabradas —, virando-se como pode na qualidade de vendedor
ambulante de bugigangas de pouca serventia como o apito que atrai o rato para a
ratazana e o aparelho detector de idiotices; a desfrutável Madamoiselle Plusse
(Viard), amante de Clapet (Dreyfus), proprietário do Delicatessen — açougue
localizado no térreo — e pai da jovem virtuosa e míope Julie Clapet (Dougnac).
O maior prazer da garota é tocar violoncelo, pelo menos até a chegada do novo
zelador, o sensível Louison (Pinon), artista de circo, expert no sopro de bolas de sabão e exímio músico de serrote.
Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac) e Louison (Dominique Pinon) em idílio musical no alto do edifício |
A rotina do
edifício é quebrada quando Julie, apaixonada por Louison, decide salvá-lo do
fim de todos os demais zeladores: viraram porções de carne fresca vendidas a
quilo no Delicatessen. O filme começa com o açougueiro afiando os instrumentos
de trabalho. Enquanto isso, o zelador anterior (Benezech) tenta escapar ao
triste destino, ocultando-se em uma lata de lixo. Mas é descoberto e abatido.
No dia seguinte, depois de convenientemente processado e fatiado, é vendido e servido
nas refeições de todos os apartamentos. Do canibalismo escapam apenas Julie e o
morador do porão. Ela prefere chá e biscoitos. Quanto a ele, digere seus
bichinhos de estimação.
Julie Clapet (Marie-Laure Dougnac) |
A fome ronda o
lugar. Conseguir comida, principalmente de origem animal, é a preocupação
básica dos condôminos. Abastecê-los é função do açougueiro, sempre à cata de
novos zeladores, pois segundo as normas do condomínio os residentes não podem servir
de petisco. Porém, toda regra tem exceção: desesperado com as dívidas acumuladas
no Delicatessen, Marcel Tapioca prepara uma armadilha para a sogra. Ela termina
pendurada nos ganchos do estabelecimento de Clapet. Ainda não é chegado o
melhor momento para fatiar Louison. O novo zelador, demasiado magro, precisa engordar.
Temerosa com a
sorte do amado, Julie fará de tudo para salvá-lo. Desce aos subterrâneos de
Paris, refúgio de um grupo revolucionário e vegetariano. Seus membros (Bettenfeld,
Caron, Flavien, Defever, Forestier e Bald) são conhecidos na superfície pela
preconceituosa designação de trogloditas. A duras penas Julie os atrai a um
acordo. Pela salvação do zelador, poderão entrar na posse de grãos — usados
como dinheiro na superfície — acumulados em farta quantidade nos fundos do
açougue. Desencadeada a operação, segue-se uma comédia de erros. Os trogloditas
confundem Louison com a amante do açougueiro. Percebido o engano, atacam
novamente, a tempo de encontrar o ensandecido Clapet encurralando o zelador.
Este escapa na companhia da amada, provocando gigantesca inundação que por
pouco não destrói o prédio. Ao fim, Louison se salva do açougueiro graças ao
'australiano', poderoso e afiado canivete em formato de boomerang. O final é
feliz.
Os 'Trogloditas': revolucionários e vegetarianos |
Considerado em
seu conjunto, Delicatessen não funciona bem, principalmente na meia hora
final, quando os diretores claramente se perdem, não conseguindo coordenar de
forma satisfatória a profusão de elementos convocados. Mas se o todo é falho,
sobra interesse no tom inusitado da encenação. A montagem inspirada e meteórica
combina perfeitamente bem os elementos cênicos e sonoros. Exemplo disso é a sequência
em formato de clip musical,
desencadeada pelo ranger das molas da cama do casal Interligator, sintonizadas com
a limpeza de tapetes pela esposa de Tapioca, o enchimento de um pneu de
bicicleta, a execução do violoncelo por Julie e os movimentos de Louison na
pintura do teto do apartamento. O tom apocalíptico é sugerido por uma fotografia
carregada nas cores vermelha e laranja, que remetem a um interminável e
assustador crepúsculo. Esse espectro também comunica as características
internas do prédio, plenas de escuridão, solidão, umidade e sufoco. A
esquisitice dos personagens é garantida por uma câmera sempre próxima aos
rostos dos atores. Ângulos pouco convencionais realçam a perspectiva gótica e
macabra dos ambientes. Toda essa combinação de exageros lembra ao espectador
que ele está diante de uma farsa, de uma história que ganharia mais pontos caso
optasse por explorar mais os aspectos negros do humor ao invés de se abrir,
como geralmente faz, às convenções do pastelão.
