Boneca de carne (Baby Doll, 1956) tem roteiro apoiado
em duas peças de Tennessee Williams. A realização de Elia Kazan é geralmente
considerada a melhor transposição de obra do dramaturgo para o cinema. O filme
mexeu com os nervos da moral puritana dos EUA e a católica Legião da Decência o
classificou como “obsceno”, “revoltante”, “moralmente repugnante” e
“sugestivamente carnal”. Seus pontos fortes são o equilíbrio entre o drama e a
farsa, a interpretação de Carroll Baker e a impiedosa descrição do decadente e
irredutível Old South.
Boneca de carne
Baby Doll
Direção:
Elia Kazan
Produção:
Elia Kazan
Castle Hill Productions, Newtown
Productions
EUA — 1956
Elenco:
Carroll Baker, Eli Wallach, Karl
Malden, Mildred Dunnock, Lonny Chapman, Eades Hogue, Noah Williamson e os não
creditados Rip Torn, R.G. Armstrong, Madeleine Sherwood, John S. Dudley, População
de Benoit-Mississipi.
Elia Kazan |
The
unsatisfactory supper e 27 wagons full of cotton, peças de
um ato de Tennessee Williams, estão na base do roteiro que escreveu para Boneca
de carne, décimo-quarto título dirigido por Elia Kazan. Excessivamente
ousado para a época, mexeu com a consciência puritano-conservadora dos Estados
Unidos e contribuiu para a gradativa falência das restrições impostas pelo Código
Hays aos temas abordados pela produção cinematográfica do país de 1934 a 1967.
Ao expirar, deu lugar ao atual sistema de classificação etária.
Antes mesmo do
lançamento, a católica Legião da Decência — liderada pelo Arcebispo de Nova
York, John Spellman —, não poupou munição contra o filme, baseada apenas na
exposição do provocativo cartaz: a personagem Baby Doll Meighan (Baker),
estirada sobre um berço, chupando o dedo e trajando displicentemente a peça daí
em diante popularizada com sua alcunha. Foi o suficiente para a produção ser
tachada de “obscena”, “revoltante”, “moralmente repugnante” e “sugestivamente
carnal”. Na celebração de Natal, Spellman substituiu a tradicional homilia para
ameaçar com inferno e excomunhão o fiel que visse Boneca de carne. Outros
grupos se juntaram ao coro, inclusive a revista Time. Esta situou a
realização de Kazan entre os “mais sujos” filmes americanos legalmente liberados.
Piquetes e exortações impediram muitos cinemas de lançá-lo. Mesmo assim, a
distribuidora Warner Brothers não se intimidou[1].
Hoje, passado quase meio século, é até difícil acreditar em tanta celeuma.
Porém, para os padrões dos anos 50, Boneca de carne estava muito à
frente de seu tempo.
Carroll Baker é Baby Doll |
Como o roteiro é baseado
em peças de Tennessee Williams, a ambientação só poderia ser no profundo e
retrógrado Sul dos Estados Unidos. A região, que amargou a derrota na Guerra de
Secessão é um cenário dominado pelo torpor da mais profunda sonolência. Tal
sensação é reforçada pela jazzística trilha musical de Kenyon Hopkins — cujas
pontuações remetem às canções de ninar — e pela direção de fotografia de Boris
Kauffman — carregada de meios-tons de antigas e desbotadas imagens em
preto-e-branco. Especificamente, os personagens se movimentam no condado de
Tiger Tail, Mississipi, em momento contemporâneo ao da realização. A coloração
espacial e humana lembra imagens do anterior Caminho áspero (Tobacco
Road, 1941), de John Ford, e do posterior O pequeno rincão de Deus
(God’s
little acre, 1958), de Anthony Mann, com tramas também localizadas no
Sul. A história combina drama, comédia, farsa e tragédia num contexto permeado
de decadência, permissividade, sexualidade e sordidez. Percebem-se, da mesma
forma, pontos de contato com ...E o vento levou (Gone
with the wind, 1939), de Victor Fleming. Deste título, parece que o incerto
“amanhã” da personagem Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) se prolonga na
insegurança do futuro de Baby Doll e sua lesada tia Rose Comfort (Dunnock).
