Shôei Imamura — expoente da Nouvelle Vague Japonesa — está entre os mais importantes cineastas
de sua terra. Em realizações marcadamente autorais expõe, sem qualquer apelo
sentimental ou romântico, os aspectos mais arraigados da cultura nipônica. A
condição humana, as dicotomias velho-novo, cultura-natureza, sagrado-profano e
o papel da mulher são seus temas preferenciais em filmes organizados de forma
minuciosamente detalhada. Possui o olhar do etnógrafo em campo, principalmente ao
registrar o cotidiano comunal no trato da sobrevivência em meio às regras,
crenças e aos ritos daí emanados. A balada de Narayama (Narayama
bushikô, 1983) é das obras mais conhecidas de Imamura. A exposição
verista, naturalista e semidocumental faz a crônica da sobrevivência na
comunidade rural de Moto-Mura, norte do Japão, ao fim da Era Edo. Orin (Sumiko
Sakamoto) é a anciã prestes a completar a idade máxima permitida de 70 anos.
Segundo as prescrições de um costume ancestral, prepara-se para a jornada
decisiva, ao alto da montanha sagrada onde será deixada para perecer. Ao
acompanhar o cotidiano da personagem na interação com a família e a comunidade,
o olhar atento de Imamura — aberto a questões tanto específicas quanto gerais —
lança interrogações básicas: o que é o homem em meio às normas? Até que ponto é
um ser que perdeu contato com a natureza? Qual é o sentido do existir? A
apreciação a seguir é de 1985. Passou por revisão e ampliação em 1996.
A balada de Narayama
Narayama
bushikô
Direção:
Shôhei Imamura
Produção:
Gorô Kusakabe, Jirô Tomoda
Sato Co. Ltd., Tohei Co. Ltd.,
Imamura Productions, Shochiku
Japão — 1983
Elenco:
Ken Ogata, Sumiko Sukamoto, Tekejo Aki, Tompei Hidari,
Seichi Kurasaki, Nijiko Kiyokawa, Mitsuko Baishô, Norihei Miki, Ryutaro
Tatsumi, Kaoru Shimamori, Junko Takada, Nijiko Kiyokawa, Shôichi Ozawa,
Mitsuaki Fukamizu, Norihei Miki, Akio Yokoyama, Sachie Shimura, Masami Okamoto,
Fujio Tsuneda, Taiji Tonoyama, Kêshî Takamine, Fujio Tokita, Tsutomu Miura,
Nenji Kobayashi, Kansai Eto, Hideo Hasegawa, Fusako Iwasaki, Kenji Murase,
Sayaka Nakamura, Kosei Sato, Yukie Shimura, Azumi Tanba, Sanshô Shinsui, Ben
Hiura, Satoko Iwasaki.
O diretor Shôei Imamura |
A balada de Narayama é a décima sexta experiência de Shôhei
Imamura na direção. Também é, salvo engano, seu primeiro trabalho a merecer
ampla exibição comercial no Brasil. Para isso contribuíram as muitas premiações
angariadas em mostras e festivais.
Trata-se de refilmagem de A
balada de Narayama (Narayama bushiko, 1958), realizado
por Keisuke Kinoshita em encenação estilizada segundo os cânones do teatro
kabuki. A versão de Imamura, por sua vez, busca o registro naturalista e
verista. Aos olhos do espectador das afluentes sociedades ocidentais, vale-se
de visão desencantada e cruel para narrar o cotidiano da aldeia de Moto-Mura,
região montanhosa no norte interior do Japão durante a segunda metade do século
19. Nessa época o país atravessava os últimos anos do feudalismo. A Era Edo, ou
Tokugawa, chegava ao fim.
O livro Estudos das canções de Narayama,
de Schichiro Fukazawa — base para a adaptação de Kinoshita —, serve de suporte
principal ao roteiro de Imamura. Outra obra de Fukazawa também inspirou a
realização: Homens do norte, da qual foram extraídos o personagem do
fedorento e carente Risuke (Hidari) e observações sobre os hábitos sexuais dos
camponeses. Meticuloso e compassado, Imamura despendeu muito tempo na pesquisa
de detalhes e no planejamento da produção. Esse cuidado explica porque as
filmagens de A balada de Narayama se estenderam ao longo de 16 meses — de
dezembro de 1981 a abril de 1983. Fiel ao naturalismo que o tornou conhecido, o
diretor procura tirar o melhor proveito do movimento das estações do ano, a fim
de enriquecer os aspectos dramáticos e estéticos da encenação.
