domingo, 27 de agosto de 2017

OS ARGONAUTAS DE JASÃO ENTRONIZAM RAY HARRYHAUSEN ENTRE OS DEUSES DO OLIMPO

De 1963 é a aventura de procedência mitológica Jasão e o velo de ouro (Jason and the Argonauts), creditada ao diretor Don Chaffey. Por trás da realização está o poema épico A argonáutica, escrito na Grécia antiga por Apolônio de Rodes. Os versos cantam a jornada repleta de perigos enfrentada pelo mítico Jasão, herói da Tessália, rumo à Cólquida, onde deverá obter do rei Aeetes a posse de uma mágica pele dourada de carneiro — o velo ou velocino de ouro. A peça possibilitará ao personagem restaurar a ordem na terra natal, submetida ao controle de vil governo tirânico. Para a campanha é construída em Argos a nau Argo, tripulada por Jasão e os mais valorosos guerreiros de seu tempo: os Argonautas. Na direção, Don Chaffey apenas prepara as tomadas para as inserções das trucagens e efeitos especiais concebidos pelo mago Ray Harryhausen. Ainda não existiam as facilidades permitidas pela computação gráfica. As maravilhas que dão vida e encanto a uma porção de perigosas e letais criaturas míticas — que tentam bloquear a busca de Jasão e dos Argonautas — decorrem de miniaturas movimentadas quadro a quadro e inseridas nas tomadas mediante trucagens que lançam mão de lentes, espelhos e jogos de iluminação. O mais fino e arrojado artesanato ainda garante nos dias de hoje — cinematograficamente banalizados pela utilização à larga de efeitos especiais informatizados — toda uma atmosfera carregada pela melhor e mais criativa das fantasias a Jasão e o velo de ouro. Segue apreciação escrita em 1993.







Jasão e o velo de ouro
Jason and the Argonauts

Direção:
Donald "Don" Chaffey
Produção:
Charles H. Schneer
Columbia, The Great Company (Taide ja Viestintä), Morningside Productions (não creditada)
EUA, Inglaterra — 1963
Elenco:
Todd Armstrong, Nancy Kovack, Gary Raymond, Laurence Naismith, Niall McGinnis, Michael Gwynn, Douglas Wilmer, Jack Gwillim, Honor Blackman, John Cairney, Patrick Trougton, Andrew Faulds, Nigel Green e os não creditados Harold Bradley, John Crawford, Aldo Cristiani, Ferdinando Poggi, Doug Robinson, Davina Taylor.



O diretor Don Chaffey - à esquerda - e o mestre dos efeitos especiais Ray Harryhausen


Três milhões de dólares — quantia considerável para a época — foram investidos na reconstituição da saga de Jasão, herói dos mais populares da mitologia grega graças ao poema épico A argonáutica, de Apollonius Rhodius (295-230 a.C.). Em trama comandada pelo capricho dos deuses do Olimpo, o personagem — interpretado por Todd Armstrong — parte da Tessália natal rumo a Cólquida a bordo do navio Argos. Acompanham-no os mais valorosos guerreiros que pode arrebanhar. A missão tem o propósito de encontrar o velo (ou velocino) de ouro, pele de carneiro dourada dotada de poderes mágicos. Com ela Jasão pretende derrotar o regime tirânico instalado em seu país e devolver a liberdade ao povo vilmente subjugado. A jornada é repleta de perigos. Criaturas fantásticas tentam barrá-la a todo momento. Jasão e os argonautas enfrentam o deus de bronze Talos, a harpia, as sete cabeças da hidra — guardiã do velocino — e, por fim, um exército de esqueletos.


Poseidon abre passagem para o Argo

Argos (Laurence Naismith), Medeia (Nancy Kovack), Jasão (Todd Armstrong), Phalerus (Andrew Faulds) e Castor (Ferdinando Poggi)

Jack Gwillim como o rei Aeetes, da Cólquida


Qual a importância de um filme como esse? Nenhuma, responderiam os mais apressados — que se absteriam inclusive de vê-lo. Acrescentariam que o simples conhecimento do argumento bastaria para justificar julgamento tão definitivo. Outra questão — ainda que indireta — compromete Jasão e o velo de ouro: de certo modo — tal qual O gigante de Maratona (La battaglia di Maratona, 1956), de Jacques Tourneur e do não creditado Mario Bava; Hércules (Le fatiche di Ercole, 1958), de Pietro Francisci; Os últimos dias de Pompeia (Gli ultimi giorni di Pompei, 1959), de Mario Bonnard; A guerra de Troia (La guerra di Troia, 1961), de Giorgio Ferroni; O colosso de Rodes (Il colosso di Rodi, 1961), de Sergio Leone; Rômulo e Remo (Romolo e Remo, 1961), de Sergio Corbucci etc. — é culpado pela invasão dos heróis parrudos de triste memória — Hércules, Maciste, Ursus, Sansão, Golias e outros — que tomaram de assalto as telas dos cinemas ao longo dos anos 60. Esses personagens, recriados e tratados de qualquer maneira, protagonizaram uma infinidade de aventuras risíveis — geralmente de procedência italiana — e promoveram verdadeira lambança com temas de procedência mitológica.