Williams queria
Marilyn Monroe como Baby Doll Meighan. Mas, desde o começo, Carroll Baker foi a
acertada opção de Kazan. Muito dificilmente a preferida do roteirista poderia
transmitir, com tanta convicção, a aparência inocentemente infantil, frágil, travessa,
estúpida e tacanha estampada por Baker, já aos 25 anos, na interpretação da
precocemente núbil Baby Doll. Monroe, dada a voluptuosidade que extravasa de sua
compleição física, fugiria totalmente ao fenótipo esperado para a personagem.
Baby Doll é o terceiro
personagem[2]
interpretado por Carroll Baker no cinema e lhe marcaria para sempre a carreira.
Seu desempenho é no mínimo corajoso, pela desenvoltura e credibilidade sugeridas
ao descarregar, num corpo de criança mal entrado na adolescência, a carga
erótica que descontrola por completo o carente e muito mais velho marido Archie
Lee Meighan (Malden). A conveniência rege o casamento. Ela é herdeira dos
restos de falida plantation de
algodão. Foi, aos dezoito anos, oferecida em matrimônio pelo pai moribundo, mediante
condição da qual ela religiosamente insiste em relembrar: a união só será
consumada quando completar 20 anos. Até lá, Archie Lee deverá controlar a
carência diante de uma esposa sempre provocativa em trajes menores e habituada
a chupar o dedo enquanto dorme. Ainda por cima, toda Tiger Tail, dos brancos
aos negros, conhece o tratado nupcial e os apuros de Archie Lee. Convertido em
motivo de chacota, restam-lhe, como refrigério, a bebida e a furação de paredes
para tentar observar a esposa despojadamente entregue ao sono sobre o berço do
filho que, parece, nunca virá.
Baby Doll (Carroll Baker) - espionada pelo marido por um buraco na parede |
Baby Doll (Carroll Baker) está disposta a prolongar a seca sexual de Archie Lee (Karl Malden) |
Ao crash sexual se junta o econômico: Archie
Lee está falido. Seu empreendimento de descaroçar algodão se encontra parado
desde a chegada do empreendedor siciliano Silva Vacarro (Wallach) à cidade. O
forasteiro controlou todos os negócios ligados à cotonaria. Sem dinheiro, Lee
não cumpre as promessas de reformar a arruinada casa grande e honrar o
pagamento dos móveis, logo tomados pelo fornecedor. Diante disso, a
insatisfeita Baby Doll, às vésperas de completar 20 anos, está propensa a
prolongar o período de seca do marido.
Desesperado, Lee
ateia fogo à unidade beneficiadora de Vacarro. Este logo desconfia da autoria
do crime. Diante do descaso das autoridades, relutantes em aceitar a denúncia
de um forasteiro contra alguém da comunidade, resolve retaliar à moda
siciliana. Com os caminhões lotados de algodão, recorre à unidade beneficiadora
de Archie Lee e se acerca do seu mais precioso e inatingível bem: Baby Doll.
Vacarro, em
trajes negros, eleva a temperatura erótica do filme em longa e ousadíssima sequência
de sedução para os anos 50, armada à base de primeiros planos e com os
personagens acomodados num balanço de jardim. A respiração do siciliano sobre o
rosto de Baby Doll abala por completo a “falsa segurança” da mocinha imaculada,
envolvida na pureza tão pouco inocente e fortemente atrativa de diáfanos trajes
brancos. O tenso e forte “clima tropical” da sedução sobre o balanço dá lugar a
uma brincadeira de gato e rato, orquestrada segundo o louco frenesi dos
desenhos animados da Warner. Vacarro se entrega às estripulias cometidas por
Patolino, Pernalonga e Frangolino para perseguir e assustar Baby Doll pelas
dependências da casa. Chega ao cúmulo de cavalgar em ritmo feérico um cavalo de
brinquedo, como se o personagem fosse, de fato, um selvagem garanhão vertendo
talagadas de limonada ao sabor do blue
Shame,
shame, shame, interpretado por Smiley Lewis. Por fim, encurrala Baby
Doll no sótão apodrecido da casa, obrigando-a a firmar um documento sobre algo
que ela já desconfiava: a autoria do incêndio por Archie Lee.