Poster de A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983) |
Praticamente desconhecido no Brasil,
Imamura está entre os mais importantes realizadores do cinema japonês. Seus
filmes, em geral ambientados na Era Edo, tratam dos aspectos e costumes mais arraigados
da cultura japonesa. Os temas preferenciais aludem à dicotomia velho-novo,
cultura popular, ao inevitável e à condição humana. A minuciosa organização do
relato o aproxima da abordagem etnográfica. Invariavelmente registra homens e
mulheres em luta permanente pela sobrevivência num ambiente que se lhes
apresenta adverso[1].
Nome de ponta da Nouvelle Vague Japonesa, Imamura ingressou no cinema em 1951, nos
Estúdios Shochiku. Foi assistente de Keisuke Kinoshita. Nessa condição serviu
aos realizadores Yoshitaro Nomura, Yuzo Kawashima, e, principalmente, Yasujiro
Ozu e Akira Kurosawa, dos quais herdou qualidades marcantes: a paciência e o
perfeccionismo. Ao buscar novas oportunidades, transferiu-se em 1954 para a
produtora Nikkatsu. Aí, como assistente de direção e roteirista, colaborou nas
comédias de Yuzo Kawashima. Estreou na direção em 1958. Nesse ano realizou Desejo
roubado (Nusumareta yokujo), Estação Nishiginza (Nishiginza
eki mae) e Desejo não alcançado (Hateshinaki yokubo).
Em Desejo não alcançado “Já
se sente uma crueza de tendência naturalista no tratamento dos personagens e
das cenas”[2],
marcante em A balada de Narayama e tão destoante dos cânones mais
arraigados do cinema japonês. Com Meu irmão Nianchan (Nianchan,
1959), filmado em locações e inspirado no neorrealismo italiano, apresenta
outro traço marcante, também encontrado na realização em tela: o registro semidocumental[3].
A adesão ao naturalismo e à abordagem
semidocumental levam Lucia Nagib a atestar: “Em quase todos os seus filmes (...)
Imamura tenta alcançar a realidade através da ficção. Para ele não há teatro
maior que o representado pelos japoneses na vida diária. Assim, seu cinema se
destina a trazer à tona a verdade escondida das relações humanas”[4].
Após Meu irmão Nianchan apresenta
Todos
porcos (Buta to gunkan, 1961), drama policial sobre as relações da
Yakuza (máfia japonesa) com forças estadunidenses de ocupação. É produção
demolidora. Investe contra o mito da mulher imaculada, conformada às mazelas da
existência — tão caro ao cinema japonês, principalmente nas produções da
Shochiku e nos filmes de Yasujiro Ozu. Diante de homens embrutecidos,
governados por instintos básicos — com trajetórias paralelas à vida animal que
lhes serve de contraponto (as imagens de A balada de Narayama fartam-se desse
ponto de vista) —, a mulher se apresenta como vítima de circunstâncias geradas
pela dominação masculina. Em compensação, é a guardiã dos segredos da natureza
e zeladora dos acordos culturais — qual Orin (Sukamoto) no filme de 1983. A
respeito, afirma Nagib: “Ao contrário do (...) cinema de seus antecessores, a
mulher de Imamura não se resigna a uma posição inferior (...); através de um
louvável autossacrifício, (...) vai à luta lançando mão das mesmas armas sujas
com as quais se vê atacada”[5].
