Originalmente caberia a Valerio Zurlini levar ao cinema a
novela de Giorgio Bassani Il giardino dei Finzi-Contini,
escrita em 1962. O diretor de A primeira noite de tranquilidade (La
prima notte di quiete, 1972) e Dois destinos (Cronaca familiare, 1962)
inclusive está entre os roteiristas responsáveis pela adaptação. Não sei como a
realização terminou nas mãos de Vittorio De Sica. Em todo caso, menos mal, pois
O
jardim dos Finzi-Contini (1970) devolveu um dos mais sensíveis e
generosos humanistas da sétima arte ao campo do grande cinema do qual esteve
afastado durante nove anos, desde que levou às telas o doloroso e intenso Duas
mulheres (La ciociara), extraído das páginas de Alberto Moravia. Vencedor
do Urso de Ouro no Festival de Berlim e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, O
jardim dos Finzi-Contini é terno e compassado drama intimista
encenado contra o pano de fundo de um dos momentos mais perversos da história
contemporânea. Provavelmente, é o último momento de brilho de De Sica, que ainda
se exercitaria seis vezes na direção antes de falecer aos 73 anos, em novembro
de 1974. A apreciação a seguir é de 1986. Passou por revisão e ampliação em
1989.
O jardim dos
Finzi-Contini
Il giardino dei Finzi-Contini/Der garten der Finzi-Contini
Direção:
Vittorio De Sica
Produção:
Artur
Brauner, Arthur Cohn, Gianni Hecht Lucari
Documento Film (Roma), CCC
Filmkunst GmbH (Berlin)
Itália, República Federal da
Alemanha — 1970
Elenco:
Lino Capolicchio, Dominique Sanda, Helmut Berger, Romolo
Valli, Fabio Testi, Camillo Cesarei, Inna Alexeieff, Katina Morisani, Barbara
Leonard Pilavin, Michael Berger, Ettore Geri, Raffaele Curi, Gianpaolo Duregon,
Marcella Gentili, Cinzia Bruno, Alessandro D'Alatri, Camillo Angelini-Rota, Katina
Viglietti, Franco Nelbia, Eugene Pomeroy, Enzo Nigro, Joshua Sinclair e em
imagens de arquivos Martin Bormann, Rudolf Hess, Adolf Hitler, Benito Mussolini,
Julius Streicher.
O diretor Vittorio De Sica em Londres |
Com O
jardim dos Finzi-Contini o cinéfilo tem o grato prazer de reencontrar
Vittorio De Sica em sua melhor forma. Após a realização de Duas mulheres (La
ciociara, 1961), o cineasta — um dos
fundadores do Neorrealismo Italiano — marcou encontro
com longo período de indolência e ausência de inspiração. Obras como O
juízo universal (Il giudizio universale, 1962), O
condenado de Altona (I sequestrati di Altona, 1962), Il
boom (1963), Um mundo jovem (Un mundo nuovo, 1965), O
fino da vigarice (Caccia alla volpe, 1966), Sete
vezes mulher (Woman times seven, 1967), Um
lugar para os amantes (Gli amanti, 1968) e Os
girassóis da Russia (I girassoli, 1970) se não significam
rendição do diretor às realizações de menor nobreza, ao menos nublam a
trajetória de um dos mais generosos humanistas que o cinema conheceu. É certo
que em meio a essa enxurrada de títulos menores despontam as agradáveis
comédias Ontem, hoje e amanhã (Ieri, oggi, domani, 1963) e Matrimônio
à italiana (Matrimonio all’italiana, 1964). Mas o De Sica que interessa à
história da sétima arte — que sensibilizou meio mundo ao
imprimir as agruras dos excluídos em Vítimas da tormenta (Sciuscià,
1946), Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), Milagre
em Milão (Milagro a Milano, 1950), Umberto D (Umberto D, 1951) e O
teto (Il tetto, 1956) — parecia
definitivamente perdido. De repente uma negação surpreende o cinéfilo. De Sica
está vivo! Para nossa felicidade continua generoso, carinhoso, compreensivo e
terno com seus personagens. Trata-os não como partículas isoladas, mas sínteses
de parcelas significativas da humanidade.
Os planos finais
de O
jardim dos Finzi-Contini mostram Micòl (Sanda), Giorgio (Capolicchio), Alberto
(Berger) e Bruno Malnate (Testi) movendo-se lentamente, um de cada vez, em
direção à câmera. Jogam tênis, o esporte favorito. São rostos jovens, alegres,
despreocupados. Mas a imagem algo etérea da fotografia de Ennio Guarnieri comunica:
não passam de fantasmagorias de gente esquecida, sacrificada na flor da idade.
Todos — exceto Alberto, abatido pela doença — morreram
vitimados pela mais vil das intolerâncias. Bruno pereceu na frente de batalha;
Micòl e Giorgio desapareceram nos campos de concentração, purgando a estúpida
culpa de serem diferentes e, por isso, condenados à proscrição: judeus vivendo em
obscuro, tenso e delicado momento da História recente.
