Primeira Guerra Mundial: o Serviço Secreto Inglês precisa
identificar e neutralizar um agente alemão baseado na Suíça. Mobiliza, para
tanto, os esforços de um espião improvisado, uma auxiliar desinteressada e um
assassino espalhafatoso. O público em geral não apreciou a realização e Agente
secreto (Secret agent, 1936) fracassou nas bilheterias. Provavelmente
porque Alfred Hitchcock afrontou códigos narrativos consolidados, fragilizou
os personagens e antecipou tendências mais contemporâneas do cinema.
Agente secreto
Secret agent
Direção:
Alfred Hitchcock
Produção:
Michael Balcon
Gaumont-British Picture Corporation
Ltd., The Rank Organization
Inglaterra — 1936
Elenco:
John Gielgud, Peter Lorre, Madeleine Carroll, Robert Young,
Percy Marmont, Florence Kahn, Charles Carson, Lilli Palmer e os não creditados
Denys Blakelock, Tom Helmore, Andreas Malandrinos, Howard Marion-Crawford, René
Ray, Michael Rennie, Michael Redgrave, Michel Saint-Denis.
Diante da
pergunta “Você ama seu país?”, o suposto estadunidense Richard Ashenden
(Gielgud) — mais novo espião do serviço secreto britânico — responde oferecendo
mostras do humor hitchcockiano: “Bem, eu acabei de morrer por ele”.
O nome Richard
Ashenden é, na verdade, disfarce para o capitão Edgar Brodie, novelista
renomado e ás da aviação. Lutava contra os alemães nos céus da França durante
a Primeira Guerra Mundial quando foi recrutado e deslocado do front para atuar como
espião. O preparo da operação é cercado de sigilo. Ele, aparentemente, está
morto. As primeiras, rápidas e solenes imagens do filme exibem um velório com
caixão lacrado. Após a despedida dos presentes, o mordomo maneta, tomado de
desajeitada decisão, desmonta todo o cenário e revela a urna vazia para o
espectador surpreso.
Richard Ashenden
recebe ordens de se instalar na alpina Suíça e localizar o incógnito agente
alemão responsável pela difusão de falsas e prejudiciais informações aos interesses
ingleses no Oriente Médio. Sobre ele, sabe apenas que é um elegante senhor hospedado
no Hotel Excelsior. É fundamental barrá-lo antes de chegar a Constantinopla.
Ashenden terá a companhia de um assassino, o mexicano Harry (!) (Lorre), mais
conhecido como General. Mas o nome completo do personagem — como gosta de frisar — é Pompílio
Montezzuma de La Piazza Del
Conde de Lambu.
Peter Lorre interpreta o matador Harry, também conhecido como General |
Harry dá o que
falar! É um tipo esquisito, afetado, histriônico, mulherengo, pegajoso e
furtivo. Ostenta bigodinho, fartos cabelos crespos e tez morena. Seu perfil parece
antecipar, em tom de paródia, o Othello interpretado por Orson Welles em 1952[1].
O húngaro Peter Lorre caprichou na caracterização exagerada. Sua interpretação
é um dos pontos fortes do filme, apesar de Hitchcock não tê-la apreciado, em absoluto. Sabe-se
da tendência excessivamente controladora do diretor quanto aos atores.
Deveriam se subordinar inteiramente aos seus desígnios. Pelo visto, Lorre atuou
às velas desfraldadas. O resultado foi o encerramento da parceria com o
realizador. Esta teve apenas dois filmes: Agente secreto e a primeira versão
de O
homem que sabia demais (The man Who knew too much, 1934)[2].
Ao se registrar
no Hotel Excelsior, o solteiro espião Ashenden recebe, surpreso, a informação
de que Senhora Ashenden o aguarda nos aposentos a ele reservados. Trata-se de
outra agente britânica disfarçada, Elsa Carrington (Carroll). Fazendo-lhe a
corte está o jovem cavalheiro estadunidense Robert Marvin (Young). Feitas as
apresentações e desfeito o mal estar inicial com o intruso, Ashenden percebe
que a parceira está mais interessada na satisfação de emoções e totalmente
alheia à missão que devem cumprir.
