Os tempos mudam; com eles, o cinema. Hoje, qual é a
visibilidade de Trágico amanhecer (Le jour se lève, 1939)? É resultado
de uma das mais frutíferas e aclamadas parcerias: Marcel Carné na direção;
Jacques Prévert no roteiro. Certamente, pertence ao seleto grupo de primeiros filmes
a merecer a estatura de CLÁSSICOS. Em sua listagem inicial, de 1952, das
melhores realizações de todos os tempos, a revista Sight & Sound, do British
Film Institute, incluiu-o entre os doze primeiros colocados. De forma complexa
para a época de sua concepção, narra as consequências trágicas de história de
amor não efetivada. Acrescenta a novidade de estar entre as primeiras armações
fílmicas organicamente estruturadas em flashbacks.
De suas entrelinhas outras leituras foram feitas. Trágico amanhecer é dos
mais emblemáticos produtos do movimento passado à história como Realismo
Poético. A trágica desdita de François (Jean Gabin) foi interpretada como o
atestado de óbito da Frente Popular inaugurada por Léon Blum. Também serviu de prenúncio
aos dias que lançaram a França no descrédito diante da capitulação para a
Alemanha, fato que resultou na instalação da fascista e colaboracionista
República de Vichy. Transformada em bode expiatório, a realização de Carné canalizou
o ódio da reação. Por pouco não foi destruída. Merece a redescoberta. A
apreciação a seguir data de 2000.
Trágico amanhecer
Le jour se lève
Direção:
Marcel Carné
Produção:
Jean-Pierre
Frogerais
Sigma, Vauban Productions
França — 1939
Elenco:
Jean
Gabin, Arletty, Jacqueline Laurent, Jules Berry, René Génin, Mady Berry,
Jacques Baumer, Bernard Blier, Marcel Pérès, René Bergeron, Gabrielle Fontan,
Arthur Devère, Germaine Lix e os não creditados Annie Carriel, Léonce Corne,
Georges Douking, Henry Farty, Georges Gosset, Robert Le Ray, Albert Malbert,
Marcel Melrac, André Nicolle, Guy Rapp, Max Rogerys, Madeleine Rousset, Marcel
Rouzé, Maurice Salabert, Claude Walter.
O diretor Marcel Carné |
Trágico amanhecer é um dos filmes
mais emblemáticos de todo o cinema. Brilhantemente sustentado por roteiro e
diálogos de Jacques Prévert — a partir de história de Jacques Viot —, pertence
à fase áurea da filmografia de Marcel Carné e pode ser considerado como o ápice
do movimento passado à História como Realismo Poético Francês. Seu final ficará
para sempre gravado na memória do cinéfilo atento: o despertador acionado nas
primeiras horas do amanhecer para alguém há pouco falecido. Antes desse
epílogo, o onipresente tic-tac do
relógio encaminha a narrativa — armada como sucessão de três longos flashbacks — para o trágico e esperado
desfecho. O som do mecanismo é um dos mais poderosos e eficazes leitmotivs do cinema. Mantém o
espectador interessado a todo o momento nos meandros de uma história simples,
encenada com crueza e detalhamento.
Os cinéfilos de
agora, em sua maior parte, sequer devem saber da importância de Trágico
amanhecer na história do cinema. É um filme esquecido. Olvidados também
estão diretor e roteirista. Felizmente, o título está registrado como realização
seminal nos melhores anais e compêndios da sétima arte. É obra de arte e
manifesto social; perfeita representação do estado de espírito que tomou conta
de um país nos anos imediatamente anteriores à deflagração da Segunda Guerra
Mundial.
A relevância de Trágico
amanhecer é tamanha a ponto de a prestimosa publicação Sight
& Sound, do British Film Institute, listá-lo entre os doze
principais títulos da primeira enquete, de 1952, que elegeu os melhores de
todos os tempos[1]. Nas
décadas seguintes a realização de Carné foi perdendo visibilidade, parte de um
processo considerado natural em um meio de expressão a todo instante renovado.
Entretanto, deve-se lamentar o descaso com ela nos dias que correm. Mas nessa
marcha Trágico amanhecer não está sozinho.
