Martin Ritt é liberal de boa cepa que representou, ao longo dos anos 60 e 70, a boa consciência no cinema americano. Racismo, sindicalismo, perseguições políticas e analfabetismo eram temas de sua predileção. Graças a ele, Paul Newman teve alguns de seus melhores desempenhos. Inspirado na descontração narrativa da nouvelle vague, Paris vive à noite (Paris blues, 1961) apresenta Newman e Sidney Poitier no auge do frescor e da jovialidade. Seus personagens trocaram os EUA pela cidade luz, onde perseguem as promessas não realizadas do sonho americano. As interpretações, a direção de fotografia, a envolvente trilha musical de Duke Ellington e uma vibrante e curta participação de Louis Armstrong são os principais atributos da realização.
Paris vive à noite
Paris blues
Direção:
Martin Ritt
Produção:
Sam Shaw
Pennebaker Productions, Diane Productions, Jason Films, Monica Corp., Monmouth
EUA — 1961
Elenco:
Paul Newman, Joanne Woodward, Sidney Poitier, Louis Armstrong, Diahann Carroll, Barbara Laage, André Luguet, Marie Versini, Moustache, Aaron Bridgers, Guy Pedersen, Serge Reggiani e os não creditados Emilien Antille, Roger Blin, Charles Bouillaud, Michel Dacquin, Hélène Dieudonné, Michel Garland, Christian Garros, René Hell, Jo Labarrère, Jack Lenoir, Franck Maurice, Niko, Michel Portal, Claude Rollet, Albert Simono, André Tomasi, María Velasco, Dominique Zardi.
Liberal da boa cepa, Martin Ritt marcou o cinema americano, principalmente ao longo dos anos 60 e primeira metade dos 70. Simpático às boas causas — marcadamente polêmicas em se tratando dos liberais, democráticos e igualitários Estados Unidos —, realizou filmes engajados que problematizam o racismo [A grande esperança branca (The great white hope, 1970)], o sindicalismo [Norma Rae (Norma Rae, 1979)], o analfabetismo [Stanley e Iris (Stanley and Iris, 1989)] e as perseguições políticas [Testa de ferro por acaso (The front, 1976)]. Seus personagens são, comumente, operários [Um homem tem três metros de altura (Edge of the city, 1956)], professores [Conrack (Conrack, 1974)], ativistas [Ver-te-ei no inferno (The Molly McGuires, 1969)], marginalizados [Lágrimas de esperança (Sounder, 1971)], agricultores [O indomado (Hud, 1963)] e músicos como neste Paris vive à noite. Também se aventurou pelas searas da espionagem política [O espião que saiu do frio (The spy Who came in from the cold, 1966)], do western [Hombre (Hombre, 1967)] e dos dramas familiares [O mercador de almas (The long hot Summer, 1958)]. Teve as carreiras de ator e diretor teatral interrompidas no começo dos anos 50 ao ser incluído na lista negra do macarthismo. Enquanto perdurou o ostracismo, sobreviveu como professor do Actor’s Studio, período no qual lecionou, entre outros, para James Dean[1].
Graças a ele, Paul Newman desfrutou de alguns de seus melhores momentos no cinema. Paris vive à noite é a segunda das seis associações firmadas com o ator. As demais são: O mercador de almas, As aventuras de um jovem (Adventures of a Young man, 1962), O indomado — provavelmente, o ponto alto da carreira de Newman —, Quatro confissões (The outrage, 1964) e Hombre.
Em Paris vive à noite Paul Newman interpreta o músico Ram Bowen É a segunda das seis associações do ator com o diretor Martin Ritt |
Embalado por envolvente trilha musical de Duke Ellington, apoiado nas boas interpretações de Paul Newman, Sidney Poitier, Joanne Woodward, Diahann Carroll, Barbara Laage e Serge Reggiani, e contando com vibrante participação de Louis Armstrong, Paris vive à noite é, apesar de todos os seus valores, filme menor de Ritt. Inspirado na atmosfera descontraída das primeiras realizações da Nouvelle Vague, acompanha os percalços profissionais e amorosos de dois músicos estadunidenses na capital francesa em meados dos anos 50. O trompetista Ram Bowen (Newman) e o saxofonista Eddie Cook (Poitier) buscam na cidade luz as promessas não realizadas do sonho americano. Ram quer se firmar como compositor respeitado, aproveitando a paixão dos franceses pelo jazz. Eddie, negro, arranjador e parceiro de Ram, procura se libertar da intolerância racial. Ingenuamente acredita que terá, em Paris, oportunidades de ser valorizado exclusivamente pelo talento, não importando critérios de aferição como a cor da pele. Acompanhados de uma banda, apresentam-se todas as noites para uma plateia de aficcionados no Club Privée de Maire Seul (Laage). Com ela, Ram vive uma relação descompromissada.