Dominique Sanda interpreta Micòl Finzi-Contini |
O Jardim dos
Finzi-Contini é sensível drama intimista ao compasso de missa de
réquiem. Com ele, De Sica visita a Itália entre 1938-1943. Nesse lustro,
vigoraram as leis antissemitas de Mussolini: proíbem aos judeus o serviço nas
forças armadas, acesso às escolas públicas, assinaturas de listas telefônicas, contratação
de empregados “brancos” e matrimônio fora do grupo étnico. Tais medidas deram
início aos decretos mais duros de expropriação de bens, confinamento em campos
de prisioneiros e, por fim, a condenação à morte.
Os Finzi-Contini
são família de judeus aristocratas. Formam-na o pai e professor Ermanno
(Angelini-Rota), a mãe Olga (Viglietti), os filhos Micòl e Alberto, a avó
materna (Alexeieff). Apesar de o caos social e político se avizinhar, tentam se
manter ao largo da conjuntura, como se nada estivesse acontecendo. Acreditam-se
economicamente imunes. O antissemitismo parece não contar. Adotam a
autorreclusão no enfrentamento aos novos e sombrios tempos. Desta maneira — julgam
— serão poupados pelo mal. O imenso jardim no entorno da luxuosa e imponente
mansão em que residem na cidade de Ferrara limita um mundo à parte: outro Éden
cercado pelo pecado. Neste paraíso Micòl e Alberto recebem os amigos e se
divertem: jogam, passeiam, conversam, ouvem música, comentam uma etapa da vida
acadêmica prestes a concluir. De Sica destaca as imagens da natureza nas vistas
do jardim. A vegetação viçosa e a imponência das árvores parecem desafiar o
tempo e zombar dos desarranjos conjunturais tramados pela História. Comunicam
ao espectador a impressão de que os Finzi-Contini se assumem como
representações de uma estrutura essencial, intocável, imortal.
Os irmãos Alberto (Helmut Berger) e Micòl (Dominique Sanda) |
Em outro contexto
a família judia de Giorgio (Capolicchio) — alter ego de Giorgio Bassani, autor da
novela homônima que originou o roteiro —, economicamente
menos afortunada, tenta sobreviver como pode, lançada diretamente no centro das
turbulências. O pai (Valli), comerciante, refugia-se no autoengano — a mais vã
tentativa de garantir segurança a si e aos seus. Por mais que a situação piore
com a escalada drástica da redução de direitos civis, acredita na permanência
de condições mínimas e essenciais à continuidade da existência. Assim, acentua
para a esposa e os filhos: “Vivemos na Itália, não estamos na Alemanha”.
Giorgio (Lino Capolicchio) e seus pais interpretados por Romolo Valli e Barbara Pilavin |
Apesar das
diferenças sociais, o burguês Giorgio compartilha da amizade de Alberto e Micòl
Finzi-Contini. Conheceu-os crianças. Frequenta os jardins da aristocrática família.
Está perdidamente apaixonado pela etérea Micòl, mas não é correspondido. Em
rompante de lucidez — que se choca com o imobilismo voluntário representado
pela clausura e pelo jardim — ela passa a impressão de perceber a
impossibilidade de qualquer futuro na relação com o amigo de mesma origem
étnica. Entrega-se generosamente ao “não eleito” Bruno Malnati — a quem, a
princípio, confessara não nutrir simpatias — na véspera do
embarque do personagem rumo ao front
soviético, onde sucumbiu.
Giorgio (Lino Capolicchio) e Micòl Finz-Contini (Dominique Sanda) |
Muito se sabe da
perseguição aos judeus na Alemanha de Hitler; na Itália fascista, nem tanto. Em
O
jardim dos Finzi-Contini De Sica abre brecha à iluminação do antissemitismo
sob Mussolini. Encena o drama pela valorização da delicadeza, do lirismo e da
melancolia. Seus personagens parecem dar nova chance aos que, na verdade,
tiveram as oportunidades de vida cerceadas pelos desvios históricos. Não é
filme de arroubos, mas de muita calma e sensibilidade na exposição. A direção
não esquece a conjuntura, porém, preocupa-se mais com os estados d’alma, as
sensações de cerceamento, abandono e exclusão. Nisso, envolve o espectador na
atmosfera íntima que circunda os personagens. Assim, sente-se a impotência de
Giorgio — expulso da biblioteca por ser judeu —; experimenta-se a insegurança
da sua família frente ao mudo terrorismo telefônico; respiram-se os ares de desamparo
e solidão do personagem interpretado por Capolicchio — aprisionado no cinema —;
sofre-se quando Micòl e a avó são bruscamente separadas da família pela
truculência policial que as interna na escola onde os herdeiros dos
Finzi-Contini estudaram. Sente-se o silencioso drama dos indivíduos diante do
imponderável que atualiza o contexto e a conjuntura. A situação e a temperatura
do momento são transmitidas em conversas incidentais, na movimentação das ruas,
no desabafo do jovem sobrevivente ao campo de concentração alemão, na clausura
dos personagens, no fim dos encontros no jardim. As expressões de Micòl sintetizam
essa simbiose entre intimidade e História. Seu rosto iluminado extravasa
desencanto; a beleza de sua juventude revela a amargura; contradições que se
explicitam à medida que os amigos desaparecem, os grupos se esfacelam e as
quadras de tênis silenciam. O som das big
bands estadunidenses, tão ouvidas na mansão, ilustram a época. Formam um
estranho paradoxo: é um ritmo otimista e inocente a ecoar em época extremamente
perversa.