Acima, ao centro e abaixo: Silva Vacarro (Eli Wallach) no jogo da sedução com Baby Doll (Carroll Baker) |
Vacarro se dava
por satisfeito. Mas não Baby Doll, temerosa de perder o lastro de segurança
que, apesar de tudo, Archie Lee lhe proporciona. Agora, é ela que seduz
Vacarro. Instala-o no berço que utiliza como leito. Daí em diante, o espectador
que deduza sobre os acontecimentos. Quando os personagens são novamente
mostrados, Baby Doll está sentada no chão, acariciando o sonolento Vacarro. A
seguir, chega Archie Lee. Começa um jogo não muito claro de insinuações, desde
o momento em que o personagem interpretado por Karl Malden vê a esposa descer
as escadas e, logo atrás, o vitorioso Vacarro. Este aproveita a oportunidade
para tripudiar sobre o oponente, que sente o peso da humilhação e da impotência a se prolongar durante o jantar. Até os animais parecem se aproveitar da situação. Incomodado
pelo enigmático sorriso de Mona Lisa da mulher, Archie Lee se desespera. Reage
tomando a decisão de despejar a patética, velha e desvalida Rose Comfort, tia
de Baby Doll.
Por fim, Archie
Lee apela aos tiros, chamando a atenção das autoridades. É preso diante das irrefutáveis
evidências apresentadas por Vacarro. Este, havendo conseguido o que pretendia, deixa
para trás as desamparadas Baby Doll e Rose Comfort. Até há pouco se dispusera a
protegê-las. O filme termina com a personagem de Baker aparentando domínio da
realidade pela primeira vez, comunicando à Tia Rose: “O remédio que nos resta é
esperar o amanhã. Veremos, então, o que poderá acontecer”.
Boneca de carne costuma ser
apontado como a mais feliz transposição de obras de Tennessee Williams ao
cinema. Provavelmente, devido à feliz combinação de drama e comédia, com equilibrado
trânsito para o farsesco. Por outro lado, não é encenação marcada pela pretensão
de origem, tão comum à época, que submetia a linguagem do cinema a uma suposta
superioridade dos textos teatrais, resultando muitas vezes em adaptações
pedantes e falsas. De minha parte, as adaptações superiores de obras de
Tennessee Williams são, por ora, Uma rua chamada pecado (A
streetcar named Desire, 1951), de Elia Kazan, Gata em teto de Zinco Quente
(Cat
on a hot tin roof, 1958), de Richard Brooks — apesar de excessivamente
contido na exposição do real problema que acomete o personagem vivido por Paul
Newman —, De repente no último verão (Suddenly, last Summer,
1959), de Joseph L. Mankiewicz, e O doce pássaro da juventude (Sweet
bird of youth, 1962), de Richard Brooks.
Acima de tudo, Boneca
de carne é filme de atores amparados pela boa mão de um diretor capaz
de lhes arrancar o melhor. É incrível a veracidade que Carroll Baker deixa
transparecer. Sua Baby Doll, tão ignorante, sonolenta e despreparada para a
vida, sequer tem noção do potencial desagregador da sexualidade que exala. O
calvo e narigudo Karl Malden deixa sentir toda a frustração e infelicidade de
Archie Lee. Impossível não sofrer com ele, principalmente quando chama, aos gritos,
pela inatingível Baby Doll. Sabe-se que será incapaz, por exemplo, de se valer
da força muscular e masculinidade de Marlon Brando clamando por Stella em Uma
rua chamada pecado. Eli Wallach, estreando no cinema, oferece um Silva
Vacarro a um só tempo crível em seus traços sedutores, cômicos e ameaçadores.