Trágico amanhecer e Cais
das sombras (Le quai des brumes, 1938) entraram,
à revelia do diretor, no rol dos filmes classificados como desmoralizantes por
políticos franceses da situação nas vésperas da vergonhosa capitulação da
França para a Alemanha, que resultou na transformação do país no apequenado e colaboracionista
Regime de Vichy. O correto acerca de Carné, do roteirista Jacques Prévert e
consequentemente, dos títulos que realizaram, é: estavam profundamente
sintonizados com a situação política e o estado de espírito que lentamente
envolveram no desânimo não somente a população francesa — principalmente os
setores mais conscientes da esquerda e do proletariado — e europeia nos anos que
antecederam à deflagração do conflito. Realizador e roteirista, evidentemente,
não tinham plena capacidade para prever tudo o que viria, mas pressentiram os
efeitos de uma atmosfera social e moral tomada de pessimismo, fatalismo e
tragédia. Nesse sentido, Cais das sombras e Trágico
amanhecer lançam seus protagonistas por caminhos sem possibilidade de
retorno ou saída. Agem movidos por paixões ou são autômatos quais peões obedientes
aos imperativos das peças tramadas pelo mais cruel e indiferente destino. As
vontades estão dissolvidas. Predominam o desalento, a angústia e a sensação de
entrega sem resistência às tramas articuladas por forças irracionais ou
circunstanciais.
Por outro lado, sem
respostas francas e precisas a dar aos seus representados, os donos do poder
buscavam bodes expiatórios: Cais das sombras chegou a ser
diretamente responsabilizado pela rendição francesa em 17 de julho de 1940.
Pouco antes, chegou-se a vociferar: "Se perdermos a guerra, a culpa é de Quai
des brumes”. Mas a pronta resposta de Carné — provavelmente não poderia
ser outra e mais feliz — foi: "Não se pode responsabilizar um barômetro
pela tempestade que anuncia".
Trágico amanhecer também não
escapou à grita contrária. Além do mais, enfrentou ações mais drásticas. Pode-se
até dizer que a premiação recebida no Festival de Veneza de 1939 era, aos olhos
de hoje, pouquíssimo favorável: a Copa Mussolini de Melhor Realização
Estrangeira. Compreende-se: o Duce incentivou a criação do Festival. Mas uma
láurea com o nome do capo fascista, concedida a uma realização em tese tão
contrária a tudo o que ele representa, não deixa de ser irônico e trágico.
Acima e abaixo: o trágico François (Jean Gabin), anti-herói de Trágico amanhecer, um olho feliz, o outro, triste |
Lançado em Paris
aos 9 de junho de 1939 — quando faltavam menos de três meses para franceses e
ingleses declararem guerra à Alemanha e de um ano para a derrocada da França — Trágico
amanhecer foi proibido pelo governo de Vichy sob a exagerada e falsa
alegação de ser desmoralizante e subversivo. Antes da proscrição total, as
autoridades apelaram para cortes, inclusive de uma breve exposição do corpo nu
de Clara (Arletty) no banho, enquanto conversava com o trágico François
(Gabin). Expurgos atingiram os créditos de apresentação. Os nomes judaicos da
equipe de realização foram simplesmente apagados. Houve tentativa deliberada de
destruição do filme. Trágico amanhecer só não se perdeu
por completo porque algumas cópias foram contrabandeadas para outros países,
inclusive os Estados Unidos, onde fez muito sucesso e deitou influências, pelo
seu clima, nos filmes noir.
Desgraçadamente,
dois anos após o fim da guerra, o filme de Carné estaria novamente com a
existência em risco. Com
base em novo roteiro escrito por John Wexley, a partir do original de Jacques
Viot, a RKO Radio encomendou ao diretor Anatole Litvak uma refilmagem. O
resultado será Noite eterna (The long night), com Henry Fonda,
Barbara Bel Guedes, Vincent Price e Ann Dvorak nos papéis que pertenceram,
respectivamente, a Jean Gabin, Jacqueline Laurent, Jules Berry e Arletty. Além
de impor absurdo final feliz à história, a companhia produtora tentou de todas
as formas retirar de circulação e destruir as cópias do original de Carné. Conseguiu,
pelo menos, impedir sua apresentação ao público estadunidense durante alguns
anos. Enquanto isso, Trágico amanhecer era redescoberto
pelos europeus. Quanto à refilmagem de Anatole Litvak, foi rapidamente
condenada ao esquecimento.