No cinema de Imamura a mulher
encontra amplos espaços de afirmação entre “camponeses, miseráveis, gângsteres
e prostitutas. Exemplar nessa abordagem é A mulher inseto ou Tratado
entomológico do Japão (Nippon konchuki, 1963), por muitos
considerado obra-prima. Aqui, a pobre camponesa Tome Matsuki (Sachiko Hidari)
não vacila diante da exigência de sobreviver. Enfrenta a violência sexual, o
incesto, o êxodo para a metrópole e o bordel. Ao longo do percurso, retribui
atos e gestos com igual intensidade. Segundo o enfoque, trata-se de uma heroína
e não a depravada e irremediavelmente perdida, encontrada nos exemplares
tradicionais do cinema nipônico. Não para menos, foi impactante o lançamento de
A
mulher inseto. Idêntica visão há em Segredos de uma esposa (Akai
satsui, 1964) — última realização de Imamura para a Nikkatsu: Sadako
Takahashi (Masumi Harukawa), dona de casa cotidianamente brutalizada pelo
marido infiel e por um estuprador apaixonado, rompe com o lugar comum de sua
posição social e enfrenta os agressores em pé de igualdade.
Introdução à antropologia (Jinruigaku nyumon, 1966)
—, adaptação do romance Os pornógrafos, de Akiyuki Nozaka —
inaugura a fase independente de Imamura. Segundo os entendidos, seu
"cinema-verdade" atinge o ápice com A evaporação do homem (Ningen
johatsu, 1967). Aqui, percebe-se pela primeira vez o intercâmbio com processos
e técnicas narrativas europeias, em particular o distanciamento de Brecht
adotado na França pela Nouvelle Vague. Aparentemente, a realização é um documentário
que se esclarece como pura ficção. O ponto de partida é a real busca de uma mulher
ao noivo desaparecido. Várias entrevistas são feitas, todas verdadeiras. Na
última, as paredes do ambiente são desmontadas e o mundo encenado a partir dos
estúdios ganha primazia. A partir de A evaporação do homem, Imamura dará
vazão, no cinema ou na TV, à vocação documental, às vezes com a pretensão de
intervir na ordem das coisas: Kamigami no fukaki yokubô (1968), Mikikan-hei
o otte: Marei-hen (1970), Nippon sengoshi - Madamu onboro no Seikatsu
(1970), Mikikan-hei o otte: Tai-hen (1971), Buban no kaizoku (1972), Muhomatsu
kokyo e kaeru (1973) e Karayuki-san (1975). Encerra-se aí a
participação de Imamura na Nouvelle Vague
Japonesa. A seguir, a partir de Minha vingança (Fukushû suru wa ware ni ari,
1979), começa a fase de reconhecimento e consagração pelo Ocidente. Seguem-se Eijanaika
(1981), A balada de Narayama, Zegen (1987), Chuva negra (Kuroi
ame, 1989), A enguia (Unagi, 1997) e Dr. Akagi (Kanzo
sensei, 1998).
Poster de A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983) |
Como um poema rude de estrofes
compostas por versos brutos, A balada de Narayma é uma crônica da
sobrevivência contada ao longo de aproximadamente um ano. É o tempo de vida que
resta a Orin. Está com 69 anos. Fará aos 70, obrigatoriamente — segundo as prescrições
de um costume ancestral —, a peregrinação ao alto de Narayama, elevação sagrada
que guarnece a comunidade de Moto-Mura com o reforço dos espíritos de todos que
lá pereceram em prol da continuidade da vida do lugar. Será conduzida pelo
filho mais velho. Ao fim do percurso, será deixada para morrer — um sacrifício
ao deus da montanha. Conforme os versos de canção tradicional, Orin terá sorte
se nevar quando estiver em seu "altar de sacrifício", rodeada pelos
restos mortais dos que fizeram a extrema peregrinação. A neve trará o frio e a abreviação
do sofrimento. Provocará transição mais suave que a fome. Aves de rapina — idênticas
a lúgubres mensageiras — já habituadas ao farto repasto estão em inabalável
prontidão. Desse destino inexorável habitante algum de Moto-Mura está livre. Quem
descumprir com o imperativo da tradição, por qualquer motivo, transformará os
seus em alvo de chacota e os submeterá a uma série de interditos. Foi o que
aconteceu à família de Orin, por causa de seu marido, Rihei. Sem coragem para
levar a mãe a Narayama, fugiu, cobrindo de vergonha os filhos e a esposa.
Agora, a sempre vigilante comunidade teme que Tatsuhei (Ogata), o primogênito
de Orin, falte ao compromisso.