Quanto à inventividade... Sim, Jasão e o velo de ouro tem essa qualidade, não por mérito exclusivo do diretor Don Chaffey — ex-cenógrafo, responsável por realizações rotineiras para a Walt Disney Productions: Meu leal companheiro (Greyfriar's Bobby: the true story of a dog, 1961), O príncipe e o mendigo (The prince and the pauper, 1962), O cavalo sem cabeça (The horse without a head: the 100,000,000 Franc train robbery, 1963), Um grande amor nunca morre (The three lives of Tomasina, 1964) etc. Em Jasão e o velo de ouro Chaffey apenas prepara as tomadas para a intervenção do mago dos efeitos especiais Ray Harryhausen. Este é o verdadeiro criador do filme, o único responsável pelo irresistível encanto que ainda possui.


Jasão (Todd Armstrong) e Medeia (Nancy Kovack)

Talos, o deus de bronze, acossa os Argonautas


Hoje, frente às facilidades decorrentes da crescente informatização dos efeitos especiais, Ray Harryhausen deve, mais que nunca, ser lembrado e resgatado. Sua época não conheceu computação gráfica, a realidade virtual e organizações como Industrial Light and Magic que praticamente riscaram o impossível do mundo do cinema. Harryhausen é criador de um tempo que exigia, literalmente, mãos à massa. Concebeu efeitos especiais e visuais mirabolantes e fantásticos, modelos de tamanho real ou em miniatura, além de artefatos mecânicos diversos, quase todos direta ou indiretamente articulados pelas mãos. Aperfeiçoou a animação em stop motion, jogos de luzes, emprego de maquetes e espelhos. É o gênio absoluto de um setor; continuador de uma tradição honrada por Willis O'Brien — responsável pelo realismo fantástico do primeiro King Kong (King Kong, 1933), de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, justamente o filme que mais o influenciou. Harryhausen estava com 13 anos quando o viu pela primeira vez. Segundo conta, retornou "mais de cem vezes"[1] aos cinemas para apreciar as proezas e os efeitos que deram vida ao maior e mais admirado símio das telas — na verdade um boneco articulado de aproximadas 16 polegadas de altura, com movimentos fotografados quadro a quadro e combinados à ação do filme por trucagens simples, possibilitadas por lentes e espelhos.


King Kong determinou a carreira que Harryhausen abraçaria. Coincidentemente, ocupará em seu primeiro trabalho para o cinema o posto de assistente do mestre Willis O'Brien na concepção do fantástico Monstro de um mundo perdido (Might Joe Young, 1949), de Ernest B. Schoedsack, a respeito de um macaco gigantesco como no filme de 1933. Daí em diante se afirmará na concepção de maravilhas do extraordinário. Dará preferência aos temas mitológicos e inundará as telas de figuras bizarras e monstruosas livremente encontradas na zona do imaginário. Encantou uma porção de filmes, a maioria de gosto duvidoso — infelizmente. Mas é por causa de seu nome que sentimos atração por coisas como O monstro do mar revolto (It came from beneath the sea, 1952), de Robert Gordon; A 20 milhões de léguas da Terra (20 million miles to Earth, 1957), de Nathan Juran; Simbad e a princesa (The 7th voyage of Sinbad, 1958), de Nathan Juran; As viagens de Gulliver (The 3 worlds of Gulliver, 1960), de Jack Sher; Os primeiros homens na Lua (First men in the moon, 1962), de Nathan Juran; Mil séculos antes de Cristo (One million years b. C., 1966), de Don Chaffey; O vale de Gwangi (The valley of Gwangi, 1969), de James O'Connolly; Criaturas que o mundo esqueceu (Creatures the world forgot, 1971), de Don Chaffey; A nova viagem de Sinbad (The golden voyage of Sinbad, 1974), de Gordon Hessler; Simbad e o olho do tigre (Sinbad and the eye of the tiger, 1977), de Sam Wanamaker; e Fúria de titãs (Clash of the titans, 1981), de Desmond Davis.



Acima e abaixo: a maravilhosa brigada dos esqueletos


Jasão e o velo de ouro é antes de tudo uma obra mestra dos efeitos especiais. São 90 ao todo, concebidos quadro a quadro em um processo aperfeiçoado do stop motion por Harryhausen, inicialmente batizado de Dynamation, a seguir de Dynarama. O resultado é surpreendente, não apenas para a época. Impressiona ainda hoje, 30 anos após a realização. Os esqueletos que brotam da terra nos momentos finais, armados de escudos e espadas para medir força contra Jasão e dois argonautas, são assustadoramente críveis pela maleabilidade.


Medeia (Nancy Kovack) sob o velo de ouro, Jasão (Todd Armstrong) e Argos (Laurence Naismith)

  
Ray Harryhausen, o produtor Charles H. Schneer e o músico Bernard Herrmann firmaram parceria em vários filmes desde que iniciaram a colaboração em 1958 com Simbad e a princesa. O roteirista Beverley Cross — marido da atriz Maggie Smith e especialista em história e mitologia — teve participação não creditada em Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1964), como assessor do diretor David Lean e do roteirista Robert Bolt.





