Essencialmente são apenas pai, mãe e dois filhos. Estão
reduzidos ao básico mais extremo. Habitam e cultivam exíguo, íngreme e seco
monturo largado em meio ao mar. A
ilha nua (Hadaka no shima, 1961), de Kaneto Shindô, trata do
indizível. Palavras lhe são inteiramente dispensáveis. O filme pode ser compreendido
como um tratado sobre a condição humana. É, com todo o sentido, considerado o
equivalente cinematográfico japonês para Vidas
secas, de Graciliano Ramos.
A ilha nua
Hadaka no shima
Direção:
Kaneto Shindô
Produção:
Kindai Eiga Kyodai
Toho Company
Japão - 1961
Elenco:
Nobuko Otowa, Tayi
Tonoyama, Shinji Tanaka, Masanori Horimoto.
O diretor Kaneto Shindô |
O cinema neorrealista
italiano foi pródigo na realização de filmes sobre a "condição
humana". Mas, provavelmente, nenhuma das obras assinadas por Vittorio De
Sica, Luchino Visconti, Roberto Rossellini e Federico
Fellini — expoentes incontestes do movimento — levou a
questão a limites tão extremos como o japonês Kaneto Shindô em A
ilha nua, vencedor do Grande Prêmio do Festival de Moscou de 1961. É
produção simples, de orçamento reduzidíssimo, que dispensa palavras para se
comunicar. As imagens sinceras, comoventes e despojadas, captadas em
preto-e-branco por Kyioshi Kuroda, preenchem a realização com elementos
essenciais à compreensão. Mas não é fácil assisti-la. Do início ao fim a dor
mais aguda se instala como companheira de viagem. A lha nua faz
parte de um tipo de cinema cada vez mais raro atualmente: aquele que obriga à
reflexão sobre nós mesmos, resgatando questões fundamentais sobre o
"ser" e o "existir". Na atualidade, filmes assim foram reduzidos ao nível de
abstrações inúteis frente à emergência de um tipo de pensamento que esgota a
vida nos escaninhos do pragmatismo e da instrumentalização.
A ilha nua é crônica
angustiante, lamento pungente e seco ajustado ao compasso das estações.
Fala de pessoas condenadas a viver; obrigadas aos imperativos da adversidade
que transforma cada dia num campo de batalha; envolvidas na rotina atroz de uma
jornada de interminável sofrimento que somente a conformação e o silêncio podem
abrandar. Os personagens anônimos — pai (Otowa), mãe (Tonoyama) e
filhos (Tanaka e Orimoto) — têm existências reduzidas ao básico.
Habitam pequena ilha costeira, de relevo íngreme e acidentado, similar a um
calombo que se ergue desde os limites com o mar. O meio líquido circundante
forma um cruel paradoxo com a falta de água potável no lugar. Dependem dela
para tudo, principalmente para a irrigação dos cultivos aos quais se dedicam
nos parcos espaços de terra aproveitável que sobram.
Pai, mãe e filhos: Nobuko Otowa, Tayi Tonoyama, Shinji Tanaka, Masanori Horimoto |
Verão: os dias começam
muito antes de o sol nascer. Pai e mãe atravessam a faixa líquida e salgada em
barco a remo, em busca de água, no continente. Cada qual transporta dois
pesados baldes ajustados nas extremidades de varas cuidadosamente apoiadas
sobre os ombros. É dia claro quando retornam à ilha e começam a escalar, lenta
e penosamente, a encosta íngreme e acidentada, evitando o mínimo derramamento.
A subida, filmada sem pressa por uma câmera perspicaz, aguda na exposição de
detalhes, é angustiante. Realizada a primeira tarefa diária, servem-se
rapidamente do alimento preparado pelos filhos. Não há tempo a perder. Recomeça
a lida. Com uma caneca o pai rega cuidadosamente as plantas, uma a uma.
Passa o dia nessa atividade. A câmera focaliza o terreno seco, esturricado pelo
sol, embebido pela água rapidamente absorvida.
A ilha nua: a condição humana reduzida ao mais básico dos níveis |
Enquanto isso, a mãe
cruza outra vez o mar. Leva o filho mais velho à escola e dois baldes que
retornarão cheios. Ao outro filho deixa as atividades do lar, inclusive a
pescaria que complementa a subsistência familiar. Ela passa o dia nos remos e
no transporte de água para a plantação, subindo arqueada a encosta sob o peso
dos baldes. Num descuido, escorrega e desperdiça todo um volume. O marido se
desespera. Furioso, passa a agredi-la.Depois, ajuda-a com a sobra. A tarde se
faz alta quando o último percurso do dia é realizado: ela volta à ilha com o
filho, trazendo, como sempre, dois baldes repletos para as atividades
domésticas e banho de todos. Na mesma água lavam-se os dois filhos, seguidos do
pai e da mãe. Comem. A exaustão não impede os afazeres artesanais. O dia
seguinte será igual a todos os outros. E assim vai.