Orin (Sumiko Sakamoto) |
O primogênito de Orin (Sumiko Sakamoto): Tatsuhei (Ken Ogata) |
A vida é dura na aldeia. A terra fria
e montanhosa não favorece o cultivo de arroz. A fome está sempre presente. As
porções são racionadas. Tais fatores determinam as condições de vida e o valor
das pessoas. Se os septuagenários são obrigados a abrir lugar aos vivos, recém
nascidos e crianças também não têm melhor sorte. Em ocasiões de extrema
carência alimentar, bebês masculinos são mortos. Não raro seus corpos são
largados nas matas ou nos cultivos. Quanto às meninas, possuem valor de troca. Podem
ser permutadas por comida ou condimentos com os muitos comerciantes que
interligam as comunidades próximas.
Orin (Sumiko Sakamoto) e um dos comerciantes que interligam as comunidades vizinhas |
Atualmente, no Japão industrializado
e afluente, a dinâmica vital praticada em Moto-Mura é conhecida como cultura da vergonha. Por envergonhar os japoneses
atuais e pelos rígidos códigos convertidos em tabu, a governar a existência de
quem os vivenciou. Reportam ao tempo do arroz considerado produto de luxo,
quando a fome era uma realidade sempre presente. A apropriação indevida de
alimentos — o roubo — era exemplarmente punida. O filme mostra o triste fim da
numerosa família Amaya, enterrada viva por toda a comunidade zelosa com a
aplicação das normas das quais depende a continuidade de todos. A própria Orin
— tão integrada ao grupo e sempre atenta ao respeito às tradições — não deixa
de ser tratada de forma até impiedosa pelos demais, inclusive pela própria
família. Afinal, é uma anciã, mas ainda tem forças para trabalhar. Como se não
bastasse, possui todos os dentes, em perfeito estado. Deveria estar alquebrada,
até para facilitar a passagem ao deus da montanha. É como se a saúde perfeita
de uma quase septuagenária constituísse ofensa à ordem, sagrada ou natural, das
coisas. Por causa desse problema, ela não titubeia em quebrar quatro dentes
frontais[6].
À direita, Orin (Sumiko Sakamoto) com uma vizinha da comunidade de Moto-Mura |
Os habitantes de Moto-Mura estão
submetidos a duas instâncias surdas e implacáveis. Primeiro, ao absolutamente
outro, o deus da montanha, legitimador de crenças e responsável pelo sacrifício
que todos praticam em sua honra. É a ordem transcendente que obriga e conforma
os camponeses a aceitar o mundo tal qual é ou como lhes foi apresentado: uma
realidade feita de permanências, imutável, assombrada pela fome e acossada pelo
desejo incontrolado do sexo e obstinação pela continuidade. O mundo é um
estágio de constante provação/privação e não pode ser de outra maneira. Segundo,
em conformidade com o dado transcendental há a ordem natural, representada pela
ligação complementar, quase umbilical, dos homens com os animais. Os bichos marcam
presença constante, sejam cães, sapos e cobras. São encontrados nas casas e nos
campos, como que chamando a atenção dos moradores para uma identidade animal da
qual não se separaram. Mas também há as estações do ano e o trabalho, o
convívio comunal, os nascimentos e a imperturbável sombra da morte com prazo
marcado. Orin, certamente, é a personagem principal desta trama escrita pelo
sagrado em parceria com a natureza. Aceita o destino imposto. Faz de tudo para
respeitar as imposições e determinações de um roteiro cujas prescrições sabe apenas
que deverá cumprir — ela e os demais — sem que possa comprometer qualquer
esforço para alterá-lo. No máximo, a personagem vivida por Sumiko Sakamoto
procura não ser um fardo aos seus e demais. Cultiva a terra, cuida da casa,
separa e prepara os alimentos. Antes de subir a montanha, nas costas do viúvo Tatsuhei
— como deve ser feito —, providencia-lhe nova esposa — a atenta e solícita
Tamayan (Takejô). Será praticamente uma substituta. Ensina a ela segredos
fundamentais à melhor sobrevivência. Também se esforça para sanar a carência
sexual do filho mais novo, o jovem e ainda virgem Risuke (Hidari). Devido ao mau
cheiro que exala, mulher alguma tem disposição para se deitar com ele. Mesmo
assim, faz de tudo para lhe providenciar uma parceira.