Roteiro: Jan Reed, Beverley Cross, baseados no poema A Argonáutica, de Apollonius Rhodius. Produção associada e efeitos visuais: Ray Harryhausen. Direção de fotografia (Eastmancolor): Wilkie Cooper. Desenho de produção: Geoffrey Drake. Produtor executivo: John Dark. Montagem: Maurice Rootes. Títulos: James Wines. Assistente de direção: Dennis Bertera. Edição de som: Alfred Cox. Gravação: Cyril Collick, Red Law. Continuidade: Phyllis Crocker. Direção de arte: Herbert Smith, Jack Maxsted, Tony Sarzi Braga. Câmera: Henry Gillam. Música: Bernard Herrmann. Direção musical: Bernard Herrmann na regência da Royal Phillarmonic Orchestra. Gerentes de unidade: Jimmy Komisarjevsky, Paul Maslansky, Leonardo "Leon Lenoir" Scavino. Modelagem: Arthur Hayward (não creditado). Coreografia das lutas: Ralph Faulkner (não creditado). Dublê: Eddie Powell (não creditado). Assistente de montagem: María Luisa Pino (não creditada). Orquestração (não creditada): Bernard Herrmann. Esgrimista: Ferdinando Poggi (não creditado). Mixagem de som: Westrex Recording System. Tempo de exibição: 104 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] FERREIRA, Fernando. Perseu e Andrômeda, com efeitos especiais. O Globo. Rio de Janeiro, 2/jul./1981. Segundo Caderno.

7 comentários:

  1. Hola Eugenio, en primer lugar es un gusto volver a encontrarme con tu blog tras mi pausa veraniega. Desde luego que este es uno de los espacios con más calidad en análisis cinematográficos que se encuentran por la red.

    Respecto a la película evaluada hoy, me llama mucho la atención el trabajo artesanal y el trabajo cuadro a cuadro como citas en la evaluación. Personalmente es una película que me gusta bastante y que cuando la vi de niño me pareció impresionante. Las películas que has citado, son llamativas (O monstro do mar revolto (It came from beneath the sea, 1952), de Robert Gordon; A 20 milhões de léguas da Terra (20 million miles to Earth, 1957), de Nathan Juran; Simbad e a princesa (The 7th voyage of Sinbad, 1958), de Nathan Juran; As viagens de Gulliver (The 3 worlds of Gulliver, 1960), de Jack Sher; Os primeiros homens na Lua (First men in the moon, 1962), de Nathan Juran; Mil séculos antes de Cristo (One million years b. C., 1966), de Don Chaffey; O vale de Gwangi (The valley of Gwangi, 1969), de James O'Connolly; Criaturas que o mundo esqueceu (Creatures the world forgot, 1971), de Don Chaffey;), independientemente de la calidad o del gusto del espectador.

    Un abrazo y gracias por tu trabajo.

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    1. Hola, Miguel!

      Espero que haya pasado por buenas vacaciones de verano ahí en España. Aquí, oficialmente, el verano comienza sólo en diciembre, en las proximidades de la Navidad. Con respeto específicamente a la película evaluada, la considero
      como una pequeña y preciosa joia. Siempre que puedo y surge la oportunidad, reservo un tiempo para verla, pues el trabajo del artesano Ray Harryhausen es brillante. De estas otras que fueron referenciadas tengo un carinho todo especial por ("First men in the moon", 1962), de Nathan Juran. Sólo a vi una vez, cuando era niño, pero me marcó desde entonces. Tanto que tengo la imagen aún viva en la memoria.

      Saludos y abrazos.

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  2. Hola querido Eugenio, sin duda una hermosa película...Me hizo recordar aquellas películas que veía en la televisión sobre monstruos y Dioses marinos,sin embargo,este filme no pude verlo y creo merece disfrutarse...Estupendo el toque que das en tu reseña...La fotografía es una joyería fílmica...!!! ME ENCANTA....Gracias por compartir,te mando besitos y un gran abrazo desde mi desierto....Sin distancias...!!!

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    1. Hola, Maria Del Socorro,

      Gracias por la visita y por el comentario. Esta película tiene un sabor todo especial. Es típica del periodo en que viví la infancia. Siempre que surge la oportunidad, reservo tiempo para verla, pues los trabajos de trucagem y creación de efectos es simplemente brillante delante de los recursos existentes a la época. Creo que podrá encontrarla en el Youtube para verla, con subtítulos en español.

      Besos y abrazos.

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  3. Excelente publicação .
    Vou correndo encontrar esse filme .
    Adoro filmes antigos com bons diretores e "efeitos" epeciais antigos .

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    1. Acredito que não terá dificuldades para encontrá-lo, Marina. Estava disponível no Youtube, até há pouco tempo. Vi no cinema quando era moleque. Se for procurar no Youtube, cuidado: há outras versões com idêntico nome. Dê atenção á versão de 1963, dirigida por Don Chaffey e estrelada por Todd Armstrong.

      Beijos e abraços. Obrigado pela presença.

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    2. Marina, aqui está o link para o filme correto, no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=0wBJ31J6Hv0.

      Abraços.

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