domingo, 10 de abril de 2016

A MOSCA PREMIADA PELA "PLAYBOY" ABALOU MINHAS NOITES DE SONO

Minhas memórias cinéfilas guardam a lembrança de amigos de infância apaixonados por filmes de terror. Na verdade, devido aos rigores da censura de então, não haviam assistido a nada do que comentavam. Mas sabiam de tudo sobre peripécias cinematográficas de Drácula e outros seres do macabro, graças às revistas em quadrinhos que reproduziam filmes ou pelas muitas matérias publicadas em veículos diversos. O filme de Kurt Neumann, A mosca da cabeça branca (The fly, 1958), exercia enorme atração sobre a garotada. Só tive oportunidade de vê-lo já adolescente, graças à Sessão Mistério da TV Globo, em 1972. A história, pavorosa segundo os padrões da época, liquidou com a tranquilidade de minhas noites de sono. Bastava cerrar os olhos para o diptera do título zunir em torno da cama, durante assustadoras semanas. Hoje — com a banalização do mistério e a explicitação dos temas sobrenaturais —, não deve amedrontar a mais ninguém. Principalmente depois de A mosca (The fly, 1986), releitura de David Cronenberg — repleta de gosma, degradação e perebas  ao conto de George Langelaan, publicado e premiado pela Playboy em 1957. Aqui, a oportunidade permite a rememoração da eficaz, simples, direta e atualmente olvidada produção B de 1958. A apreciação a seguir, datada de 1974, é uma das primeiras experiências do autor na abordagem de filmes.






A mosca da cabeça branca
The fly

Direção:
Kurt Neumann
Produção:
Kurt Neumann, Robert L. Lippert (não creditado).
20th Century-Fox
EUA — 1958
Elenco:
Vincent Price, Al Hedison, Patricia Owens, Herbert Marshall, Kathleen Freeman, Betty Lou Gerson, Charles Herbert e os não creditados Eugene Borden, Harry Carter, Arthur Dulac, Torben Meyer, Franz Roehn, Charles Tannen, Bess Flowers.



Moldes utilizados por Al Hedison da cabeça metamorfoseada da mosca e o diretor Kurt Neumann



A mosca da cabeça branca é clássico de horror e ficção científica. O roteiro de James Clavell adapta o conto The fly, de George Langelaan — originalmente publicado na Playboy de junho de 1957 e imediatamente elevado ao patamar dos melhores desse ano. A narrativa — densa, concisa e de qualidade — fez jus ao prêmio com o nome da revista. O cinema logo se interessou. Foi filmado com baixo orçamento no rápido prazo de 18 dias, número reduzido de atores e cenários. Estes basicamente se concentram no laboratório do cientista Andre Delambre (Hedison) — palco do trágico acidente que o vitimou para sempre — e são extensão da casa que divide com a esposa Helen (Owens) e o filho menor Philippe (Herbert).


Al Hedison, futuro David Hedison, interpreta o cientista Andre Delambre

Charles Herbert interpreta Philippe Delambre, filho de Andre (Al Hedison)

  
Andre desenvolvia sigilosa pesquisa para a Força Aérea. O trabalho resultou no teletransportador — aparelho capaz de restaurar a integridade molecular de coisas e seres depois de os transportar, desintegrados, muito além do ponto de origem. Antes do pleno aperfeiçoamento, foi testado em seres vivos. O pobre gato de estimação da família desapareceu por completo. Feitos os reajustes, o próprio inventor se entregou como cobaia. O sucesso da aferição seria completo se não fosse pelo detalhe da mosca distraída a invadir, sem ser percebida e na hora H, o compartimento de desintegração. Na recomposição, as moléculas dos dois entes foram misturadas e reorganizadas da pior maneira. Andre passou a ostentar, acima do pescoço, a cabeça do inseto proporcionalmente reajustada em tamanho. Nas mesmas condições, uma pata da intrusa substituiu um dos braços. O cérebro do infeliz permaneceu em perfeito funcionamento. Mas a fala foi prejudicada e a aparência geral não ficou das melhores. Como primeira reação, encapuzou-se por completo e se isolou da família. Porém, desprovido de condições para resolver sozinho o problema, teve que solicitar o auxílio de Helen. A mosca metamorfoseada com partes do seu corpo teria que ser encontrada. A esposa ainda desconhecia o estado do marido, algo que o espectador apenas cogitava.