Pode-se dizer que o filme é
construído como um imenso prólogo que dará sentido ao título e à derradeira
jornada de Orin. Imamura apresenta a cultura de Moto-Mura em estreita integração
com as ordens sacras e naturais. Uma não existe sem as demais. Há um firme continuum entre a terra — o palco
natural que serve de suporte à encenação da vida — e a montanha deificada que a
tudo legitima com o compulsório ato da morte. Vive-se para morrer, algo tão
certo como os dias sucedem as noites e os ciclos inalteráveis das estações do
ano. Mas sem a adesão — tão obrigada como voluntária — ao ato de morrer, o
viver não teria sentido aos pés de Narayama — ao menos segundo os contratos
sociais que legitimaram e permitiram a existência da comunidade, com todos os
seus interditos, ao longo do imutável corredor das estações.
Como se fosse o próprio deus de
Narayama em sua imobilidade, a câmera observa a tudo, fixa, impassível, com prudente
distanciamento. É uma objetiva marcada pela objetividade do registro. Os
movimentos, suaves, são executados apenas no início, num sobrevoo que apresenta
a comunidade em sua geografia, tomada pela neve. O comentário musical,
repetitivo, firma parceria com a fixidez do registro.
A impassividade e o distanciamento da
câmera chegam ao máximo na meia hora final. Tatsuhei conduz Orin à montanha.
Antes, uma reunião de mãe e filho com os anciãos da comunidade informa como proceder
na subida. Frisa principalmente sobre o silêncio reverencial a ser observado
por todo o caminho. Nada deve complicar esse processo de dor e sacrifício. A
ressalva lembra que em momento algum Imamura apelou para saídas sentimentais. Os
ocidentais, principalmente os estadunidenses, inundariam as imagens com músicas
de acordes contundentes. O comentário musical praticamente desaparece de A
balada de Narayama nos últimos 30 minutos. Amanhece. Tatsuhei e Orin
estão sozinhos. Ninguém deve testemunhar a partida. É um ato que diz respeito
apenas à mãe e ao primogênito, guardados pelo silente deus da montanha. Os
demais membros estão respeitosamente afastados. Mas sabem que também terão sua
hora e vez.
Acima e abaixo: Tatsuhei (Ken Ogata) e Orin (Sumiko Sakamoto) na decisiva jornada ao alto de Narayama |
Orin demonstra tenacidade. Está
conciliada ao inevitável. Tatsuhei vacila algumas vezes, mas é vencido pela persistência
da mãe. Para ela, é um caminho sem volta. Paga o preço para Moto-Mura continuar
a existir. Por mais difícil que tudo pareça a Tatsuhei, a conformação
silenciosa da mãe facilita as coisas na escalada lenta, penosa e detalhada. Nem
sempre o caminho ajuda. Demasiado diferente será a subida do velho Matayan
(Ryutaro Tatsumi). Teve que ser amarrado e conduzido à força. Sequer foi deixado
na estação final. Como relutava em obedecer às prescrições, forçou o filho ao
expediente tolerável de empurrá-lo despenhadeiro abaixo.
Apesar da objetividade da exposição,
não deixa de ser desesperadora a entrada no largo espaço funerário, tomado de
esqueletos, corpos em decomposição e corvos vigilantes. Tatsuhei estanca, mas
Orin, inabalável e irredutível, indica onde deve ser deixada. Dali o outro deve
voltar, sem olhar para trás. Conforme o canto da tradição, a fria e benfazeja
neve vem socorrer Orin e apaziguar o filho. Aos primeiros flocos Tatsuhei viola
as prescrições e volta ao local do abandono. Entre generoso e aliviado comunica
o óbvio à mãe, já tingida de branco: "Veja, mãe, que sorte! Está
nevando!". Entregue às orações, ela apenas acena mais uma despedida. É um
dos momentos mais dolorosos e contundentes de todo o cinema.
