domingo, 13 de agosto de 2017

ESTA É A ORDEM: ‘NINGUÉM MORRE!’ DURANTE “UM PASSEIO AO SOL”

Frente ao implacável ritmo da vida atual, o 3 de setembro de 1943 perdeu, certamente, importância e significado. A não ser para a extensa crônica da Segunda Guerra Mundial e memória de alguns poucos sobreviventes das forças dos Estados Unidos e Inglaterra desembarcadas em Salerno, Itália continental. Nesse dia os aliados iniciaram, enfim, a difícil retomada da Europa controlada pelo nazismo desde o início oficial dos conflitos há quatro anos. Das memórias do combatente e jornalista estadunidense Harry Brown, Robert Rossen extraiu enxuta e envolvente adaptação: o roteiro de Um passeio ao sol (A walk in the Sun, 1945), transformado em filme marcante por Lewis Milestone. O diretor levou às telas, quinze anos antes, o vigoroso libelo antibelicista Im westen nichts neues do autor alemão Erich Maria Remarque: Sem novidade no front (All quiet on the western front, 1930). Um passeio ao sol não guarda relações com o grosso das produções cinematográficas sobre a Segunda Grande Guerra. O tom espetacular e a solene grandiloquência foram deixados de lado. Ganha primazia a humana fragilidade de alguns marines em deslocamento por terreno desconhecido. Contam apenas com a ajuda de mapas pouco precisos e parcas informações complementares fornecidas pelo distante comando, mais as limitações da capacidade de observação para se anteciparem às inevitáveis e mortais surpresas da campanha. Submetem-se no mais das vezes a longas, intermináveis e tensas esperas sem que nada de extraordinário aconteça. Em geral, pouco é percebido ou como diagnostica o paramédico MacWilliams (Sterling Holloway): “O único problema é que nada podemos ver. Nós lutamos de ouvido”. A guerra desequilibra, dá nos nervos, fere a esperada integridade dos soldados obrigados a Um passeio ao sol. A realização de Milestone foi relançada em videodisco, no Brasil, com o nome de Caminhada sob o sol. A apreciação a seguir, de 1995, sofreu pequena atualização por meio de nota de pé de pagina em 2017.







Um passeio ao sol
A walk in the Sun

Direção:
Lewis Milestone
Produção:
Lewis Milestone, Samuel Bronston (não creditado)
Lewis Milestone Productions
EUA — 1945
Elenco:
Dana Andrews, Richard Conte, Sterling Holloway, George Tyne, John Ireland, Herbert Rudley, Lloyd Bridges, Norman Lloyd, Richard Benedict, Huntz Hall, James Cardwell, George Offerman Jr., Steve Brodie, Matt Willis, Chris Drake, Alvin Hammer, Victor Cutler, John Kellogg, Jay Norris e os não creditados James Base, Fred Carpenter, Dan Cassell, Harry Cline, Dick Daniels, Anthony Dante, Danny Desmond, Ray Elder, Jack Ellis, Dick Elmore, Bennett Green, Tommy Hagan, Robert Horton, Orn Huntington, John Laurenz, Harry Leonard, Gus Lombardo, Billy Lord, Robert Lowell, Grant Maiben, Burgess Meredith, Larry Murphy, Mickey Novak, Malcolm O'Guinn, Ted O'Shea, Foster H. Phinney, Dan Quigg, Russ Randall, Joe Roach, Ed Roge, Jerome Root, Luis Rosado, Fred Sanders, Jerry Sheldon, Jack Sterling, Don Summers, George Turner, Henry Vroom, Bob Wolfe, Robert Wright.



Bastidores de O tempo não apaga (The strange love of Martha Ivers, 1946)
O diretor Lewis Milestone com os atores Kirk Douglas, Van Heflin e Barbara Stanwyck



No cinema, um dos relatos mais realistas das vivências de soldados em combate é oferecido por Um passeio ao sol. O roteiro de Robert Rossen adapta com rara felicidade e praticamente ao pé da letra as memórias do jornalista estadunidense Harry Brown, publicadas em livro em 1944. Incorporado à infantaria de 1941 a 1943, o autor marcou presença no começo da campanha das forças aliadas na Europa a partir da invasão da Sicília, Itália. Estampou testemunho pródigo e revelador das sensações mais íntimas e profundamente humanas dos combatentes — indivíduos comuns, submetidos a situações em tudo extraordinárias e traduzidas como medos, saudades de casa, aguçado instinto de sobrevivência, pesar pela morte de companheiros e o inevitável trauma das batalhas.