Valentin (Jules Berry), François (Jean Gabin) e Clara (Arletty) |
Felizmente, Trágico
amanhecer escapou ileso a todos os atentados e pode ser apreciado em
sua integridade, inclusive com os créditos de abertura devidamente repostos e
fazendo justiça integral à equipe de filmagem. Hoje, passados mais de 60 anos
de sua realização, causa espécie perceber, para os padrões atuais, a falta de
elementos considerados subversivos em sua história. Não é sequer um filme
político no sentido estrito do termo. O que faz é narrar, em linhas gerais, o
drama de um operário desprovido de esperança, vitimado pelo ato desatinado
cometido — o assassinato do crápula que o levou ao desespero. Enquanto se arma
o espetáculo do cerco policial para capturar o assassino, três blocos de bem
articulados flashbacks interrompem o
fluxo do tempo presente, praticamente paralisado pela angustiante espera do
confronto inevitável das forças cegas da lei e da ordem com o homem que
pretendem conter. Nas rememorações, esclarecem-se os antecedentes da desabrida
ação de François (Gabin) contra Valentin (Berry), o dandy arrivista e
manipulador. Até então, o cinema não conhecera utilização mais inventiva e
orgânica do flashback: revelar a
personalidade, a vida e os valores do personagem que levantou as forças do
imponderável contra ele mesmo.
No entanto, o
drama de François, da forma como foi exposto ao público mais antenado, parecia mesmo
contaminado, ao menos nos anos de pré-guerra, por "elementos subversivos".
O Realismo Poético estava sintonizado com a débâcle
da Frente Popular Francesa e sua contaminação por fascistas. A coligação
governou a França por breve período. Aglutinada em torno de Leon Blum, era uma
ampla e frágil união de comunistas, socialistas, centro-esquerda e partidos
burgueses. Tendo por inspiração o lema "Pelo pão, pela paz, pela
liberdade", significou breve período de otimismo para o proletariado
francês. Dissensões internas num conglomerado de tão amplo espectro, mais a
recusa de contribuir decisivamente com os republicanos espanhóis durante a
Guerra Civil, além da cerrada oposição de uma direita fascista cada vez mais
violenta, logo levaram a Frente ao descrédito. A lufada de esperança durou
breves dois anos. O estado de espírito de François, revelado quando acuado
pelas forças policiais pouco dispostas ao diálogo, foi visto exatamente, pelos
novos homens no poder, em nada afinados aos ideais progressistas, como
derrotismo meramente abjeto. Era algo que deveria ser calado. Causou espécie
principalmente a forma como o protagonista reage ao apoio da multidão
aglomerada diante da pensão em cujo quarto se sitiou. Ordena a dispersão de
todos. Alega que não restam mais esperanças; tudo está acabado e pede para ser
deixado sozinho. Por causa dessa passagem, Trágico amanhecer encontrou forte
oposição dos homens de Vichy e foi condenado à proscrição. O personagem de Gabin
sofreu condenação política pela direita por aglutinar, em seu espírito, a
sensação de derrota que logo seria lida como representativa de toda a nação.
François (Jean Gabin) |
Criado em
orfanato, François não conheceu família. Ganha a vida como operário. É honesto,
simples e direto. Apoia-se em rigoroso e objetivo código de conduta. Tem por futuro
apenas o trabalho rotineiro de todos os dias. Habita despojado quarto no último
andar de pequeno edifício-pensão. Todos o conhecem como sujeito decente. Um
aviso — totalmente dispensável nos dias de hoje — abre o filme: “Um homem
cometeu assassinato. Trancado em seu quarto, ele se recorda como se transformou
em assassino”. Entretanto, a inserção desse alerta decorreu de decisão prudente.
À época da realização, narrativas estruturadas em flashbacks eram novidades. Havia o temor de se confundir o público.
