Howard
Hawks ironizou o Cinemascope: seria funcional para filmar serpentes, comboios e
grandes massas humanas; de resto, uma inútil dispersão dos elementos cênicos.
Os processos de exibição em tela larga, atualmente conhecidos como widescreen,
generalizaram-se a partir de 1953 com o Cinemascope da 20th Century-Fox. Durou
até 1967, substituído pelo mais eficaz Panavision. Foi uma das tentativas
hollywoodianas — como a Terceira Dimensão, o Vistavision e o Cinerama — para
conter a perda de público para a televisão. As superproduções evocando
temáticas bíblicas e o Império Romano fazem parte dessa vaga. O insatisfatório O manto sagrado (The robe, 1953), de Henry
Koster, integra esse conjunto e, de quebra, lança o Cinemascope.
O manto sagrado
The robe
Direção:
Henry
Koster
Produção:
Frank
Ross
20th
Century-Fox
EUA - 1953
Elenco:
Richard
Burton, Victor Mature, Jean Simmons, Michael Rennie, Ernest Thesiger, Jay
Robinson, Dean Jagger, Torin Thatcher, Richard Boone, Betta Saint John, Jeff
Morrow, Dawn Adams, Leon Askin, , Frank Pulaski, David Leonard e os não
creditados Michael Ansara, Jay Novello, Nicholas Koster, Cameron Mitchell,
Sally Corner, Van Des Autels, Percy Helton, Mae Marsh, George Melford, Helen
Beverly, Jan Arvan, Ben Astar, Kit Carson, Albert Cavens, Fred Cavens, Jean
Corbett, Noreen Corcoran, Sally Corner, Leo Curley, Frank DeKova, Irene
Demetrion, Van Des Autels, John Doucette, Anthony Eustrel, Dan Ferniel, Bess
Flowers, Sam Gilman, Roy Gordon, Michael Granger, Percy Helton, Thomas Browne
Henry, Rosalind Ivan, Richard Kean, George Keymas, Donald C. Klune, Nicolas
Koster, Virginia Lee, Virginia Ann Lee, David Leonard, Alfred Linder, Emmett
Lynn, Christey Marlo, Eleanor Moore, Edward
Mundy,Arthur Page, Francis Pierlot, Alex Pope, Guy Prescott, Ford Rainey, Peter
Reynolds, Pamela Robinson, George Robotham, Hayden Rorke, Gloria Saunders,
Norbert Schiller, Harry Shearer, Marc Snegoff, Marc Snow, Murray Steckler,
George E. Stone, Arthur Tovey, Otto Waldis, Gene Wesson.
O diretor Henry Koster apresenta seu filho Robby ao ator Charles Laughton Set do filme Fruta cobiçada (Between us girls, 1942), de Henry Koster |
Cristo vestia um
manto quando foi obrigado a tomar o rumo do Calvário? Historiadores da ocupação
romana na Palestina afirmam que os condenados à cruz seguiam despidos ao local
da execução. Mesmo assim, Lloyd C. Douglas ofereceu resposta particularizada em O manto sagrado,
portentoso volume de especulação histórica, epopeia de fé, amor, abnegação e
carolice costurado pelo manto que Cristo teria supostamente trajado antes do
suplício final.
Hollywood,
durante a década de cinquenta, sente profundamente o esvaziamento dos cinemas
em decorrência da televisão. Adota várias táticas para conter a debandada do
público, dentre as quais a realização de superproduções apoiadas em temas
bíblicos, aspectos da história do Império Romano e sagas heroicas passadas na
Europa medieval. A adaptação do livro de Douglas pertence a essa vaga.
O centurião Marcellus Gallio (Richard Burton) - com o manto de Jesus Cristo - e o escravo Demétrius (Victor Mature) |
Demétrius (Victor Mature), ao pé da cruz, com o manto de Cristo |
Ao longo dos anos
50 e 60, as túnicas dos profetas, os saiotes dos centuriões e as armaduras dos
guerreiros e cavaleiros marcaram presença em Quo
vadis (Quo vadis,
1951), de Mervin LeRoy; Ben-Hur (Ben-Hur, 1959), de
William Wyler; Os Dez
Mandamentos (The
Ten Commandments, 1955), de Cecil B. DeMille; El Cid (El Cid, 1961), de
Anthony Mann; O Rei dos
reis (King of kings,
1961), de Nicholas Ray; A
maior história de todos os tempos (The
greatest story ever told, 1965), de George Stevens; Salomão e a rainha de Sabá (Solomon and Sheba,
1959), de King Vidor; Cleópatra (Cleopatra, 1963), de
Joseph L. Mankiewicz; A
queda do Império Romano (The
fall of the Roman Empire, 1963), de Anthony Mann; Spartacus (Spartacus, 1960), de
Stanley Kubrick etc.
Diretores de
prestígio arriscavam a reputação conduzindo espetáculos marcados pelo exagero e
por cenografias de gosto duvidoso, próximas do ridículo em muitos casos. A
tática funcionou em parte. Alguns desses filmes tornaram-se sucessos de
bilheteria. Mas o público pagava apenas para vê-los, sem isso significar
retorno incondicional às salas para prestigiar produções de outro jaez.