Micòl (Dominique Sanda) e Giorgio (Lino Capolicchio) |
Livremente
adaptado da novela homônima de Giorgio Bassani por tarimbadíssimo time de
roteiristas — Ugo Pirro, Vittorio Bonicelli e os não
creditados Franco Brusati, Alain Katz, Tullio Pinelli, Cesare Zavattini,
Vittorio De Sica e Valerio Zurlini —, O
jardim dos Finzi-Contini conquistou o Urso de Prata no Festival de
Berlim em 1971 e, em 1972, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (falado em
língua não inglesa). É o quarto trabalho de De Sica honrado pela Academia de
Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Vítimas da tormenta
recebeu o Oscar Especial como produção de excepcional qualidade concebida sob circunstâncias
adversas[1].
Já Ontem,
hoje e amanhã e Matrimônio à italiana conquistaram idêntica
láurea a de O jardim dos Finzi-Contini[2].
Fantasmagorias de gente esquecida, sacrificada na flor da idade |
Depois de
assistir a O jardim dos Finzi-Contini é impossível não concordar com a
declaração de Orson Welles: “É uma vergonha não amar De Sica”[3],
provavelmente, o mais injustiçado dos cineastas".
Direção de fotografia (Eastmancolor): Ennio Guarnieri. Música: Manuel De Sica. Direção
musical: Carlo Savina. Canção: Vivere,
por Tito Schipa. Adaptação e roteiro:
Ugo Pirro, Vittorio Bonicelli e os não creditados Franco Brusati, Vittorio De
Sica, Alain Katz, Tullio Pinelli, Cesare Zavattini, Valerio Zurlini, com base
em novela homônima de Giorgio Bassani. Montagem:
Adriana Novelli. Assistente para o diretor:
Luisa Alessandri. Assistente de produção:
Giorgio Treves. Camareiro: Franco
D'Andria. Decoração: Roberto
Granieri. Confecção de figurinos: Antonio Rendaccio. Supervisão de produção: Enzo Nigro. Secretaria de produção: Franca Santi. Engenheiros de som: Massimo Loffredi,
Max Galinsky. Mixagem de som: Franco
Bassi. Maquiagem: Giulio Natalucci. Penteados: Anna Cristofani. Fotografia fixa: Roma's Press Photo. Efeitos óticos: Sviluppo Pellicole e
Stampa (S.P.E.S), Enrico Catalucci. Gerente
de produção: Romano Dandi. Desenho
de produção: Giancarlo Bartolini Salimbeni, Maurizio Chiari. Produção de elenco: Jose Villaverde. Operador de câmera: Giancarlo Ferrando.
Assistentes de câmera: Michele
Picciaredda, Giorgio Urbinelli. Assistentes
de montagem: Marisa Letti, Carla Zamponi. Continuidade: Mario Milani. Contabilidade:
Claudio Saraceni. Gravação musical:
RCA Italiana. Produção executiva:
Fausto Saraceni. Publicidade: Giulio
Einaudi, Susan Jacobs, Lucherini/Rossetti/Spinola/Scalera. Estúdios de combinação de som: Fono Roma, C.V.D. Empresa de confecção de figurinos: S.A.F.A.S.
Estúdio de edição musical: RCA. Estúdio de efeitos sonoros e ruídos de
sala: Cine Audio Effects. Tempo de
exibição: 95 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1986; revisto e ampliado
em 1989)
Nice post. I like it.
ResponderExcluirMe too, Tourism Gemza. It's a splendid - and very sad - movie!
ExcluirEstupenda reseña, amigo! Qué bien!
ResponderExcluirAbrazos
Muchas gracias, José Valle Valdés! Mas quando a película é boa, a resenha costuma fluir muito melhor.
ExcluirBuenas noches e abraços.
Eugenio,
ResponderExcluirConheço muito pouco ou quase nada do trabalho do Sica. O vi ao lado de Hudson em Adeus Às Armas/57 e, sob sua direção, apenas o ótimo Duas Mulheres/61.
Pelo que leio este me parece um dos seus mais marcantes trabalhos, mas infelizmente não o vi.
jurandir_lima@bol.com.br
Sim, Jurandir, como afirmei no texto, é o último momento de brilho de um humanista, uma espécie de cineasta que faz falta ao cinema instrumentalizado de hoje. Caso se interesse, há uma postagem sobre "Duas mulheres" bem mais para baixo. Foi publicada em 2013.
ExcluirAbraços.