domingo, 2 de agosto de 2015

O SEGUNDO BARÔMETRO DA PARCERIA DE MARCEL CARNÉ COM JACQUES PRÉVERT

Os tempos mudam; com eles, o cinema. Hoje, qual é a visibilidade de Trágico amanhecer (Le jour se lève, 1939)? É resultado de uma das mais frutíferas e aclamadas parcerias: Marcel Carné na direção; Jacques Prévert no roteiro. Certamente, pertence ao seleto grupo de primeiros filmes a merecer a estatura de CLÁSSICOS. Em sua listagem inicial, de 1952, das melhores realizações de todos os tempos, a revista Sight & Sound, do British Film Institute, incluiu-o entre os doze primeiros colocados. De forma complexa para a época de sua concepção, narra as consequências trágicas de história de amor não efetivada. Acrescenta a novidade de estar entre as primeiras armações fílmicas organicamente estruturadas em flashbacks. De suas entrelinhas outras leituras foram feitas. Trágico amanhecer é dos mais emblemáticos produtos do movimento passado à história como Realismo Poético. A trágica desdita de François (Jean Gabin) foi interpretada como o atestado de óbito da Frente Popular inaugurada por Léon Blum. Também serviu de prenúncio aos dias que lançaram a França no descrédito diante da capitulação para a Alemanha, fato que resultou na instalação da fascista e colaboracionista República de Vichy. Transformada em bode expiatório, a realização de Carné canalizou o ódio da reação. Por pouco não foi destruída. Merece a redescoberta. A apreciação a seguir data de 2000.







Trágico amanhecer
Le jour se lève

Direção:
Marcel Carné
Produção:
Jean-Pierre Frogerais
Sigma, Vauban Productions
França — 1939
Elenco:
Jean Gabin, Arletty, Jacqueline Laurent, Jules Berry, René Génin, Mady Berry, Jacques Baumer, Bernard Blier, Marcel Pérès, René Bergeron, Gabrielle Fontan, Arthur Devère, Germaine Lix e os não creditados Annie Carriel, Léonce Corne, Georges Douking, Henry Farty, Georges Gosset, Robert Le Ray, Albert Malbert, Marcel Melrac, André Nicolle, Guy Rapp, Max Rogerys, Madeleine Rousset, Marcel Rouzé, Maurice Salabert, Claude Walter.



O diretor Marcel Carné


Trágico amanhecer é um dos filmes mais emblemáticos de todo o cinema. Brilhantemente sustentado por roteiro e diálogos de Jacques Prévert — a partir de história de Jacques Viot —, pertence à fase áurea da filmografia de Marcel Carné e pode ser considerado como o ápice do movimento passado à História como Realismo Poético Francês. Seu final ficará para sempre gravado na memória do cinéfilo atento: o despertador acionado nas primeiras horas do amanhecer para alguém há pouco falecido. Antes desse epílogo, o onipresente tic-tac do relógio encaminha a narrativa — armada como sucessão de três longos flashbacks — para o trágico e esperado desfecho. O som do mecanismo é um dos mais poderosos e eficazes leitmotivs do cinema. Mantém o espectador interessado a todo o momento nos meandros de uma história simples, encenada com crueza e detalhamento.


Os cinéfilos de agora, em sua maior parte, sequer devem saber da importância de Trágico amanhecer na história do cinema. É um filme esquecido. Olvidados também estão diretor e roteirista. Felizmente, o título está registrado como realização seminal nos melhores anais e compêndios da sétima arte. É obra de arte e manifesto social; perfeita representação do estado de espírito que tomou conta de um país nos anos imediatamente anteriores à deflagração da Segunda Guerra Mundial.


A relevância de Trágico amanhecer é tamanha a ponto de a prestimosa publicação Sight & Sound, do British Film Institute, listá-lo entre os doze principais títulos da primeira enquete, de 1952, que elegeu os melhores de todos os tempos[1]. Nas décadas seguintes a realização de Carné foi perdendo visibilidade, parte de um processo considerado natural em um meio de expressão a todo instante renovado. Entretanto, deve-se lamentar o descaso com ela nos dias que correm. Mas nessa marcha Trágico amanhecer não está sozinho.