As primeiras tomadas,
na rua, flagram a câmera em movimento ascendente, pronta a revelar o prédio no
qual habita François. Logo a objetiva está no interior da moradia. Avança pela
escadaria de acesso às unidades. Ultrapassa um cego. Ao se aproximar do quarto
do personagem, ouve-se uma altercação. Seguem-se tiros. Um homem ferido cambaleia
porta afora. Rola as escadarias. Para aos pés do cego, ironicamente a
testemunha do crime.
A polícia pouco faz.
Anoitece. Moradias não podem ser violadas. Porém, fecha-se o cerco, que avançará
até o amanhecer. Entrincheirado em seu quarto, François recusa apelos à
rendição. Armado, fumando compulsivamente, rememora os últimos momentos da sua
vida enquanto decide o que fazer.
O morto é um
oleoso tipo de meia idade, o manipulador, amoral e cruel treinador de cães
Valentin (Jules Berry). Por causa dele, François não tem o pleno amor da dúbia
Françoise (Laurent), a florista jovem, doce, de aparência inocente, também
criada em orfanato, que lhe tocou o coração. Ele não se conforma. A realista e
experiente Clara (Arletty), ex-assistente de Valentin, aproxima-se do amargo
operário. Arma-se entre ambos breve e tênue relação, durante a qual ela tenta,
sem sucesso, abrir os olhos do companheiro aos fatos. Conhecedora das agruras
da vida, desconfia de homens que idealizam o amor sem nada saber de concreto
sobre o assunto.
A jovem e dúbia Françoise (Jacqueline Laurent) e François (Jean Gabin) |
De Françoise, François
recebeu apenas souvenires: um botão e Bolop, ursinho de pelúcia parecido com
ele, pois, segundo a jovem, tem um olhar feliz e outro triste. O bibelô lhe
serve de desconfortável companhia na solidão do quarto fortificado. Originalmente,
foram presentes de Valentin para a garota. François caminha pelo exíguo cômodo.
Não suporta ver-se no espelho. Quebra-o. Julga-se um idiota, enredado numa teia
que poderia ter evitado. Agora, terá que arcar com as consequências. Os
pensamentos vão e vêm. A rendição não se afigura como possibilidade. Tudo se
encaminha para o desfecho trágico. Maldito e despudorado, Valentin! Feriu a honra
de Françoise. Isso foi ousadia demais para a retidão moral do operário. O
revólver que o amestrador usava para provocar e se exibir deu vazão à fúria do
assassinato não premeditado.
Começa a
amanhecer. Na rua, populares cercam o prédio em apoio ao sitiado. Também o interpelam
a se render, em nome de uma vaga noção de esperança. O tic-tac onipresente do relógio se intensifica. Chegam reforços
policiais. A multidão é afastada à força. Clara e Françoise tentam intervir,
inutilmente. Tiros são desferidos contra o aposento. François, apesar de
consumido pelo desespero, mostra-se impassível. No entanto, seu semblante
irradia a sensação de mau agouro. Tentam rendê-lo com bombas de gás. Suicida-se
— um tiro no coração — pouco antes de serem lançadas. O despertador chama o
morto para o trabalho.
É simples a
estrutura de Le jour se lève, inclusive a história que narra, à primeira
vista tão banal na encenação de evento gerado por ato intempestivo. Certamente,
de histórias semelhantes o cinema está repleto. Então, o que torna tão extraordinário
esse filme, definido por André Bazin como "A tragédia da pureza e da
solidão"? Certamente, a sua atmosfera, resultado da combinação do roteiro
com os diálogos, a direção de fotografia, o trabalho de câmera e a atuação dos
quatro principais personagens. Estes, na verdade, parecem mesmo uma síntese da
sociedade francesa naquele conturbado e indefinido momento da realização. Vejamos:
François representa a falta de esperança do proletariado e dos setores
populares franceses diante do desmoronamento da Frente Popular; Clara pode ser
associada à posição realista e racional de quem faz leitura atenta das ações
humanas e suas possibilidades, apesar de não ser ouvida; Valentin é a ambição
desmedida dos oportunistas que se locupletam em situações de crise, inclusive
às custas dos semelhantes; Françoise é a flor viçosa da utopia que cedo feneceu
devido aos seus movimentos contraditórios. Junte-se a isso o tom fatalista. Os
personagens, com exceção de Clara, são criaturas assemelhadas a fantoches
manipulados pelo inevitável destino. Estão tolhidos nos desejos e vontades de
liberdade. Esta só é permitida pela morte, que também tem em Françoise uma
espécie de anjo ou agente inconsciente.