Sua intervenção desestabiliza para sempre a monotonia insípida do mundo de Baby
Doll e impede Archie Lee de saborear o doce final que a história lhe reservava.
Por fim, há Mildred Dunnock como Tia Rose Comfort. Aparece pouco. Mas seu vulto
esquálido, de olhos fundos, parecendo clamar por caridade, apropriando-se de
guloseimas ofertadas aos doentes hospitalizados, é o retrato do acabado e
esquecido Old South afundado em sua
mal resolvida crise de autovitimização incorporada ao término da Guerra de
Secessão. A personagem, que sequer existia no original de Williams, é um
achado.
Mildred Dunnock como a Rose Comfort, tia de Baby Doll |
Deliciosos são os
comentários à base de expressões faciais e sorrisos maliciosos de figurantes
negros em momentos marcantes do filme, principalmente quando resultam de testemunhos
às crises de desespero decorrentes do desejo reprimido de Archie Lee. Mas,
dessas participações, a melhor ilustra a condição estrangeira de Vacarro,
quando o xerife (Hogue), pouco ligando à sua denúncia, pede publicamente para a
garçonete negra Ginnie (participação não creditada) cantar I shall not be moved,
especialmente dedicada ao siciliano.
Elia Kazan foi
premiado com o Globo de Ouro pela Melhor Direção em Cinema. Eli Wallach
recebeu o prêmio pela Melhor Revelação em Estréia do British Academy of Film and Television Arts (BAFTA).
Carroll Baker,
Mildred Dunnock, Boris Kauffman e Tennessee Williams foram respectivamente
indicados aos Oscar de Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Direção
de Fotografia em Preto-e-Branco e Melhor Argumento e Melhor Roteiro Adaptado.
Tennessee Williams também foi nominado ao prêmio do Writers Guild of America
pelo Melhor Roteiro Dramático para Cinema.
Archie Lee (Karl Malden) na provocação de Baby Doll (Carroll Baker) |
O BAFTA também nominou
Boneca
de carne para Melhor Filme; e Karl Malden e Carroll Baker como Melhor
Ator e Melhor Atriz em
Produção Estrangeira.
Por fim, Karl
Malden, Carroll Baker, Eli Wallach e Mildred Dunnock receberam indicações
respectivas ao Globo de Ouro de Melhor Ator em Filme Dramático ,
Melhor Atriz em Filme
Dramático , Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz
Coadjuvante.
Roteiro: Tennessee Williams, com base em 27
wagons full of Cotton e The unsatisfactory supper, peças de
sua autoria. Direção de fotografia
(preto-e-branco): Boris Kauffman. Música:
Kenyon Hopkins. Gerente de produção:
Forrest E. Johnston. Montagem: Gene
Milford. Direção de arte: Richard
Sylbert. Associado à direção de arte:
Paul Sylbert. Figurinos: Anna Hill
Johnstone. Assistente de direção:
Charles H. Maguire, Lyman Hallowell (não creditado). Assistente de direção da segunda unidade: Arthur Steckler (não
creditado). Som: Edward J.
Johnstone. Guarda-roupa: Florence
Fransfield. Maquiagem: Robert E. Jiras.
Penteados: Willis Hanchett. Continuidade: Roberta Hodes. Duble: Lucky Kargo (não creditado). Jóias: Joan Joseff (não creditado). Tempo de exibição: 114 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1999)
[1] Cf. ROSSI, Alfredo. Elia Kazan. Il castro cinema, Florença:
La Nuova Itália ,
n. 40, p. 63, abr. 1977.
[2] Os anteriores foram Clarice em Fácil
de amar (Easy to Love, 1953), de Charles Walters, e Luz Benedcit II em Assim
caminha a humanidade (Giant, 1956), de George Stevens.
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