Trágico amanhecer e Cais das sombras (Le quai des brumes, 1938) entraram, à revelia do diretor, no rol dos filmes classificados como desmoralizantes por políticos franceses da situação nas vésperas da vergonhosa capitulação da França para a Alemanha, que resultou na transformação do país no apequenado e colaboracionista Regime de Vichy. O correto acerca de Carné, do roteirista Jacques Prévert e consequentemente, dos títulos que realizaram, é: estavam profundamente sintonizados com a situação política e o estado de espírito que lentamente envolveram no desânimo não somente a população francesa — principalmente os setores mais conscientes da esquerda e do proletariado — e europeia nos anos que antecederam à deflagração do conflito. Realizador e roteirista, evidentemente, não tinham plena capacidade para prever tudo o que viria, mas pressentiram os efeitos de uma atmosfera social e moral tomada de pessimismo, fatalismo e tragédia. Nesse sentido, Cais das sombras e Trágico amanhecer lançam seus protagonistas por caminhos sem possibilidade de retorno ou saída. Agem movidos por paixões ou são autômatos quais peões obedientes aos imperativos das peças tramadas pelo mais cruel e indiferente destino. As vontades estão dissolvidas. Predominam o desalento, a angústia e a sensação de entrega sem resistência às tramas articuladas por forças irracionais ou circunstanciais.


Por outro lado, sem respostas francas e precisas a dar aos seus representados, os donos do poder buscavam bodes expiatórios: Cais das sombras chegou a ser diretamente responsabilizado pela rendição francesa em 17 de julho de 1940. Pouco antes, chegou-se a vociferar: "Se perdermos a guerra, a culpa é de Quai des brumes”. Mas a pronta resposta de Carné — provavelmente não poderia ser outra e mais feliz — foi: "Não se pode responsabilizar um barômetro pela tempestade que anuncia".


Trágico amanhecer também não escapou à grita contrária. Além do mais, enfrentou ações mais drásticas. Pode-se até dizer que a premiação recebida no Festival de Veneza de 1939 era, aos olhos de hoje, pouquíssimo favorável: a Copa Mussolini de Melhor Realização Estrangeira. Compreende-se: o Duce incentivou a criação do Festival. Mas uma láurea com o nome do capo fascista, concedida a uma realização em tese tão contrária a tudo o que ele representa, não deixa de ser irônico e trágico.



Acima e abaixo: o trágico François (Jean Gabin), anti-herói de Trágico amanhecer, um olho feliz, o outro, triste


Lançado em Paris aos 9 de junho de 1939 — quando faltavam menos de três meses para franceses e ingleses declararem guerra à Alemanha e de um ano para a derrocada da França — Trágico amanhecer foi proibido pelo governo de Vichy sob a exagerada e falsa alegação de ser desmoralizante e subversivo. Antes da proscrição total, as autoridades apelaram para cortes, inclusive de uma breve exposição do corpo nu de Clara (Arletty) no banho, enquanto conversava com o trágico François (Gabin). Expurgos atingiram os créditos de apresentação. Os nomes judaicos da equipe de realização foram simplesmente apagados. Houve tentativa deliberada de destruição do filme. Trágico amanhecer só não se perdeu por completo porque algumas cópias foram contrabandeadas para outros países, inclusive os Estados Unidos, onde fez muito sucesso e deitou influências, pelo seu clima, nos filmes noir.


Desgraçadamente, dois anos após o fim da guerra, o filme de Carné estaria novamente com a existência em risco. Com base em novo roteiro escrito por John Wexley, a partir do original de Jacques Viot, a RKO Radio encomendou ao diretor Anatole Litvak uma refilmagem. O resultado será Noite eterna (The long night), com Henry Fonda, Barbara Bel Guedes, Vincent Price e Ann Dvorak nos papéis que pertenceram, respectivamente, a Jean Gabin, Jacqueline Laurent, Jules Berry e Arletty. Além de impor absurdo final feliz à história, a companhia produtora tentou de todas as formas retirar de circulação e destruir as cópias do original de Carné. Conseguiu, pelo menos, impedir sua apresentação ao público estadunidense durante alguns anos. Enquanto isso, Trágico amanhecer era redescoberto pelos europeus. Quanto à refilmagem de Anatole Litvak, foi rapidamente condenada ao esquecimento.