Arletty, em
desempenho sincero e contido, faz da ajustada Clara o produto do cruzamento da
sinceridade com a experiência de quem tudo conhece, mas sem disso se
vangloriar. Seu semblante, um tanto amargurado, sugere conformação, como se
soubesse, de antemão, o desfecho de uma história que se afigura inevitável.
Jacqueline Laurent é, por sua constituição, a expressão da ingenuidade. Também
se parece a uma produção de Valentin, em estágio de aperfeiçoamento. Jules
Berry é um vilão tão terrível como sedutor. Pode ser facilmente odiado por sua
aparência, gestos, fala e trabalho, sempre disposto a tratar as pessoas como posses
ou animais amestrados.
Clara (Arletty) |
Jean Gabin é
extremamente veraz em seu desempenho. François é a imagem perfeita de um homem
resignado, depois, acuado, sempre pronto a entrar em ebulição. Sentem-se
a dor e a frustração extravasadas de sua alma dilacerada. O ator está no auge em
sua representação para lá de quintessencial, como criatura aprisionada no beco
sem saída de uma vida que redundou em fracasso e da qual é impossível retornar.
A cenografia do
não creditado Alexandre Trauner joga papel considerável na criação destacada de
um décor que em momento algum se revela gratuito. Todos os ambientes de Trágico
amanhecer são funcionais e se comunicam plenamente à alma de François.
Desde a tomada inicial, reveladora do prédio esguio e alto, de escadaria
espiralada que conduz ao quarto exíguo, parcamente decorado, no qual o
personagem monta o palco de seus últimos momentos. Também há o seu miserável
local de trabalho, no qual passa os dias na estafante manipulação de um artefato
mecânico de polir metais com jatos de areia. A atividade o obriga a ingerir
leite com frequência, para desobstruir as vias aéreas. É neste misto de cortiço
com inferno que conhecerá Françoise. Ela aparece de súbito, perdida, procurando
pelo endereço para a entrega de uma encomenda de flores.
Françoise (Jacqueline Laurent), qual um anjo, aparece a François pela primeira vez |
Muito se falou da
direção de fotografia e do trabalho de câmera de Trágico amanhecer, por
conta da equipe formada por Philippe Agostini, André Bac, Curt Courant e Albert
Viguier. A iluminação de tons expressionistas, valorizadora da oposição entre
zonas claras e sombreadas, mais os planos obtidos por ângulos pouco
convencionais, logo deitaria influências pelo cinema estadunidense,
principalmente no filme noir. Cidadão
Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, também se beneficia,
principalmente da estrutura narrativa armada em flashback com interpolações contínuas entre passado e presente.
A história é despojada.
Apesar de permitir leituras outras, não se pode esquecer que Trágico
amanhecer é, acima de tudo, uma trama de amor levada a termo com
simplicidade e carregada de sutileza. Os resultados são trágicos, o tom é
pessimista. Mesmo assim, há lirismo e poesia em suas imagens. Mesmo filiado ao
Realismo Poético, o filme destila romantismo e simbolismo. Extravasam-se os
sentimentos pessoais e há a leitura pessimista da vida e do social. Por fim, a
morte se apresenta como única e definitiva solução. Ainda assim, não deixa de
ser realista a abordagem, por retratar, com apego aos fatos, o estado de
espírito de uma nação ou parte dela. Num ambiente tomado de indigência,
inclusive moral, pulsa a alma melancólica de um indivíduo aprisionado em
circunstâncias que se afiguram tão injustas como inevitáveis. O roteiro de
Jacques Prévert mantém a situação em estado de tensão quase intolerável, sem
apelar para qualquer excesso melodramático. É um filme sóbrio e cativante. Está
perfeitamente equilibrado em todas as suas influências, sejam as fílmicas, decorrentes
do talento de orquestrador de Marcel Carné, como as literárias, quando se sobressaem
as costuras pelas quais Prévert consolidou o roteiro, alimentado por fontes tão
díspares, mas ordenadas com integridade e coerência por talentos criadores e
refinados.