Tatsuhei (Ken Ogata) para Orin (Sumiko Sakamoto): "Veja, mãe! Que sorte! Está nevando!" |
A balada de Narayma está longe de ser apenas um tratado
antropológico. É certo que é um registro particularizado de determinado setor da
diversidade cultural. Mas, por outro lado, também pode ser apreciado como
descrição mais geral da condição humana. Numa situação onde o viver está
reduzido ao básico — o desejo carnal e à luta sem tréguas pela sobrevivência —, Imamura afasta do foco qualquer traço romântico na redução que transforma
Moto-Mura em abstração simplificada do existir. O filme parece responder à
pergunta fundamental: o que é o homem, basicamente? É um criador de regras —,
adianta o cineasta. Mas também é um ser que não perdeu contato com suas origens
naturais/animais. A necessidade imperiosa de sobreviver, individual e social,
está no centro da questão. Com A balada de Narayama Imamura oferece
ao mundo moderno, industrializado e tão dependente de tecnologias poupadoras de
esforço, o mapa que conduz às raízes perdidas de tudo isso. Também afirma que
muita coisa não mudou. Atualmente, os velhos não são deixados ao relento, no
alto de montanhas — ou nas vastidões geladas como em outras realidades
culturais. Mas não deixam de ser um fardo para as sociedades e seus familiares.
São internados em asilos, clínicas e hospitais, locais não raro de abandono e
esquecimento. Sejam nas sociedades afluentes ou nos países miseráveis e em
desenvolvimento, o destino das crianças também não foi essencialmente alterado.
Podem ser abortadas, assassinadas, abandonadas nas portas alheias, em caixas de
papelão ou largadas em lixões. Nem todas contam com a caridade alheia ou pública
para serem poupadas, o que também pode não significar muita coisa.
Orin (Sumiko Sakamoto) |
A direção de fotografia a cargo de
Masao Tochizawa Himeda, apoiado por Hiroshi Kanazawa e Shigeru Komatsubara, é
nitidamente esplêndida. Não é a embalagem que se resume a uma sucessão de
vistas deslumbrantes da natureza. A balada de Narayama não se perde com
fogos de artifício. As imagens não se prestam à fuga na contemplação. Todos os
planos são funcionais à história. O esplendor das tomadas somente realça e
esclarece os movimentos dos atores no meio que os envolve. Preenche de sentido
uma abordagem que apreende a vida em sua totalidade, como realidade construída no
cruzamento da natureza com a cultura, legitimada pela transcendência do sagrado,
esfera repleta, por sua vez, de contribuições naturais e culturais.
Em 1984 A balada de Narayama foi
considerado o Melhor Filme pela Academia Japonesa. A instituição também indicou
Sumiko Sakamoto (Melhor Atriz), Mitsuko Baixhô (Melhor Atriz Coadjuvante),
Shôhei Imamura (Melhor Direção e Melhor Roteiro), Masao Tochizawa Himeda
(Melhor Direção de Fotografia), Yasuo Iwaki (Melhor Iluminação), Tadataka Yoshino
(Melhor Direção de Arte), Shin'Ichirô Ikebe (Melhor Música) e premiou Ken Ogata
(Melhor Ator) e Kenichi Benitani (Melhor Som).
Ken Ogata foi considerado, em 1984,
Melhor Ator pelo Blue Ribbon Awards e Mainichi Film Concours. Este também
premiou Kenich Benitani pela trilha musical. No Festival de Cannes de 1983 Shôhei
Imamura recebeu as Palmas de Ouro de Melhor Direção e Melhor Filme. Nesse ano a
fotografia de Masao Tochizawa Himeda foi premiada no Festival Internacional do
Filme do Havaí e Mitsuko Baisho foi eleita a Melhor Atriz Coadjuvante pelo
Hoichi Film Awards.