Valentin (Jules Berry), François (Jean Gabin) e Clara (Arletty)

  
Felizmente, Trágico amanhecer escapou ileso a todos os atentados e pode ser apreciado em sua integridade, inclusive com os créditos de abertura devidamente repostos e fazendo justiça integral à equipe de filmagem. Hoje, passados mais de 60 anos de sua realização, causa espécie perceber, para os padrões atuais, a falta de elementos considerados subversivos em sua história. Não é sequer um filme político no sentido estrito do termo. O que faz é narrar, em linhas gerais, o drama de um operário desprovido de esperança, vitimado pelo ato desatinado cometido — o assassinato do crápula que o levou ao desespero. Enquanto se arma o espetáculo do cerco policial para capturar o assassino, três blocos de bem articulados flashbacks interrompem o fluxo do tempo presente, praticamente paralisado pela angustiante espera do confronto inevitável das forças cegas da lei e da ordem com o homem que pretendem conter. Nas rememorações, esclarecem-se os antecedentes da desabrida ação de François (Gabin) contra Valentin (Berry), o dandy arrivista e manipulador. Até então, o cinema não conhecera utilização mais inventiva e orgânica do flashback: revelar a personalidade, a vida e os valores do personagem que levantou as forças do imponderável contra ele mesmo.


No entanto, o drama de François, da forma como foi exposto ao público mais antenado, parecia mesmo contaminado, ao menos nos anos de pré-guerra, por "elementos subversivos". O Realismo Poético estava sintonizado com a débâcle da Frente Popular Francesa e sua contaminação por fascistas. A coligação governou a França por breve período. Aglutinada em torno de Leon Blum, era uma ampla e frágil união de comunistas, socialistas, centro-esquerda e partidos burgueses. Tendo por inspiração o lema "Pelo pão, pela paz, pela liberdade", significou breve período de otimismo para o proletariado francês. Dissensões internas num conglomerado de tão amplo espectro, mais a recusa de contribuir decisivamente com os republicanos espanhóis durante a Guerra Civil, além da cerrada oposição de uma direita fascista cada vez mais violenta, logo levaram a Frente ao descrédito. A lufada de esperança durou breves dois anos. O estado de espírito de François, revelado quando acuado pelas forças policiais pouco dispostas ao diálogo, foi visto exatamente, pelos novos homens no poder, em nada afinados aos ideais progressistas, como derrotismo meramente abjeto. Era algo que deveria ser calado. Causou espécie principalmente a forma como o protagonista reage ao apoio da multidão aglomerada diante da pensão em cujo quarto se sitiou. Ordena a dispersão de todos. Alega que não restam mais esperanças; tudo está acabado e pede para ser deixado sozinho. Por causa dessa passagem, Trágico amanhecer encontrou forte oposição dos homens de Vichy e foi condenado à proscrição. O personagem de Gabin sofreu condenação política pela direita por aglutinar, em seu espírito, a sensação de derrota que logo seria lida como representativa de toda a nação.


François (Jean Gabin)


Criado em orfanato, François não conheceu família. Ganha a vida como operário. É honesto, simples e direto. Apoia-se em rigoroso e objetivo código de conduta. Tem por futuro apenas o trabalho rotineiro de todos os dias. Habita despojado quarto no último andar de pequeno edifício-pensão. Todos o conhecem como sujeito decente. Um aviso — totalmente dispensável nos dias de hoje — abre o filme: “Um homem cometeu assassinato. Trancado em seu quarto, ele se recorda como se transformou em assassino”. Entretanto, a inserção desse alerta decorreu de decisão prudente. À época da realização, narrativas estruturadas em flashbacks eram novidades. Havia o temor de se confundir o público.