Roteiro e diálogos: Jacques Prévert, com base em história de Jacques Viot. Música: Maurice Jaubert. Direção de fotografia (preto-e-branco):
Philippe Agostini, André Bac, Curt Courant (não creditado), Albert Viguier. Montagem: René Le Hénaff. Desenho de produção: Alexandre Trauner
(não creditado). Figurinos: Boris Bilinsky
(não creditado). Assistentes de direção:
Pierre Blondy, Jean Fazy. Som:
Armand Petitjean. Gerente de unidade de
produção: Albert Brachet. Gerente de
produção: Paul Madeux. Fotografia de
cena: Raymond Voinquel. Roteiro
técnico: Marcel Carné. Sistema
de mixagem de som: Western Electric Wide Range Sound
System. Tempo de exibição: 93 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2000)
[1] Em 1952 foram estes os doze melhores filmes de
todos os tempos pela Sight & Sound: 1) Ladrões
de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), de
Vittorio De Sica; 2) Luzes da cidade (City
lights, 1931), de Charles Chaplin; 3) Em busca do ouro (The
gold rush, 1925), de Charles Chaplin; 4) O Encouraçado Potemkin (Bronenosets
Potemkin, 1925), de Sergei M. Eisenstein; 5) Intolerância (Intolerance:
Love's struggle throughout the ages, 1916), de David Wark Griffith; 6) A
história de Louisiana (Louisiana story, 1948), de Robert J.
Flaherty; 7) Ouro e maldição (Greed, 1924), de Erich von Stroheim;
8) Trágico
amanhecer; 9) O martírio de Joana D'Arc (La
passion de Jeanne d'Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer; 10) Desencanto
(Brief
encounter, 1945), de David Lean; 11) A regra do jogo (La
règle du jeu, 1939), de Jean Renoir; 12) O milhão (Le
million, 1931), de René Clair.
Que beleza de abordagem e quão oportuna!
ResponderExcluirComo fazer que mais pessoas leiam e se desperte nelas o desejo de assistir ao filme???
Déti ês di cuéstião!
ABÇs
Paulo Braz Clemencio Schettino
Pois é, Paulo Braz. É uma questão em aberto. E o diâmetro da abertura só vem aumentado.
ExcluirAbs.
Eugenio,
ResponderExcluirRealmente o Paulo Braz atira certo ao elogiar a beleza de mais esta abordagem vossa e dá mesmo vontade de ver o filme.
Ocorre que nos anos 1950/60 havia um cinema aqui em SSA que tinha por modelo exibir filmes europeus.
E eu vi muitos deles, que quase sempre eram proibidos de 18 anos, mas eu sempre dava um jeito de fazer alterações grosseiras na Carteira de Estudante para ver tais filmes.
Assisti a tantos, pois nos meus alfarrábios todos estão anotados, e o Gabin e o George Marais eram os atores franceses que mais caminhavam em volta e com quem vi mais fitas daquela praça.
No entanto, não o achei em meus escritos e, ainda que achasse não sei se poderia aderia algumas palavras no comentário, por se tratar de coisa vista há longos anos.
Vi certa vez um filme russo chamado O Quadragésimo Primeiro, fita que nunca mais ouvi falar. Vi com o Montand, de 1953, O Salário do Medo. Vi Pão, Amor e...do Dino Risi e com a Loren. E como estes, muitos e muitos mais outros. Porém, o em pauta eu não o assisti.
jurandir_lima@bol.com.br
Apesar da passagem do tempo, que costuma ser cruel com alguns filmes, vale muito a pena conhecer TRÁGICO AMANHECER, Jurandir. Ao menos para lhe admirar a composição e o andamento. É um filme sólido e sóbrio. Eu, pelo menos, morro de amores por ele.
ExcluirAbraços.