Orin (Sumiko Sakamoto) |
Roteiro: Shôhei Imamura, com base em Estudos a respeito das canções de
Narayama e Homens do norte, histórias de Shichirô Fukazawa. Música: Shin'Ichirô Ikebe. Direção de fotografia (Vista size/cores):
Masao Tochizawa Himeda, com apoio de Hiroshi Kanazawa, Shigeru Komatsubara. Montagem: Hajime Okayasu, Toshihiko
Kojima, Fusako Matsumoto, Yoshiko Onodera, Masahito Watanabe. Desenho de produção: Nobutaka Yoshino,
Gorô Kusakabe. Direção de arte:
Tadataka Yoshino, Hisao Inagaki. Decoração:
Hisao Inagaki, Senki Nakamura, Mitsuto Washizawa. Figurinos: Kyoto Isho. Maquiagem:
Seiko Igawa. Gerente de produção:
Kanji Aoi. Assistente de direção:
Kunio Takeshige. Som: Kenichi
Benitani. Técnico de iluminação:
Yasuo Iwaki. Controle da produção:
Shinji Komiya. Perucas: Zenichirô
Ishikawa. Penteados: Takeshi Matsuo,
Yôichi Mitsuoka, Tomoe Ookawa. Gerentes
de produção: Kimiyoshi Adachi, Kanji Aoi, Sôji Fukushima, Nobutsugu
Tsubomi. Assistentes da gerência de
produção: Hisashi Iino, Shinji Komiya, Ikuko Murase. Assistentes de direção: Shunsaku Ikehata, Nobuaki Murooka, Kunio
Takeshige, Takashi Tsukinoki. Modelagem:
Noriyuki Sugimori. Assistentes de som:
Toshio Nakano, Tatsuo Tsukamoto. Efeitos
especiais: Yoshio Kojima. Fotografia
de cena: Kenji Ishikuro. Eletricistas-chefes:
Yasuo Iwaki, Tadahiro Kimura, Yûjirô Miura, Masayuki Okao. Técnico de iluminação: Yasuo Iwaki. Corte do negativo: Kazuko Okayasu. Dentistas: Yasuhiko Chiga, Hiroshi Tanaka, Teruyuki Tanaka. Planejamento de jardins: Yoshiyaka
Hayakawa. Supervisão de culinária:
Naomi Honjô, Yoshiko Morita. Publicidade:
Katsuyuki Katô, Toshiyuki Mogi, Tsuneyoshi Yamada, Yasuo Yamamoto. Controladoria da produção: Shinji
Komiya. Pecuarista: Tsuguo Kuroda. Continuidade: Midori Kuwabara. Fornecimento de alimentação: Ryôhei
Nakagawa. Planejamento de créditos:
Hideo Suzuki. Amestrador da águia:
Uichiro Takeda. Companhia da pós
produção: Denki Kagaku kôgyô. Fornecimento
de perucas: Maruzen Katsura, Okamoto Gisho. Serviços de pós produção de som: Nikkatsu Studio. Fornecimento de equipamentos de câmera:
Sanwa Cine Equipment. Tempo de exibição:
131 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 1985; revisto e ampliado em 1996)
[1] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas.
2. ed. Porto Alegra: L&PM, 1988. p. 263; e, EWALD FILHO, Rubens. Um belo
filme, apesar das restrições. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19
ago. 1984. p. 15.
[2] NAGIB, Lúcia. Em torno da Nouvelle Vague Japonesa.
Campinas: Unicamp, 1993. p. ?.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] NAGIB, Lúcia. Op. cit.
[6] A atriz Sumiko Sukamoto estava com aproximados 40
anos quando interpretou Orin. Extraiu de fato, cirurgicamente, quatro dentes
frontais para imprimir ares de veracidade ao seu personagem.
Eugênio,
ResponderExcluirCom lamentações, sou um cinéfilo que não anda quase nada associado ao clima do cinema daquele lado do mundo,
O que não desejo de forma alguma colocar que o desvalorizo ou algo assim.
Apenas não o acompanho como o faço com os centros Americano/Ingles ou Brasileiro. Porém, depois de ler tudo aqui transcrito não posso me negar a concordar com a qualidade que se imprime ao cinema neste canto do globo.
Até andei vendo algumas pouquissimas obras deste dinema. E o visual e o realismo que é imprimido neste cinema é algo de se enobrecer tais e belas criações.
Vou aderir aqui um informe que poucos irão crer: jamais vi um trabalho sequer de Akira Kurosawa, nem mesmo, no meu ver, seu mais lindo trabalho que roi RAM.
jurandir_lima@bol.com.br
Ainda é tempo para acertar seus débitos com o cinema japonês e o asiático, Jurandir. Há muita coisa para conhecer e, certamente, ficará surpreendido.
ExcluirAbraços.