Aqueles que tiveram a oportunidade de ler as páginas de Brown sabem o quanto Robert Rossen e o diretor Lewis Milestone foram fieis e devidamente enfáticos na tarefa de vertê-las para a tela. Um passeio ao sol não trata de grandes e violentos combates; muito menos descreve atos sobre-humanos elevados à condição de heroicos. Apenas observa o soldado em lento e arriscado avanço por terreno desconhecido, descortinado pelo poder da nem sempre exata acuidade visual — ainda mais quando os riscos do inesperado podem irromper a qualquer instante. Além do alcance da observação está o desconhecido, certeza que afeta os nervos — principalmente dos feridos por dentro, espiritualmente fragilizados por muitos horrores e traumas testemunhados nos incontáveis campos percorridos em muitas campanhas. O senso de orientação às vezes falha, apesar dos mapas e das vagas informações complementares recebidas. Os homens sabem apenas que devem chegar em determinado lugar e executar a missão com o máximo de cautela e eficácia.


Lewis Milestone dirigiu um dos mais importantes filmes de guerra: Sem novidades no front (All quiet on the western front, 1930). Com a parceria de Joris Ivens, em 1942, realizou um dos melhores documentários sobre a resistência russa ao invasor nazista: Our Russian front. Também dramatizou a guerra em Revolta! (Edge of darkness, 1943), Mais forte que a vida (The purple heart, 1944), Arco do triunfo (Arch of Triumph, 1948), Até o último homem (Hall of Montezuma, 1951) e Os bravos morrem de pé (Pork Chop Hill, 1959). Os temas bélicos, com aventuras passadas na retaguarda ou vanguarda dos conflitos, são praticamente a sua especialidade.


Um passeio ao sol é título dos mais pessoais e prestigiados da filmografia de Milestone. Passados pouco mais de 50 anos da época em que foi concebido, ainda assombra por qualidades como a objetiva simplicidade da exposição, a humanidade dos personagens — captados em suas singularidades —, as interpretações verdadeiras e a composição pictórica.


Conta história passada do começo da alvorada até aproximadamente o meio-dia de 3 de setembro de 1943. Nessa data acontece o desembarque aliado em Salerno, Itália continental. Os esquadrões, dispostos em variadas barcaças de assalto, convergem dos navios de transporte para a praia. Do conjunto, seguindo as linhas mestras de Harry Brown, Milestone isola o Pelotão Lee — formado por 53 fuzileiros, quase todos texanos. Desde o mar o agrupamento perdeu os principais homens em comando, atingidos pelo fogo inimigo. Depois de encontrar abrigo precário a poucos metros da praia conflagrada, aguarda o nascer do sol para o cumprimento da tarefa designada: avançar cerca de seis milhas (10 quilômetros) continente adentro para destruir ponte estratégica e imobilizar ninho alemão de metralhadoras em casa de fazenda.


Um passeio ao sol é incomum. As cenas iniciais, de apresentação dos créditos, evidenciam de imediato essa qualidade. Um narrador — voz do ator Burgess Meredith — apresenta os personagens e lhes realça as particularidades individuais. Estas, geralmente, são as primeiras vítimas nunca contabilizadas da guerra. Raras produções sobre conflitos armados se preocupam tanto em humanizar os combatentes como a presente realização de Lewis Milestone. Ao longo de 117 minutos o espectador se posiciona ao lado de homens comuns: fazendeiros, estivadores, professores, coveiros, operários etc. Foram convocados a tomar parte de um teatro de operações, distante muitos quilômetros das interioranas cidadezinhas dos EUA nas quais estão profundamente enraizados. Para casa desejam voltar o quanto antes. Todos são destituídos de patentes. O posto mais elevado é o de sargento: Tyne (Andrews), Ward (Bridges) e Porter (Rudley). Os demais são praças: Rivera (Conte), Freedman (Tyne), Windy Craven (Ireland), MacWilliams (Holloway), Archembald (Lloyd), Tranella (Benedict) etc.