O zelador Loison (Dominique Pinon) |
Os melhores
momentos de Delicatessen são garantidos por cenas isoladas: o açougueiro
medindo Louison e, ao mesmo tempo, pedindo-lhe informações sobre o peso; o
zelador fazendo poesia com bolas de sabão, consertando as molas da cama dos
Interligator e comprovando a qualidade do serviço ao se balançar em posição de
prontidão sobre o colchão; Julie oferecendo chá com biscoitos a Louison e
provocando pequenos acidentes na tentativa de disfarçar a própria miopia; o
dueto formado por ela (ao violoncelo) e Louison (no serrote) na extração de um
inusitado lamento musical; o cerco do açougueiro à sogra de Tapioca; e as tentativas
de suicídio de Aurore Interligator.
O açougueiro Clapet (Jean-Claude Dreyfus), fulminado pelo 'australiano' |
Delicatessen foi campeão de
bilheteria na França. Aí conquistou, em 1992, os prêmios César de Melhor
Montagem (Hervé Schneid), Melhor Trabalho de Estreia (Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet),
Melhor Roteiro (Jeneut, Caro e Gilles Adrien) e Melhor Direção de Arte e
Decoração (Jean-Philippe Carp e Miljen Kreka Kljakovic). Nesse ano recebeu
também o Prêmio do Júri, para Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet, no Festival do
Filme Fantástico do Porto (Fantasporto), Portugal. Em 1991 conquistou o Gold
Hugo de Melhor Realização no Festival Internacional do Filme de Chicago, o
European Film Award de Melhor Decoração e Figurinos (Miljen Kreka Klakovic e
Valérie Pozzo Di Borg0) e, no Festival Internacional do Filme de Stiges (Catalunha),
foi agraciado nas categorias de Melhor Ator (Dominque Pinon), Melhor Direção
(Caro & Jeunet), Melhor Trilha Musical (Carlos D'Alessio) além do Prêmio da
Associação de Roteiristas, Escritores e Críticos da Catalunha endereçado aos
diretores, também laureados com o Gold Award no Festival Internacional do Filme
de Tóquio. Recebeu o Grande Prêmio no Festival de Chicago e o troféu Jovem
Cinema no Festival de Tóquio. Em 1993 fez jus ao Prêmio de Prata de Melhor
Filme Estrangeiro, ofertado a Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet pelo Guild of
German Art House Cinemas. Participou como hors-concours
nos festivais de Toronto, Montreal e Nova York.
Roteiro: Jean-Pierre Jeneut, Marc Caro, Gilles Adrien. Diálogos: Gilles Adrien. Direção de fotografia (cores): Darius
Khondji. Produção de elenco: Pierre-Jacques Bénichou. Montagem: Hervé Schneid. Música: Carlos D'Alessio. Direção de produção: Michèle Arnould. Direção de arte: Miljen Kreka
Kljakovic. Desenho de produção: Marc Caro. Costumes: Valérie Pozzo Di Borgo. Assistente de maquiagem: Myriam Coulet. Decoração: Jean-Philippe Carp, Miljen Kreka Kljakovic, Aline Bonetto, Jean Rabasse. Primeiro assistente de direção: Jean-Marc Tostivint. Aprendiz de gerente de unidade de produção: Nadine
Chaussonnière. Camareiro: Jean-Philippe
Carp. Chefe de construções: Bernard
Boivin. Concepção de modelos: Jean
Rabasse. Construções: Fabrice Maux, Jacques
Mery, Igor Mollet, Claude Sanzey, Silvia Sella, Yann Sibiril, Bertrand
Terreyre, Denis Vassal, Serge Vassal, Tom Wiggins, Gilles Baillot, Jean-Michel
Boivin, Gilles Faraldo, Eric Frion, Richard Gerardin, Jean-François Juvanon, Vincent
Lebrinon. Contra-regra: Yves
Domenjoud. Direção artística e
storyboard: Marc Caro. Esculturas:
