1918: Cecil B. De Mille fracassa nas bilheterias com o
denso, complexo e único Vassalagem (The whispering chorus).
Nesse ano, por sugestão do produtor Jesse L. Lasky, lança-se em realizações
ousadas com foco no comportamento da ascendente burguesia estadunidense. Vida
conjugal, infidelidade, divórcio e sexo ocupam o centro das atenções em histórias
ambientadas na contemporaneidade e nos grandes centros urbanos. Títulos
como We
can't have everything (1918), Don't change your husband (1919), Macho
e fêmea (Male and female, 1919), Why change your wife? (1920), O fruto proibido (Forbidden
fruit, 1921), Fool's paradise (1921), Saturday
night (1922), Manslaughter (1922) e outros forçam os
limites da ética puritana e transformam o diretor em chamariz a uma plateia ávida
por escapismo picante. As ousadias encontram livre curso até 1924. A partir daí, o Código
de Produção ou Hays passa a impor rigorosos limites morais aos filmes made in USA. Amores velhos por novos (Old
wives for new) é a primeira e mais ousada peça desse conjunto. Para os padrões da época é abertamente amoral. Assustou os produtores e por pouco não foi
lançada.
Amores velhos por novos
Old
wives for new
Direção:
Cecil B. De Mille
Produção:
Cecil B. De Mille
Artcraft Pictures Corporation
EUA — 1918
Elenco:
Elliott Dexter, Florence
Vidor, Sylvia Ashton, Wanda Hawley, Theodore Roberts, Helen Jerome Eddy, Marcia
Manon, Julia Faye, J. Parks Jones, Edna Mae Cooper, Gustav von Seyffertitz,
Tully Marshall, Lillian Leighton, Mayme Kelso, Alice Taafe e os não creditados
Noah Beery, William Boyd, Edythe Chapman, Raymond Hatton, Lloyd Hughes, Charles
Ogle, Guy Oliver, Larry Steers, Madame Sul-Te-Wan.
Cecil B. De Mille |
Cecil B. De Mille vinha de sucessivas
experimentações desde a estreia na direção em 1914. Conheço pouquíssimos filmes
dessa fase inicial e dos anos 20. Sobre o começo da carreira, sei que atingiu o
ápice criativo em 1918 com o denso e complexo Vassalagem (The
whispering chorus). Nesse ano, apoiado pela colaboradora habitual, a
roteirista Jeannie McPherson, reorientou a trajetória. O filme seguinte, Amores
velhos por novos, é partida a um conjunto de realizações ousadas, de conteúdo
picante. As histórias, em geral, focam o comportamento licencioso da otimista e
ascendente burguesia estadunidense. A vida conjugal ocupa o centro das atenções
em narrativas passadas na contemporaneidade e ambientadas nos grandes centros
urbanos.
O incentivo à mudança — que também
implicou em certo acomodamento criativo e relativa adesão à vulgarização no
tratamento dos costumes — partiu do produtor e parceiro Jesse L. Lasky[1].
Este percebeu uma reorientação no gosto das plateias do pós-guerra. Começaram a
preferir filmes mais leves, alimentados por temas atuais e, de certa forma, opostos
à moral vigente. Amores velhos por novos centra o foco na guerra dos sexos,
inclusive na espinhosa — ainda mais para a época — diferença etária no
relacionamento amoroso. A realização respondeu bem nas bilheterias. Junto
aos filmes seguintes, de igual tendência — We can't have everything (1918), Don't
change your husband (1919), For better, for worse (1919), Macho
e fêmea (Male and female, 1919), Why change your wife? (1920), Something to think about
(1920), O fruto proibido (Forbidden fruit, 1921), As
aventuras de Anatólio (The Affairs of Anatol, 1921), Fool's
paradise (1921), Saturday night (1922), Manslaughter
(1922) e Costela de Adão (Adam's rib, 1923) —, transformaram Cecil
B. De Mille em chamariz de público, praticamente uma marca — como aconteceria
com Alfred Hitchcock muito depois. Impuseram um estilo de realização exclusivo ao
cineasta, ao menos na Paramount Pictures e na companhia que a originou: a
Famous Playeres-Lasky, de Adolph Zuckor e Jesse L. Lasky, à qual estava
relacionada a Artcraft Pictures Corporation, responsável por Amores
velhos por novos.
O ponto de partida é o alentado
romance de 495 páginas de David Graham Phillips, repórter sensacionalista
alçado à fama por denunciar a corrupção na esfera parlamentar[2].