No fundo, a
situação de Hollywood pioraria. Recursos vultosos eram desviados para as
superproduções, obrigando os estúdios a pisar no freio de sua linha de
montagem. Os capitais imobilizados em reconstituições de épocas, pesquisa
histórica, construções de cenários colossais, figurinos, salários, campanhas
publicitárias maciças e alimentação geravam a diminuição de produtos ofertados.
Instalava-se uma situação de insegurança, pois o fracasso de uma grandiosidade
poderia implicar na bancarrota da companhia produtora e abalar todo o sistema.
Se Ben-Hur foi decisivo para livrar a
Metro-Goldwyn-Mayer da falência, Cleópatra quase provocou a ruína da 20th
Century-Fox — que antes lucrara o alto (para a época) montante de 19 milhões de
dólares com O manto sagrado,
somente nos Estados Unidos e por ocasião do lançamento.
O manto sagrado introduz duas novidades: o Cinemascope e
o som estereofônico. Sua trama se desenrola em Roma e na Palestina. Reconstitui
a saga do manto acompanhando a trajetória do tribuno Marcellus Gallio (Burton), de sua
amada Diana (Simmons) e do escravo grego Demétrius (Mature) —, personagens que
convivem em meio às intrigas palacianas da corte dos césares Tiberius
(Thesiger) e Calígula (Robinson), das ebulições decorrentes da crucificação de
Cristo e das primeiras pregações do apóstolo Pedro (Rennie).
Calígula (Jay Robison) diante de Marcellus (Richard Burton). À esquerda, sentada, Diana (Jean Simmons) |
Devido aos
caprichos do afetado Calígula, Marcellus, apesar de sua ascendência patrícia, é
obrigado a servir Roma entre as forças de ocupação na Palestina, o lugar mais
conflagrado do Império. Logo que chega, acompanhado de Demétrius, recebe a
infame incumbência de executar na cruz um pregador acusado de blasfêmia e perturbação
da ordem pública. Marcellus se embriaga para suportar os horrores da missão.
Cumprido o dever, ganha num jogo disputado aos pés do lenho as vestes do
condenado. Estas são confiadas a Demétrius, que assiste horrorizado ao
espetáculo. A seguir, escravo e senhor se afastam depois de um desentendimento.
Marcellus, atordoado, mergulha na catatonia e em pesadelos constantes. Ao ser
questionado pelo seu estado, responde com a pergunta: "Você também esteve
lá?" (no Calvário).
Psicologicamente
debilitado e amedrontado, o tribuno retorna a Roma. Procura aconselhamento
médico, sem solução. Nem mesmo o reencontro com Diana lhe levanta o moral.
Todos encontram apenas uma explicação para o fenômeno: ele foi enfeitiçado pelo
manto. Nomeado agente especial por Tibério, é exortado a voltar à Palestina
para localizar e destruir a causa dos malefícios.
O resto da
história deriva do reencontro do tribuno com seu escravo, agora vivendo entre
os primitivos cristãos. Demétrius põe a peça que Cristo trajava nas mãos de
Marcellus e, imediatamente, milagrosamente, cessam os tremores e temores. É o
começo da conversão, seguido do retorno a Roma, com Demétrius e Pedro. Diana
também não demorará a partilhar da nova fé. Logo advirá o conflito maior com o Estado pagão, representado por Calígula. Demétrius, preso e
torturado, consegue escapar, a tempo de assistir ao julgamento de Marcellus e
Diana, condenados à morte por flechas. A caminho da execução, Diana confia o
manto ao ex-escravo, para ser enviado ao "grande pescador" (Pedro).
Marcellus Gallio (Richard Burton) e Diana (Jean Simmons) - com o manto - a caminho da execução |
Marcellus Gallio (Richard Burton) e o apóstolo Pedro (Michael Rennie) |
No geral,
preservando as exceções de sempre, O
manto sagrado padece do
mesmo mal que acometeu produções semelhantes: ausência de dinâmica narrativa. O
aparato da superprodução contamina tudo e todos. A fluência da história é
sacrificada pela grandiloquência, afetação e pomposidade. Tanto peso ofusca a
naturalidade esperada para gestos e atuações, falseando falas e tornando
ridículos alguns desempenhos — como acontece no instante em que o "efeito
maléfico" do manto cessa sobre Marcellus. A direção de Koster praticamente
inexiste. Falta-lhe a mão de um Cecil B. DeMille para conferir um mínimo de
personalidade, fluidez e dignidade a um espetáculo recheado de licenciosidades. O manto sagrado também se ressente dos efeitos danosos
da pouca familiaridade com o Cinemascope. A produção temia que closes e planos
aproximados sofressem deformação na tela. Por isso, tudo foi filmado à relativa
distância, afastando mais ainda o filme do espectador, tornando mais fria e
despersonalizada a saga contada.