Richard Ashenden (John Gielgud), Elsa (Madeleine Carroll) e Harry, o General (Peter Lorre) |
Assim, de modo
pouco crível, com a ação conduzida por um assassino espalhafatoso, um espião
improvisado e uma auxiliar desinteressada, começa de fato a história de Agente
secreto.
O roteiro de Charles
Bennett, dialogado por Ian Hay e retocado por Alma Reville — para ganhar mais
dinamismo — está apoiado em dois capítulos da novela Ashenden, de W. Somerset
Maugham: O mexicano calvo (The hairless Mexican) e O traidor (The traitor), cujos motivos se complementam no fornecimento dos
elementos de espionagem. De outro suporte, uma peça teatral de Campbell Dixon,
foram extraídas as referências dramáticas e amorosas.
O resultado
cinematográfico de tudo isso é um misto de ação, romance, comédia, aventura e suspense
que caiu nas graças do National Board of Rewiew, dos Estados Unidos: elegeu
Agente
secreto o melhor filme estrangeiro de 1936. O público em geral pensou
diferente e a realização fracassou nas bilheterias.
Ashenden e Harry saem
em campo em busca do agente alemão. Mas o organista que os abasteceria com
informações é morto. Com o corpo localizam uma pista
que provocará muitos dissabores: um botão, arrancado das roupas do assassino. A
frágil evidência conduz ao casal Caypor (Percy Marmont e Florece Kahn). Acreditam
que Mr. Caypor corresponde às descrições do homem que procuram. O General o
elimina, empurrando-o montanha abaixo durante escalada aos Alpes. Logo
descobrem que deram cabo do sujeito errado. A crise moral provocada pelo assassinato de um inocente se apodera do “casal”
Ashenden. Na relutância em dar continuidade à ação, Edgar e Elsa se apaixonam
de fato. Ele redige comunicado ao serviço secreto, desligando-se da empreitada.
Volta atrás quando o General, refeito do erro, obtém com Lili (Palmer),
funcionária da fábrica de chocolates local, informações fundamentais à identificação
do agente alemão.
O pobre Mr. Capor (Percy Marmont), à esquerda, com Harry (Peter Lorre) e Ashenden (John Gielgud) |
Edgar e o General
descobrem que a fábrica de chocolate funciona como entreposto à vazão das contrainformações
inimigas. Mais: recebem indícios de que o verdadeiro espião é o insuspeito
Robert Marvin, pronto para tomar o trem rumo a Constantinopla. É preciso correr
para impedi-lo, inclusive despistar a polícia local, já sabedora da presença de
espiões ingleses na neutra Suíça. Para piorar a situação, Elsa, decepcionada
com o retorno de Edgar às atividades, resolveu seguir viagem com Marvin, mal
sabendo dos perigos que a envolvem.
Harry (Peter Lorre), Elsa (Madeleine Carroll) e Richard Ashenden (John Gielgud) |
Harry (Peter Lorre), Richard Ashenden (John Gielgud) e Elsa (Madeleine Carroll) rumo ao desfecho |
Na estação, Edgar e o General ludibriam a vigilância e
embarcam na composição que se enche de soldados e armamentos alemães após
cruzar a fronteira. Tentam alertar Elsa. Em poder de Marvin, a relutante espiã é
desmascarada. A salvação chega: aviões ingleses abrem fogo contra o trem,
que descarrila. Marvin morre. Antes, mata o General. A missão é bem
sucedida, mais como obra do acaso que de decisões intencionais. O filme chega
ao fim com o chefe do serviço secreto, Coronel Anderson (Helmore), recebendo
cumprimentos pelos bem sucedidos desdobramentos da operação. Sobre sua mesa um
telegrama comunica: “Chegamos em segurança. Paz.
Senhor e Senhora Ashenden” — agora verdadeiramente casados.