Paul Newman testa a afinação dos ouvidos de Louis Armstrong e Duke Ellington em momento de descontração durante as filmagens de Paris vive à noite |
Sidney Poitier interpreta o saxofonista e arranjador Eddie Cook, parceiro de Ram Bowen (Paul Newman) |
A rotina aparentemente plácida de Ram e Eddie é quebrada por duas professoras americanas em férias de duas semanas: Lillian Corning (Woodward) e Connie Lampson (Carroll). Ambas praticamente esquecem os motivos da viagem tão logo conhecem os rapazes. Com uma rapidez impressionante e pouco crível, são tomadas por fulminante paixão. Valem-se de todos os argumentos para convencê-los a voltar aos Estados Unidos. Se os diálogos trocados pelos casais são pouco consistentes, os passeios que fazem por Paris, acompanhados por discreto e envolvente comentário jazzístico, são a melhor coisa do filme. Ritt e o diretor de fotografia Christian Matras tiveram o bom senso de orquestrar tomadas que evitaram transformar o cenário numa manjada sucessão de cartões postais.
Há um apelo sincero nas perambulações dos casais Ram/Lillian e Eddie/Connie pela cidade. A tranquila harmonia da paisagem, aliada a um clima aparentemente igualitário e tolerante, oferece um paradoxal pano de fundo para discussões sobre um provável recomeço da vida numa América que começa a se transformar graças aos movimentos em prol da ampliação dos direitos civis. O país que Eddie deixou para trás respira, nas palavras de Connie, um desafiador otimismo. No entanto, o parceiro se mostra cético e reticente.
O idílio entre Connie Lampson (Diahann Carroll) e Eddie Cook (Sidney Poitier) prevê as possibilidades do retorno do músico aos Estados Unidos |
Com Ram e Lillian a relação é mais tensa, com direito a cenas íntimas de interiores[2]. Temperamental, ambicioso, inseguro, egocêntrico e agressivo, ele não almeja um relação duradoura. Muito menos pretende regressar aos EUA para uma vida de tentadora estabilidade, mas que poderá ser, também, apagada e medíocre. Quer alçar voos mais altos; investir suas forças, sem interferência de terceiros, na carreira de compositor. Ser a “cereja do bolo” não está nos seus planos, diz à decepcionada Lillian.
Resumindo a ópera: Eddie, confrontado no conformismo do seu autoexílio, é convencido pela engajada Connie a reencontrar as origens. O renitente Ram também concorda em voltar após receber do gerente de uma gravadora avaliação pouco promissora de sua maestria como compositor. Porém, há um elemento complicador: o talentoso violinista da banda Michel ‘Gipsy’ Devigne (Reggiani) — cada vez mais afundado no vício em cocaína e praticamente conformado a um infeliz e medíocre fim de carreira. Ram se preocupa com ele; não por piedade, mas por antecipar seu próprio futuro espelhado na decadência do colega. Amparar Gipsy, auxiliá-lo a combater o vício e se reafirmar como músico são, pois, condições essenciais para o personagem de Newman continuar investindo em seus sonhos de se tornar compositor promissor e de sucesso, apesar das avaliações negativas que recebeu. Substituir o front parisiense pelo incerto recomeço nos Estados Unidos pode ser uma jogada de risco.
Eddie Cook (Sidney Poitier) e Lillian Corning (Joanne Woodward) |
As férias das garotas terminam. A sequência derradeira, na estação ferroviária de Paris, é carregada de melancolia. Contrariando o prometido, Ram não retorna com Lillian. Eddie se despede de Connie, com a promessa de segui-la em poucos dias, tão logo encerre os compromissos agendados. Porém, a última tomada, com Ram aguardando o parceiro nos portões da plataforma, parece indicar que o conformado Eddie também permanecerá na França.
Paris vive à noite funciona plenamente como sincera declaração de amor à capital francesa. As externas, acompanhando as andanças dos casais pela cidade, privilegiando os mercados de rua, as margens do Sena, Montmartre e os jardins são belíssimas — plenas de evocação. Fica-se com a impressão (enganadora, apesar de tudo) de que Paris é o local ideal para curtir a vida apartada de todo e qualquer problema. O lento movimento de câmera, executando um travelling pelos telhados da cidade ao amanhecer— logo no começo do filme —, até alcançar a rua e revelar a personagem Marie Séoul voltando das compras e entrando no Clube Privée, é hipnótico e merece figurar entre as sequências antológicas do cinema. À qualidade das tomadas fotográficas soma-se o comentário musical de Duke Ellington, feito de notas ternamente apaixonadas, que soam discretamente ao longo da projeção e elevam o encantamento por Paris, tão decisivo para pontuar o comportamento e as escolhas de Ram e Eddie.