Curiosa e aflita, Helen descobre a cabeça de Andre. Sobrevém uma das cenas mais assustadoras do cinema. Incrédula e apavorada diante da visão, tem o rosto multiplicado na tela — conforme a capacidade visual de uma mosca na qual o marido parcialmente se transformou — acompanhado por grito de pleno horror. Como a específica criatura não é encontrada, cessam as esperanças para o consorte voltar à normalidade. Resta-lhe a desesperada opção de apressar o próprio fim. Mais uma vez terá que contar com o auxilio da atordoada mulher. O ato de extremo sacrifício obriga-a a acionar gigantesca prensa industrial para esmagar por completo cabeça e membro do infeliz cientista, de modo a não sobrar vestígios da fracassada experiência.


O cientista Andre Delambre (Al Hedison) metamorfoseado

Helen Delambre (Patricia Owens) sob a perspectiva do marido Andre (Al Hedison) metamorfoseado


Findo o trágico e brutal ato de imolação, Helen — fora de si e pressionada pelo remorso — confessa-se culpada de assassinato ao cunhado François (Price), mas não consegue explicar os motivos. A polícia, via inspetor Charas (Marshall), entra no caso. Ela corre o risco de ser presa. Seu estado aparenta loucura, ainda mais pelo estranho hábito de sempre vasculhar a casa à cata de uma mosca de peculiar aparência. Por fim, forçada por François, revela a verdade. Mas não convence o policial, disposto a interná-la.


Andre Delambre (Al Hedison) e Helen (Patricia Owens)


Felizmente — na falta de palavra mais apropriada —, tudo se põe em pratos limpos, em sequência angustiante e pavorosa. No jardim, acompanhado do sobrinho Philippe, François tem a atenção despertada por pedidos de socorro quase inaudíveis. Logo descobre a fonte dos chamados: a mosca com a cabeça de André, prisioneira em uma teia, prestes a ser atacada por uma aranha. Charas, chamado a testemunhar o terrível quadro, perturba-se com a visão. Desconcertado e movido pela piedade, desfere esmagadora e definitiva pedrada sobre a inusitada cena. O estranho caso envolvendo a morte de Andre Delambre chega ao fim, como decorrência de suicídio.


Helen (Patricia Owens)


A mosca da cabeça branca — apesar do baixo orçamento característico do padrão de produção B — prima pela eficácia na manipulação dos elementos do mistério, suspense e pavor ao longo dos seus 94 minutos. Um clima angustiante, ampliado pelo quase incessante zunido do inseto na trilha de som, percorre o filme desde o fatal experimento ao ponto no qual Helen remove o capuz da cabeça do marido. O espectador praticamente a acompanha no grito de desespero e pavor. Também sofre, imobilizado e impotente, nas terríveis cenas finais.


O terrível e angustiante final: Philippe (Charles Herbert) e o tio François Delambre (Vincent Price) diante da teia de aranha que aprisiona a mosca metamorfoseada (abaixo)
  



Muito depois, o ator Al Hedison — Albert David Hedison Jr. — alterou o prenome artístico apenas para David, com o qual ficou mais conhecido — principalmente ao dar vida ao Capitão Crane do submarino Seaview na série de TV Viagem ao fundo do mar (Voyage to the bottom of the sea)[1], criada por Irwin Allen.






Roteiro: James Clavell, baseado no conto The Fly, de George Langelaan. Direção de fotografia (CinemaScope, Color DeLuxe): Karl Struss. Música: Paul Sawtell. Montagem e desenho de produção: Merrill G. White. Maquiagem: Ben Nye. Efeitos especiais fotográficos: L. B. Abbott, Jack B. Gordon (não creditado). Figurinos: Adele Balkan, Charles Le Maire. Decoração: Eli Benneche, Walter M. Scott. Penteados: Helen Turpin. Consultor de cor: Leonard Doss. Assistente de direção: Jack Gerstman. Som: Eugene Grossman, Harry M. Leonard. Direção de arte: Theobold Holsopple, Lyle R. Wheeler. Sistema de mixagem sonora: Stéreo em 3 canais pela RCA Sound Rocording. Edição de som (não creditada): Don Isaacs, Dick Jensen. Assistente de montagem: Orven Schanzer (não creditado). Continuidade: Kathleen Fagan (não creditado). Planejamento dos créditos: Wayne Fitzgerald (não creditado). Instrutor de diálogos: Clarence Marks (não creditado). Lentes de CinemaScope: Bausch & Lomb. Tempo de exibição: 94 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)



[1] Produção da Cambridge em associação com a 20th Century-Fox Television. A série é composta de 110 episódios distribuídos por quatro temporadas. Originalmente foi lançada pelo canal estadunidense ABC (American Broadcasting Company) em 14 de setembro de 1964 e encerrada em 31 de março de 1968. 

12 comentários:

  1. Adorei o blog, e o post, já estou seguindo, um forte abraço!
    Depois passa lá na minha página, tem post novo lá!
    Abraços!
    http://umalbumpanoramico.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado, Victor, pela visita e pelo comentário estimulador. Também estou seguindo o seu blog.