Dana Andrews como o Sargento Bill Tyne

Lloyd Bridges como o Sargento Ward

John Ireland como o praça Windy Craven

Richard Conte como o praça Rivera


Tiros, rajadas, chamas, fumaça, explosões e similares costumam caracterizar a guerra cinematográfica como exercício de efeitos carregados de grandiosidade. Porém, são totalmente destituídos de espetacularidade em Um passeio ao sol. Geralmente fornecem a tônica das produções mais escapistas e descompromissadas do gênero. Promovem, via de regra, a valorização de uma estética vazia, desprovida de sentido e posta unicamente a serviço da elevação da temperatura emocional e da taxa de adrenalina das plateias em busca de catarse. Para Lewis Milestone, só possuem sentido se servem para caracterizar o que pode ser chamado de “névoa da guerra” ou se colaboram para traduzir o horror produzido nos homens. Devem contribuir para delinear a psicologia dos personagens.


O negrume da fumaça dos bombardeios, o detonar dos morteiros, o zunir das balas e a metralha dos aviões realçam, em Um passeio ao sol, a inquietação de personagens diante da perspectiva da morte iminente. Geram melancolia, medo, angústia, pânico, apreensão, fraqueza, desespero e expectativa. São longos os momentos de espera — nos quais nada ou tudo pode acontecer —, geralmente ao rés-do-chão, os rostos em contato com ervas e insetos. Milestone revela a fragilidade de homens acuados, aos quais só é dada uma opção: seguir em frente e executar a missão, não importam os custos e as perdas — inclusive as vidas dos companheiros mais chegados. “Ninguém morre”, dizem uns aos outros, nem que seja como mero subterfúgio ilusório.


Provavelmente, o mais pavoroso de uma guerra é a impossibilidade de se ter uma dimensão real da conflagração desenrolada à distância ou nas proximidades. Em geral, percebe-se o caos, mas as fontes geradoras se encontram ocultas no mais das vezes. Do inimigo — quase sempre um igual — não se vê o rosto. Podem ser divisados pela exposição de membros dos corpos sem vida, como as mãos inertes que escapam do interior de veículos destruídos ou das janelas de abrigos conquistados. São presenças incômodas. Lembram que o oponente também é revestido de humanidade. As mãos sempre possuíram crucial importância para Lewis Milestone, desde o exemplar epílogo de Sem novidades no front.


O medo e a ânsia provocados por algo oculto, entretanto vivo e presente, transparecem significativamente na sequência em que Tyne e MacWilliams tentam apreender os eventos passados do outro lado da pequena elevação que guarnece a trincheira protetora. Cada qual reage de diferentes maneiras à tensão. Tyne pouco fala. Apenas observa as gigantescas cortinas de fumaça negra que encobrem o horizonte. Por sua vez, MacWilliams libera a palavra. Oferece descrição tão assustada quanto precisa da guerra: “Gostaria de saber o que está acontecendo lá embaixo. (...). Deve estar um espetáculo (...). Pelo menos sabemos onde as coisas estão. Você está aqui e as bombas estão do outro lado. É simples. Você está aqui enquanto os rapazes são mortos onde se encontram. É tudo muito simples. (...). O único problema é que não podemos ver nada. Esse é o problema com a guerra. Nunca se consegue ver nada. Nós lutamos de ouvido. Temos que adivinhar o que se passa. Temos que adivinhar e imaginar a cena”.