Robert Marvin (Robert Young) |
Ao racionalizar sobre Agente secreto, na tentativa de entender
as causas de fracasso junto ao público, Hitchcock, de certa maneira, arrepende-se da realização. Em entrevista a François Truffaut aponta como pontos
frágeis os personagens destituídos de objetivos claros, os dilemas morais que
praticamente os imobilizam e as artes do acaso interferindo na condução dos
processos e nas responsabilidades que deveriam ser assumidas pelos indivíduos[3]. As plateias da época
aderiam com mais entusiasmo aos elementos narrativos diretos e objetivos, aos
indivíduos dotados de certeza no rumo das ações e imunes aos dilemas morais. Em resumo, nutriam empatia por tipos mais previsíveis, mecanizados. No
péssimo livro Alfred Hitchcock, de Noel Simsolo, revela-se outro elemento que
levou o público a virar as costas ao filme: a caracterização do vilão,
excessivamente jovial, sedutora e simpática[4]. Pelo visto,
Hitchcock antecipou tendências contemporâneas, presentes com mais força no
cinema de ação a partir dos anos 50: humanizou excessivamente os personagens; também cortou, inconscientemente, qualquer identificação entre estes e os desejos de
escapismo dos espectadores na ocasião de lançamento de Agente secreto.
Bom... Pior para o público! Os elementos reputados como
falhos conferem, na minha avaliação, o que há de melhor em Agente secreto no quesito
caracterização. É sempre salutar testemunhar os erros e a falta de direção dos personagens,
principalmente dos protagonistas. Revelam-se, assim, mais humanos e críveis.
Não são como seres robotizados, pré-programados, que parecem abusar da
fragilidade dos mortais ordinários sentados diante das telas. O mesmo vale para
o desenho do vilão. Seu perfil não foi estereotipado segundo os imperativos
correntes. A interferência dos caprichos do acaso também é ponto positivo. Não
é sempre que as ações humanas resultam de procedimentos inteiramente racionais,
ainda mais quando se trata de espiões improvisados, agindo praticamente às
cegas, obrigados a tomar decisões no calor da hora como em muitas situações do
filme.
Ao centro, Elsa (Madeleine Carroll) e Richard Ashenden (John Gielgud) |
Por outro lado, quanto aos aspectos puramente
cinematográficos, Agente secreto permite bom intercâmbio entre elementos visuais
e sonoros. Algumas tomadas e construções cênicas são simplesmente geniais. As
rápidas e eficazes sequências de abertura, introduzindo o espectador na
história, revelam apenas alguns desses momentos brilhantes. Outros são: a estranha
e inesperada desafinação do órgão, comunicando a morte do informante que o
executava; Harry e Ashenden desnorteados no campanário da igreja, incapazes de
ouvir um ao outro devido ao repicar dos sinos; o lancinante desespero do
cachorrinho de Mr. Caypor, antecipando-lhe o brutal assassinato; Ashenden, na
luneta, testemunhando apavorado e à distância o fim de Mr. Caypor, sem que o
instante fatal fosse necessariamente mostrado ao espectador; o botão girando
incontáveis vezes no recipiente, deixando a pesarosa Elsa cada vez mais
aturdida e impotente; as cortinas se abrindo no quarto escuro onde Elsa e Edgar
passaram a noite, acompanhadas do revelador toque dos sinos; a correria pela
fábrica de chocolate após soar o alarme de incêndio; e, por fim, toda a
sequência no trem em movimento, expondo tão bem a tensão que emana do ambiente,
reforçada pelas sinistras imagens das forcas percebidas pelas janelas dos
vagões tão logo a composição entra em território alemão.
Além do mais, elementos que conferem cor local e
autenticidade ao ambiente não foram esquecidos: os Alpes, os lagos, as danças
folclóricas, o chocolate, os relógios famosos pela precisão. Reforçam a boa
impressão deixada por Agente secreto, um filme de
espionagem pleno de momentos marcantes, tingidos de comédia, tragédia, drama,
romance, tensão e humor negro. É um bom e incompreendido filme.