O texto trata de crise matrimonial, carência afetiva, adultério, divórcio,
assassinato, sexo e chantagem. Os direitos de adaptação foram adquiridos por
Jesse L. Lasky por nada desprezíveis 6,5 mil dólares. A luxuosa produção custou
dez vezes esse valor. Porém, a resposta nas bilheterias foi de aproximados 350
mi dólares[3].
Confirmavam-se assim o faro de Jesse L. Lasky, a tarimba do cineasta e,
principalmente, o talento de Jeannie McPherson. Ela soube transformar o
volumoso original em eficaz, ligeiro e bem humorado drama acerca da
permissividade dos costumes nos extratos sociais mais afluentes dos Estados
Unidos.
De início, o resultado apavorou os
distribuidores devido ao inusitado grau de ousadia. Após a primeira prévia, a
prestimosa publicação Photoplay acusou o filme de debochado
e repugnante; também chamou De Mille de imoral divulgador de licenciosidades[4].
Numa sociedade estruturada em torno da ética puritana, ainda nos primeiros anos
do século 20, Amores velhos por novos defende abertamente o divórcio como caminho
para a felicidade geral. Não vê problema algum no adultério e no apelo sem
restrições às mulheres de vida fácil. Deixa impune um assassinato com o propósito
de salvar aparências e destaca o frenesi de uma imprensa habituada a noticiar com
base no disse-me-disse, fazendo pouco caso de confirmações e evidências
factuais.
Sylvia Ashton, Elliot Dexter e Florence Vidor protagonizam Old wives for new |
A exibição só foi autorizada quando
veículos mais liberais como The Motion Picture News e Variety
destacaram a mão de gênio de DeMille e a delicadeza do tratamento, por mais ousada
e picante que fosse a história[5].
No cinema, Amores velhos por novos antecipou em alguns anos a atmosfera
efervescente dos Roaring Twenties
(Loucos Anos 20). A época arrepiou as ligas da decência, que impuseram a Lei
Seca (1920-1933) e o Código Hays (1924-1966). Este fixou rigorosos limites
morais à produção cinematográfica, principalmente com respeito à violência, à
exposição dos aspectos mais reservados da vida conjugal e de relações que
sugerissem intimidade sexual.
Amores velhos por novos começa com curioso recado endereçado
explicitamente a Sophy Murdock (Ashton) e às mulheres em geral: "Acredito,
Sophy, que as mulheres tendem a não valorizar seu maridos como deveriam. Cultivam
a tendência de se abandonarem, fazerem-se desalinhadas pela simples razão de
que já laçaram sua peça. As mulheres devem ser formosas, mas naturalmente, sem
a necessidade de apelar para extravagâncias. Devem, sim, adornar seus atrativos
com cintas e laços para fazer dos homens amantes, além de esposos".
Em pequena cidade, provavelmente do
Texas, Sophy é causa dos lamentos e desgostos do marido e magnata do petróleo
Charles Murdock (Dexter). Um flashback,
relativamente longo e avançado para a época — resultado dos devaneios do infeliz
consorte —, revela como se conheceram, no campo, vinte anos antes. Ele pescava
quando a percebeu em distraído passeio. Era delgada e graciosa (Hawley). Foi
literalmente fisgada em planos que enquadram o mais campestre dos idílios.
Casaram-se e tiveram filhos, os jovens Norma (Eddy) e Charley (Jones). Porém, enquanto
Charles soube cultivar a boa aparência com o passar dos anos, Sophy se
descuidou por completo. Foi além da acomodação ao matrimônio. Passa os dias em
casa, deitada ou dormindo. Sua única diversão é a leitura de novelas para
senhoras. Ingere guloseimas em excesso. Como resultado, engordou demasiado.
Distanciou-se dos cuidados domésticos. Fez-se indiferente aos filhos e marido. Sem
esperanças, Charles Murdock sugere o divórcio com divisão equânime de bens. Ele,
Charley e o secretário Melville Bladen (von Seyffertitz) partem para temporada
de caça de três semanas. Nesse tempo, Sophy deverá avaliar a proposta.
Acomodada à vida de casada, Sophy Murdock (Sylvia Ashton) se descuidou por completo A criada é vivida por Lillian Leighton |
Os jovens Charles Murdock (Elliott Dexter) e Sophy (Wanda Hawley) em idílico primeiro encontro |
Para o mesmo destino também foi a
musa Juliet Raeburn (Vidor). Jovem, bela, atraente e descompromissada, terá a
missão de romper os fios do destino. É afamada modista instalada na Quinta
Avenida de Nova York. Preserva todos os atributos considerados fundamentais à
feminilidade, sem apelo aos artifícios. O acaso aproximará Juliet e Charles.