Nicolás Díaz. Fabricação de modelos:
Andréa Llinaeres, Valérie Sebast, Jérôme Signori, Valérie Berthoux, Marie
Desforge. Pinturas: Noël Guillot. Segundo assistente de decoração: Lotte
Lemorgne. Segundo assistente de direção
de arte e segundo assistente de decoração: Simon Carp. Segundo assistente de direção de arte: Loïc Lemoigne. Segundo assistente de direção:
Jean-Christophe Spadaccini. Assistente
de engenharia de som e microfones: Laurent Zeilig. Assistente de mixagem de som: Laurent Dreyer. Assistente de ruídos de sala: Mario Melchiorri. Edição de diálogos: Muriel Moreau. Edição de som: Gérard Hardy. Efeitos sonoros, engenharia e supervisão de
som: Jérôme Thiault. Efeitos
sonoros: Marc Caro. Mixagem de som:
Vincent Arnardi. Ruídos de sala:
Jean-Pierre Lelong. Efeitos especiais:
Jean-Baptiste Bonetto, Yves Domenjoud, Olivier Gleyze, Lionel Mathis. Efeitos ópticos: Baptiste Magnien. Direção de efeitos visuais digitais:
Antoine Simkine. Produção executiva de
efeitos visuais: Jean-Marie Vives. Pintura
matte digital e direção de pesquisa e desenvolvimento: Rip Hampton O'Neil
(não creditado). Dubles: William
Cagnard, Rémi Canaple, Tom Wiggins, Arlette Spetebroot. Coordenação de dubles: Patrick Cauderlier. Eletricistas: Franck Barreau, Bernard Gemähling, Nicolas Juge, Olivier
Lancelle, Lionel Perrin, Ferencz Radnai, Michel Sabourdy. Fotógrafo no set: Eric Caro. Mecânicos: Bruno Dubet,
Stéphane Vidal, Yorgo Voyagis. Primeiro
assistente de câmera: Rémy Chevrin. Segundos
assistentes de câmera: Philippe Le Sourd, Philippe Lesard. Assistentes de confecção de figurinos: Véronique
Degy, Marianne Vally. Chefe de confecção
de figurinos: Valérie Pozzo Di Borgo. Colorização:
Yvan Lucas. Arranjos musicais:
Jean-Michel Bergounboux. Músicos: Isabele
Pinadel (violoncelo), Lev Sipolos (serrote), Herbert Varron (violoncelo), Hubert
Varron (cello). Consultoria musical:
René Taquet. Acessórios: Yves
Domenjoud. Administração da produção:
Arlette Mas. Alimentação: Emmanuel
Jaffre. Concepção dos créditos: Marc
Bruckert. Continuidade: Aruna
Villiers. Financiamento da produção:
Michael Mendelsohn. Groupman: Gérard
Sionneau. Pesquisa de locações:
Pierre Dufour. Publicidade: Marie-Christine
Malbert. Agradecimentos a: Thérèse
Chevalier, Olivier Chiavassa, Jean Villiers. Companhias de efeitos especiais: ACME Films, Duran, Duboi. Equipamentos de dubles: Actions Movies.
Gravação da trilha musical: London
Records. Sistema de mixagem de som:
Dolby. Tempo de exibição: 99
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1992)
O filme deve ser bom, interessante, mas muito forte !
ResponderExcluirnão gosto muito de assistir a filmes desse gênero, não o desmerecendo, é claro!
Boa dica!!!!
http://www.elianedelacerda.com
Prezada Elyane Lacerdda,
ExcluirRecomendo que não se deixe levar pelas aparências. O filme é muito interessante. Não chega a ser forte como você deve estar imaginando. Os tons de farsa e comédia, mais as inúmeras bizarrices que pontuam em cena, impedem que chegue a tanto. Pode vê-lo sem susto. Garanto que não irá se arrepender. Nem ficará mal impressionada.
Abraços.
No he visto la película, amigo, pero nos presentas una estupenda reseña.
ResponderExcluirGracias + Abrazo
Muchas gracias pela sua apreciação, José Valle Valdés!
ExcluirAbraços e saludos.