O paramédico McWilliams (Sterling Holloway)

O Sargento Bill Tyne (Dana Andrews) e McWilliams (Sterling Holloway)



Um passeio ao sol é admirável. Soa verdadeiro com a discreta narração de Burgess Meredith, a ilustrativa balada interpretada por Kenneth Spencer, a imagem propositalmente suja da perspicaz fotografia em preto e branco de Russell Harlan. Acima de tudo é um pequeno e honesto filme. Não é mobilizado por palavras de ordem alusivas a heroísmo, patriotismo e covardia. Nem mesmo os inimigos são demonizados. Já se sabe que são representações do nazismo e pronto. Os marines do Pelotão Lee são apenas sujeitos que tentam sobreviver. Estão cientes da situação que os enreda, como se fossem partes ínfimas de uma trama gigantesca, assumidamente perigosa e mortal. Gostariam de estar em casa, às voltas com as vidinhas pacíficas e comuns. No entanto, estão obrigados ao cumprimento da missão que os envolve — sobre a qual possuem pouca ou nenhuma capacidade de controle.


A simplicidade narrativa é um dos principais atrativos de Um passeio ao sol, inclusive os personagens arquetípicos. Podem ser previsíveis em suas particularidades de gente comum, facilmente notada em qualquer grupamento. Porém, parece renovada pelo talento da direção. Caricaturas e estereótipos grosseiros são evitados. Os soldados são dotados de personalidades próprias que se desenvolvem lentamente perante a câmera, até se apresentarem como indivíduos únicos em vivências, queixas, esperanças e saberes. Merecem destaques: Archimbeau — constantemente aposta no caráter interminável da guerra a ponto de acreditar que todos estarão combatendo no Tibet na década de 50; Rivera — responsável pela metralhadora, é irrefreável filador de cigarros do parceiro Tranella (Richard Benedict) e autor da emblemática exortação “Ninguém morre”, a todo momento repetida; Windy Craven — sem condições de escrever para a namorada em virtude das tensões do desembarque e da caminhada, mas em permanente elaboração mental de cartas que um dia tomarão forma no papel; sargento Ward — louco para saborear uma maçã, bom agricultor, conhecedor das potencialidades dos diversos solos e ciente de que o terreno sobre o qual caminham não se presta a qualquer tipo de cultivo; o tenso sargento Eddie Porter — já lutou muitas guerras, agora jaz vencido pelo stress traumático; todos sabem que não é um covarde, mas alguém ferido na alma; sargento Bill Tyne — improvisado inesperadamente como líder do pelotão e em luta para não ser derrotado pelos temores que começam a envolvê-lo; e, por fim, o sempre apavorado e falador paramédico McWilliams — fatalmente abatido na praia em decorrência da curiosidade. Aparentemente, Dana Andrews tem o papel principal. Porém, os demais atores com diálogos possuem tempos equilibrados de exposição.


O sargento Bill Tyne (Dana Andrews) diante do corpo de McWilliams (Sterling Holloway)

Deitado, sofrendo de stress traumático, o Sargento Eddie Porter (Herbert Rudley) e, à direita, o praça Archimbeau (Norman Lloyd)


Um passeio ao sol foi listado pela estadunidense National Board of Review como um dos dez mais importantes filmes apresentados em 1946. Mereceu do British Academy of Film and Television Arts (BAFTA) a indicação ao prêmio de Melhor Roteiro em 1952[1].





Música: Frederic Efren Rich. Balada-título: Millard Lampell (letra), Earl Robinson (música), Kenneth Spencer (intérprete). Direção de fotografia (preto e branco): Russel Harlan. Roteiro: Robert Rossen, a partir do romance homônimo de Harry Brown. Montagem: Ducan Mansfield. Direção de arte: Max Bertish. Instrutor: Serge Betersson. Assistente de direção: Maurie Suess, Sam Nelson (não creditado). Gravação de som: Corson Jowett. Gerente de produção: Joseph H. Nadel. Guarda-roupa: Sam Benson (não creditado). Mixagem musical: Elmer Raguse (não creditado). Prompter: Serge Bertensson. Consultoria técnica: Coronel Thomas D. Drake, Louis Walters (não creditado). Presidente da Lewis Milestone Productions: David Hersh. Assistente para o produtor: Nate Watt (não creditado). Jurisdição da produção: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Agradecimentos especiais ao: Forças Armadas dos Estados Unidos, Exército dos Estados Unidos (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 117 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1995)



[1] Nota de atualização de 2017: Um passeio ao sol, em 2016, foi incluído no rol de filmes de preservação obrigatória da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, o National Filme Registry. 

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