Mr. Murdock rejuvenesceu consideravelmente após eliminar o bigode, por
insistência do filho. Tanto que se passa por irmão do rapaz. Porém, a crise de
consciência logo se impõe. Passados alguns dias, revela à decepcionada modista
que não é tão jovem, mas um senhor casado e pai de dois filhos. A temporada
feliz termina melancolicamente.
No campo, o magnata Charles Murdock (Elliot Dexter) e a modista Juliet Raeburn (Florence Vidor) se apaixonam |
Na volta ao lar a recepção não é das
melhores. Sophy repreende o marido pela falta do bigode e desconfia de algo
mais quando o filho faz referência à moça que conheceram. Tudo piora,
consideravelmente, quando surte efeito uma artimanha decorrente das segundas
intenções do secretário Melville: dos pertences de Mr. Murdock surge o lenço
perfumado com as iniciais JR. Sophy reage enfurecida com a surpresa. Chama o
marido de traidor e nega o divórcio. Atônito, Charles revida. Acusa a esposa de
relapsa e responsável por tudo de ruim que aconteceu ao casamento. De imediato,
parte para Nova York. É a oportunidade para se avistar com o sócio Tom Berkeley
(Roberts) e tentar reaproximação com Juliet. A mocinha permanece irredutível em
assumir compromisso com um homem casado. A partir daí, amplia-se a complexidade
narrativa de Amores velhos por novos.
Berkeley é um perfeito bon vivant. Cultiva os prazeres noturnos
proporcionados por clubes, bebidas e mulheres dissolutas. Charles, arrastado
pelo sócio, tem a companhia da aventureira Viola Hastings (Manon), mas só pensa
em Juliet. A noite avança, rumo à confusão e tragédia. A relegada Mrs. Berkeley
(Chapman) surpreende o marido com a amante Jessie (Faye). Possessa, assassina o
infiel. Temeroso com o escândalo, Charles abafa o caso. Porém, os tablóides
tomam a dianteira. Publicam notícias sem fundamento, associando as razões do
crime a uma suposta mulher vista na companhia de Mr. Murdock. Ao tomar ciência
do ocorrido, Sophy pensa em Juliet Raeburn e a denuncia aos jornais. Em
paralelo, as segundas intenções do secretário Melville surtem efeito. Começa a
cortejar a insatisfeita Sra. Murdock. Procura, acima de tudo, valorizá-la
afetivamente e na autoestima. Logo, apoiada pelos filhos, Sophy aceita o
divórcio e entra na posse da metade dos bens de Charles. O astuto Melville,
agora casado com a esposa do patrão, se torna, por extensão, um milionário. Por
outro lado, para desviar de Juliet o foco da imprensa e das investigações, Murdock
viaja para Veneza, com Viola. Para tornar tudo mais crível, contrai núpcias
amplamente noticiadas com a acompanhante. Quando o caso da morte de Berkeley esfria
e Juliet sai do centro das atenções, Charles se separa de Viola, não sem
deixá-la financeiramente garantida — o que ela mais queria, afinal. Assim, entre
reviravoltas e permissividades, Amores velhos por novos caminha para
o epílogo. Evidentemente, Mr. Murdock será recompensado, pois Miss Raeburn
saberá providencialmente de todos os sacrifícios que ele fez para protegê-la na
reputação. As almas gêmeas se encontram. Tiveram a felicidade garantida pelo divórcio
e assassinato nunca solucionado de Berkeley. O dinheiro de Charles comprou o
silêncio das envolvidas e lhes providenciou novos e desconhecidos paradeiros.
O secretário Melville Bladen (Gustav von Seyffertitz) faz a corte à rejeitada esposa do patrão, Sophy Murdock (Sylvia Ashton) |
Hoje, passados quase 90 anos, Amores
velhos por novos continua surpreendente. É certo que se trata de
realização anterior à entrada em vigor do Código de Produção. Porém quantos
filmes, antes dos anos 20, concederam tanta abertura a conteúdos atualmente
ainda classificados como francamente libertinos? Não há mensagens morais a
extrair da história. Sexo, traição, divórcio e crime são cometidos com ampla
liberdade e não geram restrições aos infratores. Aliás, são essenciais à
felicidade dos protagonistas, principalmente de Sophy e Charles, até mesmo da
inocente Juliet — beneficiária indireta das más ações. Provavelmente, Amores
velhos por novos é caso único, mesmo na filmografia do conservador De
Mille. Pelo que se sabe, não voltaria a evitar julgamentos e sanções morais
para enquadrar personagens que escapassem aos interditos sociais,
principalmente os referendados pela moral de fundo religioso. A direção também
surpreende. Para a época, quando o cinema mal saía da adolescência narrativa, merece
destaque o flashback de Charles
Murdock, saudoso do tempo em que conheceu a delgada e jovial Sophy.