Paul Newman e Duke Ellington em descontraído intervalo das filmagens de Paris vive à noite |
No quesito interpretações, Newman e Poitier se entregam com afinco aos personagens, de forma arrebatada o primeiro, e minimalista o outro. Esbanjam frescor e jovialidade. Como músicos, no manejo dos instrumentos, mostram-se plenamente convincentes. No entanto, as mulheres assumem a primazia. Newman e Poitier são praticamente ofuscados pela determinação de Joanne Woodward e Diahann Carroll na composição de suas insistentes e exasperantes personagens. Serge Reggiani — dublado nas cordas por Django Reinhardt — extravasa melancolia e compaixão como o drogado e decadente Gipsy. Mas é a pequena participação de Louis Armstrong como Wild Man Moore que preenche o filme de calor e autenticidade, graças à empolgante sequência em que, acompanhado de sua orquestra e ao saxofone, aparece de surpresa no Club Privée, desafiando Ram, Eddie e os solistas da banda para um playoff.
Ram Bowen (Paul Newman) é desafiado a um playoff por Louis Armstrong |
Os senões de Paris vive à noite devem ser creditados ao roteiro de Jack Sher, Irene Kamp e Walter Bernstein. Não confere dinamismo à narrativa, deixando-a arrastada, com clima das radionovelas do período, pontuada por diálogos intermináveis, desprovidos de naturalidade, que soam enfadonhos e banais. Chegam a ser irritantes, ainda mais quando Lillian e Connie se entregam ao proselitismo na tentativa de convencer o retorno aos EUA de Ram e Eddie. A direção, infelizmente, não soube contornar essas limitações.
Duke Ellington foi, muito justamente, indicado aos prêmios Oscar de Melhor Música e Melhor Trilha Musical de 1962. Mas as láureas fluíram para Saul Chaplin, Johnny Green, Sid Ramin e Irwin Kostal por Amor sublime amor (West side story, 1961), de Robert Wise e Jerome Robbins. No mesmo ano Ellington também foi candidato ao Grammy de Melhor Álbum de Trilha Musical para Cinema ou Televisão.
Eddie Cook (Sidney Poitier) e Connie Lampson (Diahann Carroll) |
Em Music is my misstress[3] Duke Ellington revelou suas motivações para participar de Paris vive à noite: a ousada primeira versão do roteiro pretendia formar um par interracial com Paul Newman e Diahann Carroll. Para sua decepção, os produtores, temerosos, voltaram atrás e ajustaram os casais às cores correspondentes.
Eddie Cook (Sidney Poitier) e Ram Bowen (Paul Newman) |
Por fim, uma curiosidade que leva a pensar em desconhecimento ou, então, em arrogância da produção americana perante cinematografias estrangeiras: os créditos de abertura informam que Serge Reggiani teve, em Paris vive à noite, sua estreia no cinema. Mas o ator marcava presença nas telas francesas desde 1938, com papéis de destaque em As portas da noite (Les ports de la nuit, 1946), de Marcel Carné, Os amantes de Verona (Les amants de Vérone, 1949), de André Cayatte, Amores de Apache (Casque d’Or, 1952), de Jacques Becker entre outros.
Roteiro: Jack Sher, Irene Kamp, Walter Bernstein, com base em novela de Harold Flender, adaptada por Lulla Rosenfeld. Produção executiva: George Glass, Walter Seltzer. Produção associada: Lee Katz (não creditado). Música: Duke Ellington. Direção de fotografia (preto-e-branco): Christian Matras. Montagem: Roger Dwyre. Direção de arte: Alexandre Trauner. Maquiagem: Michel Deruelle. Penteados: Renée Guidet. Gerente de produção: Michel Rittener. Gerente de unidade de produção: Christian Ferry (não creditado). Assistente de direção: Bernard Farrel. Direção de segunda unidade: André Smagghe. Som: Joseph de Bretagne. Edição de som: Jack Fitzstephens (não creditado). Operador de câmera: Henri Tiquet. Edição musical: Leon Birnbaum. Consultor musical: William Byers. Músicos (não creditados): Duke Ellington (piano), Sonny Greer, Johnny Hodges, Philly Joe Jones, Oliver Nelson, Max Roach, Clark Terry, Juan Tizol, Britt Woodman. Continuidade: Dagmar Bolin. Serviços de cabeleireiro: Carita. Laboratório: L.T.C. Sistema de mixagem de som: Westrex Recording System. Tempo de exibição: 98 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2013)
[1] TULARD, Jean. Dicionário de cinema. Porto Alegre: L&PM, 1996. p 335.
[2] Na época, seria muita ousadia mostrar o casal negro Eddie/Carroll discutindo o futuro e a relação na intimidade de um quarto. No entanto, houve mais liberalidade com o par Ram/Lilliam, inclusive pelo fato de que Newman e Woodward eram de fato casados.
[3] ELLINGTON, Duke. Music is my misstress. Cambridge: Capo Paperback, 1976.
Hola querido Eugenio, qué lujo de película con Paul Newman en plena juventud tanto física como a nivel actoral, es curioso como la política se filtra de alguna manera en el cine, algo que hoy en día no se ve mucho, pues los Directores se basan más en películas con grandes efectos especiales, por ello es muy importante conocer de estos filmes que de alguna manera formaron parte de la historia de ese tiempo...Como siempre, me ha enamorado la fotografía que has incluido en la reseña, gracias por compartir, siempre es un placer disfrutar de tu estupendo blog, besitos....Miles
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