Apesar de seus
problemas, O manto sagrado foi indicado ao Oscar de Melhor Filme,
repetindo a história de equívocos cometidos pela Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas de Hollywood. Porém, triunfou o bom senso: a estatueta dourada
da categoria foi para A um
passo da eternidade (From
here to eternity, 1953), de Fred Zinnemann. Mas nem tudo é perfeito.
Alguns críticos americanos destrambelhados incluíram o filme de Koster entre os
melhores de todos os tempos, algo difícil de entender. Richard Burton também
foi preterido na condição de Melhor Ator. Não merecia mesmo. Cedeu a vez (que
nunca teve) a William Holden pela atuação em Inferno
17 (Stalag 17),
de Billy Wilder. Como consolo, O
manto sagrado se saiu
vitorioso nas categorias de Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte em Cores. Recebeu ainda, do setor de Prêmios Técnicos ou
Científicos ‑ Classe I, estatuetas conferidas a Henri Chretien, Earl Sponable,
Sol Harprin, Lorin Grignon, Herbert Bragg e Carl Faulkner pela criação,
aperfeiçoamento e elaboração de equipamentos, processos e técnicas do
Cinemascope.
Demétrius (Victor Mature), vendido como escravo no começo do filme |
Em 1954, Delmer
Daves, responsável por alguns dos melhores westerns dos anos 50, dirigiu Demétrius, o gladiador (Demetrius and the gladiators),
continuação menos carola de O
manto sagrado, relativamente superior em termos narrativos e
cinematográficos.
Roteiro: Albert Maltz e Philip Dunne, baseados no livro
homônimo de Lloyd C. Douglas. Adaptação: Gina Kaus. Direção de fotografia (Cinemascope,
Technicolor): Leon Shamroy. Desenho de produção e direção de arte: George W. Davis, Lyle R. Wheeler. Decoração: Walter M. Scott, Paul S. Fox. Música: Alfred Newman. Figurinos: Emile Santiago (não creditado). Montagem: Barbara McLean. Som: Bernard Freericks, Roger Heman. Maquiagem: Ben Nye. Efeitos fotográficos especiais: Ray Kellogg. Assistente
de direção: Tom Connors Jr. Gerente de unidade de produção: Joseph C. Behm (não creditado). Segundo assistente de direção: Donald C. Klune (não creditado). Pintura: Gordon Butcher (não creditado), Bill
Harris (não creditado), Bill Jekel (não creditado), Ken McClelland (não
creditado), Duncan Spencer (não creditado), Tony Reveles (não creditado),
Clayton Thomason (não creditado), Fred Tuch (não creditado), William Tury (não
creditado), Delmer Yoakum (não creditado). Fotografia
fixa: Eugene Kornman (não
creditado), John Flórea (não creditado), James Mitchell (não creditado). Edição de som: Clyde Carruth (não creditado), Walter
Rossi (não creditado). Efeitos
especiais: James B. Gordon
(não creditado). Pintura
matte: Matthew Yuricich (não
creditado). Dubles: Fred Carson (não creditado), Albert
Cavens (não creditado), Fred Cavens (não creditado), Tom Hennesy (não
creditado), Nosher Powell (não creditado), George Robotham (não creditado),
Danny Sands (não creditado), Bill White Jr (não creditado). Assistentes de câmera: Lee Crawford (não creditado), Harvey
L. Slocomb (não creditado). Chefe
do departamento de câmera: Sol
Halperin (não creditado). Operador
de câmera: Irving Rosenberg
(não creditado). Eletricista-chefe: Clyde Taylor (não creditado). Direção de guarda-roupa: Charles Le Maire. Supervisão de guarda-roupa no set: Adele Balkan (não creditado). Guarda-roupa: Sam Benson (não creditado), Ed
Wynigear (não creditado). Confecção
de figurinos: Dorothea Hulse
(não creditado). Assistente de
confecção de figurinos: Dorothy
Lou Macready (não creditado). Gerente
de guarda-roupa masculino: Clinton
Sandeen (não creditado). Armaduras: Jimmy Spies (não creditado). Assistente de montagem: Lyman Hallowell (não creditado). Orquestração musical: Edward B. Powell. Direção de coral: Ken Darby (não creditado). Canto: Carol Richards (não creditado). Chefe de transportes: James E. Ruman (não creditado). Consultor de Technicolor: Leonard Doss. Instrutores de esgrima: Albert Cavens (não creditado), Fred
Cavens (não creditado). Gerente
de publicidade: James Denton
(não creditado). Publicidade: Stan Margulies (não creditado), Sonia
Wolfson (não creditado). Assistente
de pesquisa para Cinemascope: Jack
Muth (não creditado). Coreografia: Stephen Papich (não creditado). Consultoria técnica: Jack Pennick (não creditado). Direção de pesquisa para
Cinemascope: Earl I. Sponable
(não creditado). Créditos de
abertura: Allen Wise (não
creditado). Tempo de exibição: 135 minutos.
(José Eugenio Guimarães,
1975)
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