Praticamente não há artifícios de câmera ou montagem para introduzir e
finalizar o momento, muito menos intertítulos explicativos. Há apenas o
personagem vivido por Elliott Dexter fumando pensativo ao examinar uma
fotografia do casal em dias melhores. Uma transição rápida e suave dá vida às
recordações. Tudo termina com um corte direto: Sophy, no presente, chama o
marido à realidade. Também não há exageros visuais ou dramáticos na história,
algo inusitado em se tratando de De Mille. Tudo flui com leveza e agilidade. Os
figurinos, motivos de tantas críticas negativas[6],
são suntuosos mas não exagerados. Ajustam-se plenamente às funções, posições
sociais e ambientes.
Charles Murdock (Elliot Dexter) e Viola Hastings (Marcia Manon) - separação com compensação pelos bons serviços prestados |
No elenco, destaca-se Theodore
Roberts como o libertino Tom Berkeley. Seu tempo em cena é relativamente curto.
Dura o suficiente para ser apresentado, inclusive no modo de ser. Sua atuação
ganha relevo quando é assassinado. O momento é memorável. Atingido por tiros
frontais e à queima roupa, não falece de súbito. Recebe, incrédulo, o impacto
das balas. Aturdido, avança alguns passos e toma assento sobre a cama. Ainda
tem tempo para notar o sangue manchando lentamente a camisa branca antes de
expirar de vez.
Charles Murdock (Elliot Dexter) com o moribundo sócio Tom Berkeley (Theodore Roberts) |
Uma curiosidade: a graciosa e
competente Florence Vidor herdou o nome do ilustre marido, o cineasta e mestre King
Vidor.
Roteiro: Jeanie Macpherson, baseado em novela de David Graham
Phillips. Música (inserida no
pós-silencioso): Louis F. Gottschalk. Direção
de fotografia (preto e branco): Alvin Wyckoff. Montagem: Cecil B. DeMille. Direção
de arte: Wilfred Buckland. Figurinos:
Alpharetta Hoffmann. Tempo de exibição:
60 minutos.
(José Eugenio
Guimarães; 2014)
Eugenio,
ResponderExcluirSinceramente, jamais tomei conhecimento que o famoso De Mille houvesse entrado nesta linha de cinema que, por mais picante e ousado que imagino que foi, pelo que li, as novelas das Seis da Globo, com certeza, são muito mais fortes.
Também não conheço seus filmes desta fase sem som. E acredito tudo não ter passado de experiências, mesmo tendo durado alguns anos, até o vigoramento do tal Código Hays em 1924, que nada mais foi que uma espécie violenta de censura.
Talvez fosse possivel, também, que o De Mille estivesse na busca de sua linha cinematográfica, esta encontrada logo em seguida, com seus filmes biblicos ou épicos, apesar de nesta época ter experimentado outros generos como o faroeste, por exemplo, em Jornadas Heroicas/36, Aliança de Aço/39 (o grande ano do cinema americano) e Legião de Herois/40.
O importante de tudo neste grande homem do cinema é o que nos deixou como resultado de sua longa jornada atrás das câmeras. São fitas belissimas e/ou interessantes demais, como ainda podemos citar O Maior Espetáculo da Terra/52, Os Inconquistáveis/47 e muito, muito mais.
jurandir_lima@bol.com.br
O refúgio de De Mille nos filmes bíblicos, após a imposição do Código Hays, foi a saída que ele encontrou para permanecer no filão anterior, Jurandir. Ele simplesmente trocou a contemporaneidade pela narrativa bíblica, que não deixa de conter, também, como se pode comprovar em qualquer leitura de seus trechos, muita devassidão, perversão, traições, amoralidades e pecados de todo tipo. E De Mille usou tudo isso muito bem, com a deixa de que, ao contrário de AMORES VELHOS POR NOVOS, todas as faltas seriam punidas ao final, pelo Deus sempre atento e vingativo.
ExcluirAo fim e ao cabo, DeMille é reconhecidamente um conversador, o maior moralista que já pisou em Hollywood. Ousadia moral impune cometeu apenas em AMORES VELHOS POR NOVOS. E seu grande momento como criador foi no mesmo 1918 com o esquecido VASSALAGEM.
Abraços.