Elsa (Madeleine Carroll), Harry, o General (Peter Lorre) e Richard Ashenden (John Gielgud) |
Por fim, sobre a transformação da fábrica de chocolate em
reduto de espiões alemães, Hitchcock, segundo palavras de Simsolo, ofereceu boa
e atualíssima explicação: “Os consumidores não se preocupam com a origem
daquilo que lhes dá prazer. Assim o espectador pode consumir qualquer tipo de
propaganda caso não seja advertido”[5]. São dizeres que também
poderiam funcionar como alerta para os anos que estavam por vir, de acirramento
das tensões internacionais, desnudamento das intenções nazifascistas e, por
fim, de guerra. Realizado em 1936, Agente secreto, com sua história de
espionagem opondo ingleses e alemães no contexto da Primeira Guerra Mundial,
parece antecipar o próximo grande conflito que eclodiria dentro de três anos.
Roteiro: Charles Bennett, Alma
Reville (não creditada), com base na novela Ashenden de W. Somerset
Maugham e em peça de Campbell Dixon. Diálogos:
Ian Hay. Música: John Greenwood (não
creditado). Diálogos adicionais:
Jesse Lasky Jr. Direção de Fotografia
(preto-e-branco): Bernard Knowles. Assistente
da direção de arte: Albert Jullion. Assistente
de direção: Pen Tennysson (não creditado). Gravação de som: Phillip Dorté. Camareiro: Albert Jullion (não creditado), J Strassner. Direção musical: Louis Levy. Continuidade: Alma Reville. Direção de arte: Oscar Friedrich
Werndorff. Figurinos: Joe Strassner.
Montagem: Charles Frend. Produção associada: Ivor Montagu. Operador de câmera: Stephen Dade (não
creditado). Assistentes de câmera:
Reg Johnson (não creditado), Gerry Massy-Collier (não creditado). Dublê: Michael Rennie (não creditado). Estúdios de gravação de som: Shepherd's
Bush London. Sistema de mixagem de som:
Full Range Recording System. Tempo de
exibição: 86 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1998)
[1] Personagem de Otelo (The tragedy of Othello: the Moor of Venice, 1952), de Orson
Welles.
[2] Peter Lorre partiu para Hollywood após Agente
secreto.
[3] TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut:
entrevistas. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 65.
[4] SIMSOLO, Noel. Alfred Hitchcock. Rio de
Janeiro: Record, s.d. p. 27.
[5] SIMSOLO, Noel. Op. cit. p. 27.
Puxa queria ver esse.
ResponderExcluirOlá, Juneia!
ExcluirAcredito que você poderá ver "Agente Secreto" no Youtube. Experimente este link: http://www.youtube.com/watch?v=qYy_CKWgF5Y.
Abraços.
Ah... mesmo não sendo um grande filme e previsível do começo ao fim, sem suspense algum, eu adoro o elenco, a ambientação, a época em que a história se passa. Acho que vale mais a pena ver este filme antigo que qualquer filme moderno tosco que existe hoje em dia.
ResponderExcluirObrigada por compartilhar mais uma matéria sua Eugenio, gostei muito! Quero ler um dia algo sobre meu ídolo maior, o meu eterno GARY COOPER ♥.
Estou de pleno acordo com você, siby13. Há uma certa magia em filmes como este, do Hitchcock. Por menor que seja, sinto-me fascinado por ele. Quanto a filmes do Gary Cooper, pode estar certa de que serão tratados no blog.
ExcluirMais uma vez, obrigado pela presença.
Um abraço.
Excelente artigo! Com entrevista do Hitch ao Truffaut... melhor ainda! La crème de la crème. Acho que vi só um com a Lili Palmer, quando um agente carregava plutônio, noir do Lang.
ResponderExcluirBotei engatilhado um link pra assistir. Começarei agora.
Abraço
Olá, Hilton Neves.
ExcluirObrigado pela participação e, além disso, pelo desculpas pela demora para lhe responder. "Agente secreto" tem a reputação de ser um dos filmes mais fracos do AH. No entanto, considerei-o bastante agradável.
O noir do Fritz Lang, com a Lili Palmer, ao qual se referiu, é, certamente, "O grande segredo" ("Cloak and dagger", 1946). Neste, o agente secreto que transporta o mineral radioativo é interpretado pelo Gary Cooper.
Abraços.