Os 93 minutos de A
ilha nua exasperam, principalmente pela total ausência de diálogo.
O banimento completo da palavra, tão simbólica, humana e singular, dá a
impressão da mais extrema desumanização. Parece que a elaboração cultural foi
integralmente substituída pela dimensão física, que obriga os corpos à completa
entrega na luta pela sobrevivência. As vidas presenciadas conjugam,
praticamente, somente verbos alusivos ao esforço: carregar, subir, cultivar,
trabalhar, comer, suportar etc. Tudo o que lembra carinho, afeto, amor está
suprimido, contido, oculto pelo embrutecimento que impede contornos suportáveis ao viver.
Pai e mãe, marido e mulher: Nobuko Otowa e Tayi Tonoyama |
Tanto sofrimento
encontra explicação: em A ilha nua Kaneto Shindô
reatualiza, em parte, lembranças da própria infância no seio de uma família
pobre e numerosa do Japão Ocidental . um lugar conhecido por Mar Interior. As memórias do
cineasta ficaram impregnadas pela visão do duro trabalho dos pais, entregues ao
cultivo do arroz sob o abrasador sol de verão, e às penosas atividades de
colheita e beneficiamento durante o outono. Mas é a imagem da mãe, sempre
silenciosa, transportando sobre os ombros, dia após dia, "dois pesados
baldes de água" — à semelhança da personagem interpretada por
Tayi Tonoyama —, que mais impressões deixou no diretor. Principalmente
pelo fato de que ela jamais extravasou qualquer palavra ou expressão de
desabafo[1]. Por isso, o filme não apresenta diálogos[2]. O silêncio, por outro lado, comunica e valoriza a luta
dos camponeses frente às limitações da terra e da natureza[3].
A mãe e esposa vivida por Tayi Tonoyama: as palavras são desnecessárias para expressar a dura labuta de todos os dias |
Mas tudo tem seu tempo.
Alguns momentos de catarse são permitidos. Parecem determinados por uma ordem
previamente estabelecida pelo ritmo da vida e ajustados às oscilações da
natureza. Assim, no outono, pouco antes da colheita, realizam-se festejos no
continente, dos quais toda a família participa. É uma sequência que rapidamente
se esgota, acentuando o caráter efêmero do evento. Dura o período necessário, suficiente
à recomposição da humanidade dos personagens. É quando o espectador ouve os
primeiros sons humanos, ecos de cantos e risos somente, passados 40 minutos de
exibição.
Iniciada a colheita,
tudo volta ao normal. Uma etapa de muito trabalho dá lugar a outra, de
beneficiamento e embalagem da produção, embarcada e comercializada na cidade.
Feito isso, o casal volta para casa com alguns víveres, diferentes dos
costumeiros. No fim do outono, um acontecimento fortuito é motivo de alegria
para todos: os filhos pescam enorme peixe, mantido vivo em aquário natural
cavado na rocha e, depois, vendido na cidade. Com o dinheiro apurado, a família
se diverte: almoça fora, passeia, adquire roupas. Novos risos, os últimos, são
ouvidos aos 52 minutos da projeção.
O inverno começa, época
chuvosa dedicada à colheita de algas que adubam o solo para o próximo cultivo.
Com menor intensidade prossegue a busca por água. A preocupação é com a
precipitação excessiva, que pode inviabilizar o solo preparado para o semeio na
entrada da primavera quando, novamente, maiores volumes de água se farão
necessários. Na entrada dessa estação a tragédia se abate sobre a família.
Falece o filho mais velho, esperança de futuro melhor.
O sepultamento do filho mais velho com a presença dos colegas da escola |
Nas sequências em torno
da morte do menino, a câmera de Kaneto Shindô faz viva exposição do desespero e
da impotência diante do imponderável. Ordena tomadas que acentuam, nos
personagens e no espectador, a sensação de pequenez, fragilidade e inutilidade.
Pai e mãe estão fora, buscando água. Na ilha, o primogênito jaz no chão da
casa. Enquanto isso, o irmão movimenta-se desesperado. Sai repetidas vezes para
divisar o mar, sempre vazio. Por fim, avista os pais e acena. O gesto é
imediatamente compreendido: o pior aconteceu. Momentos antes, o espectador foi
levado à mesma conclusão. No barco, as remadas aumentam em intensidade. Mas o
tempo parece congelado; o espaço a romper assemelha-se ao sem fim. Os planos
transmitem a estranha e paradoxal sensação da imobilidade que se instala nos
momentos de tragédia e desespero, quando, apesar de toda a pressa,
aparentemente nada parece fluir ou sair do lugar.