      Abraços.

      Excluir
  2. Bom comentário a respeito de um ícone do terror dos anos 50-60.Parabéns pelo trabalho e pela profundidade. Mistérios que fizeram parte de uma época. Abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro Giovanni;

      Esta é apenas uma apreciação do tempo em que eu ainda engatinhava na escrita de temas relacionados à crítica de filmes. Tanto que é mais descritiva que analítico. Coisas da idade. O texto é de 1974. Quantos anos e quedas de cabelo se passaram desde então?

      Abraços.

      Excluir
  3. Magnífica! Recordo que paseí un par de noites medio en vela jeje. Sempre se sostivo que a obra escrita é superior a súa adaptación cinematográfica, ou sexa, que a novela é mellor ca película, máis no caso de "A mosca" pódese afirmar que é así.
    Excelente Jose Eugenio.
    Saúdos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muchas gracias por el comentario y por la apreciación, Marybel Galaaz. Yo, desde niño, siempre fui fácilmente impressionable. Confieso que hasta hoy, a los 60 años, aún tengo muy miedo de determinados películas, principalmente de los que tratan de la Semana Santa, con escenas muy evidentes de crucificação.

      Saludos y abraços.

      Excluir
  4. Eugenio,

    Lembrava apenas do titulo, de Price e Owens, atriz muito em voga nos anos 1950.

    Ler a matéris não foi como rever o filme, pois dele nada lembrava, haja visto te-lo assistido no seu lançamento, por volta de 1958/59.

    Porém, tenho lembranças dos gritos que ouvi no cinema, este sempre de sessões lotadas, para ver o filme que o Newman criou em apenas 18 dias.

    Uma pena que as TVs não tenham qualquer sentimento de qualidade e reprisem
    tantas e tantas obras do passado recente e que surrariam todas estas besteiramas que passam conotados como filmes de terror.

    Recordo que para ver O Vampiro da Noite/58, amarguei filas gigantescas nas cercanias do cinema que o passava.
    No entanto, The Fly passou em apenas um cinema aqui na Bahia, que era o cinema exclusivo que exibia os filmes da 20th Century Fox, onde assisti a muitos belos filmes.

    Neste cinema vi Festivais e mais Festivais de bons filmes da Fox. Era apenas um filme por dia e o cinema lotava e tinha sessões de 2 em 2 horas até a derradeira, às 22 horas.

    Belos e saudosos tempos.

    jurandir_lima@bol.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Uma pena a nossa atualidade em se tratando de cinema, Jurandir. Esta nefasta atualidade nos faz perder muitas coisas preciosas, que são simplesmente postas a escanteio sob a equivocada classificação de velhas, quando não de ultrapassadas. Veja, você: até há alguns anos, os cinemas costumavam relançar os filmes chamados apressadamente de antigos. Havia salas especializadas em relançamentos e, não raro, podíamos encontrar títulos dos anos 20, 30, 40 e mais. Infelizmente, acabou.

      Abraços.

      Excluir
  5. Como en todo el blog otro excedente articulo mas que completo de Eugenio de una también excelente película que nos dejo temblando en nuestros asientos en el pasado y nos dio pesadillas a más de uno, durante varios días.Una clásico del que se hizo un remake que también tubo mucho exito. Un saludo amigo.
    P.D. Te dejo una petición que creo merece ser tratada por ti como se merece. Se trata de la película "To be or not to be" de Ernst Lubitsch Un abrazo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hola, Jordi Cabré Carbó - que debe estar divirtiéndose muy en los viajes vacacionales...

      Antes de otra cosa, agradezco más una vez por su presencia y por el comentario. Discúlpeme también por la relativa tarda para responder, pero ni siempre consigo postar las respuestas con la rapidez merecida. Sepa, amigo, que la película en apreço aún me causa angustia. Dicen que nunca nos libramos de los miedos que nos envuelven cuando somos niños, no es mismo? Por el visto, es de más pura verdad.

      En cuanto a la película del Ernst Lubitsch, TO BE OR NOT TO BE, consideraré con carinho su propuesta.

      Abrazos.

      Excluir
  6. Um filme que não me deixa dormir o dia em que a vi. Eu achei aterrorizante ao mesmo tempo atraente.
    Excelente post, amigo Eugenio.
    Um abraço :)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Aún es una película apavorante, querida Carmen Cardenosa. Pasados tantos años, también es, aún, una película muy eficaz, a pesar de haber costado tan poco.

      Besos, abrazos y saludos. Gracias por la visita y por el comentario.

      Excluir