Pai e mãe finalmente
chegam. Ela corre a amparar o filho. Ele retorna ao barco, daí ao continente,
em busca do médico que demora a ser encontrado. A câmera acompanha a corrida do
pai, de casa em casa, estrada afora. Algumas vezes se afasta e se eleva, até
reduzi-lo a um ponto insignificante em desabalada carreira pelo vazio. Por fim,
o doutor é localizado. Segue-se a muda travessia. Mas é tarde para tudo. Ao enterro, realizado na ilha, comparecem a professora e os colegas da escola.
Pai e mãe transportam o caixão. Estão contritos, calando a dor estampada em
rostos que revelam dureza, inexpressividade e mutismo. Não há choro, apenas
conformação ao inexorável. Mas é explícita a sensação de dor e perda. A
imobilidade é suficiente para descrevê-la e realçá-la. De repente a mãe corre
para casa. Volta com um brinquedo do filho, depositado na cova. Silenciosos e
ordenados, os companheiros de escola auxiliam o pai a concluir o sepultamento
num plano de pura comoção, o que não parece nada diante de um filme o tempo
todo comovedor.
Acima e abaixo, a mãe e esposa vivida por Tayi Tonoyama |
A vida continua. O
filho experimenta a perda e a solidão, acompanhando, inquieto, a partida do
barco que devolve ao continente os colegas do irmão. Mas não há tempo para luto
e choro. Pai e mãe retomam às atividades quotidianas, de buscar água e
cultivar. Nesses instantes finais, a personagem materna deixa explodir todo o
inconformismo represado. Lança toda a água ao solo, permitindo-se um pranto
aliviador. O marido, com o semblante mudo, não esboça o menor gesto. Somente
observa e compreende. Logo volta à faina. Ela, numa expressão que mistura
raiva, surpresa e vergonha, estanca, enxuga a face e se ergue. Retoma também o
trabalho. O filme chega ao fim. A câmera se eleva e abandona os
personagens no topo do calombo, até isolá-los no meio do oceano imutável.
A solidão do filho que resta: esperança de dias melhores? |
As principais críticas
ao filme foram praticamente unânimes em apontar a inadequação do comentário
musical de Kikaru Kayashi, considerado monótono, medíocre, repetitivo e
excessivamente ocidental. As adjetivações parecem justas. Mesmo assim, a trilha soa adequada aos propósitos de Shindô. Afinal, ilustra vidas
monótonas, medíocres e repetitivas. Traduz com justeza o que as imagens
comunicam.
Roteiro: Kaneto
Shindô. Fotografia (preto-e-branco): Kiyoshi Kuroda. Música: Hikaru
Hayashi. Assistentes de direção: Mitsunori Kanaoka, Takahisa
Katsume. Tempo de exibição: 93 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1998)
[1] Cf.
SADOUL, Georges. Dicionário de filmes. Porto Alegre:
L&PM, 1993. p. 195.
Olá,
ResponderExcluirNão conheço este filme. Sequer ouvi falar dele. Acidentalmente, descobri o seu comentário. Sou professora de literatura brasileira. Quase sempre exibo Vidas Secas, o filme de Nelson Pereira dos Santos, para os meus alunos. Tive vontade de exibi-lo junto com A ilha nua. Mas é fácil conseguir este filme?
Obrigada,
Bárbara Lima
Olá, Bárbara!
ExcluirVi esse filme na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, em 1998. Pelo que sei, não há copias em VHS, DVD etc. disponíveis do Brasil. Mas caso você tenha disponibilidade para downloads, poderá ter sorte acessando esses links:
http://thepiratebay.se/search/Hadaka%20no%20shima/0/99/200
https://kat.ph/usearch/Hadaka%20no%20shima/
http://bitsnoop.com/search/video/Hadaka+no+shima/c/d/1/
Abraços.
Me gusta entrar en el mundo pre-blog. Y si además refleja arte incomparable, inolvidable, además de ser visible una, dos, tres,...veces y siempre encuentras novedades.
ResponderExcluirOlá! Demorei a descobrir que por trás da identidade Ñandubay 555 está o Joaquin Santaclara Menendez.
ExcluirSim, como você bem assinalou, este é um tipo único de película. Não há nada que se compare a ela. Também é uma das peças cinematográficas mais bem logradas e em seus aspectos dramáticos - no que tange à exposição da condição humana no que há de mais básico, é dolorosa e lancinante. Aparentemente, não se fazem mais películas com tal grau de comprometimento.
Abraços e saludos.