As primeiras tomadas, na rua, flagram a câmera em movimento ascendente, pronta a revelar o prédio no qual habita François. Logo a objetiva está no interior da moradia. Avança pela escadaria de acesso às unidades. Ultrapassa um cego. Ao se aproximar do quarto do personagem, ouve-se uma altercação. Seguem-se tiros. Um homem ferido cambaleia porta afora. Rola as escadarias. Para aos pés do cego, ironicamente a testemunha do crime.


A polícia pouco faz. Anoitece. Moradias não podem ser violadas. Porém, fecha-se o cerco, que avançará até o amanhecer. Entrincheirado em seu quarto, François recusa apelos à rendição. Armado, fumando compulsivamente, rememora os últimos momentos da sua vida enquanto decide o que fazer.


O morto é um oleoso tipo de meia idade, o manipulador, amoral e cruel treinador de cães Valentin (Jules Berry). Por causa dele, François não tem o pleno amor da dúbia Françoise (Laurent), a florista jovem, doce, de aparência inocente, também criada em orfanato, que lhe tocou o coração. Ele não se conforma. A realista e experiente Clara (Arletty), ex-assistente de Valentin, aproxima-se do amargo operário. Arma-se entre ambos breve e tênue relação, durante a qual ela tenta, sem sucesso, abrir os olhos do companheiro aos fatos. Conhecedora das agruras da vida, desconfia de homens que idealizam o amor sem nada saber de concreto sobre o assunto.


A jovem e dúbia Françoise (Jacqueline Laurent) e François (Jean Gabin)

A realista Clara (Arletty) tenta abrir os olhos de François (Jean Gabin)


De Françoise, François recebeu apenas souvenires: um botão e Bolop, ursinho de pelúcia parecido com ele, pois, segundo a jovem, tem um olhar feliz e outro triste. O bibelô lhe serve de desconfortável companhia na solidão do quarto fortificado. Originalmente, foram presentes de Valentin para a garota. François caminha pelo exíguo cômodo. Não suporta ver-se no espelho. Quebra-o. Julga-se um idiota, enredado numa teia que poderia ter evitado. Agora, terá que arcar com as consequências. Os pensamentos vão e vêm. A rendição não se afigura como possibilidade. Tudo se encaminha para o desfecho trágico. Maldito e despudorado, Valentin! Feriu a honra de Françoise. Isso foi ousadia demais para a retidão moral do operário. O revólver que o amestrador usava para provocar e se exibir deu vazão à fúria do assassinato não premeditado.


Começa a amanhecer. Na rua, populares cercam o prédio em apoio ao sitiado. Também o interpelam a se render, em nome de uma vaga noção de esperança. O tic-tac onipresente do relógio se intensifica. Chegam reforços policiais. A multidão é afastada à força. Clara e Françoise tentam intervir, inutilmente. Tiros são desferidos contra o aposento. François, apesar de consumido pelo desespero, mostra-se impassível. No entanto, seu semblante irradia a sensação de mau agouro. Tentam rendê-lo com bombas de gás. Suicida-se — um tiro no coração — pouco antes de serem lançadas. O despertador chama o morto para o trabalho.


É simples a estrutura de Le jour se lève, inclusive a história que narra, à primeira vista tão banal na encenação de evento gerado por ato intempestivo. Certamente, de histórias semelhantes o cinema está repleto. Então, o que torna tão extraordinário esse filme, definido por André Bazin como "A tragédia da pureza e da solidão"? Certamente, a sua atmosfera, resultado da combinação do roteiro com os diálogos, a direção de fotografia, o trabalho de câmera e a atuação dos quatro principais personagens. Estes, na verdade, parecem mesmo uma síntese da sociedade francesa naquele conturbado e indefinido momento da realização. Vejamos: François representa a falta de esperança do proletariado e dos setores populares franceses diante do desmoronamento da Frente Popular; Clara pode ser associada à posição realista e racional de quem faz leitura atenta das ações humanas e suas possibilidades, apesar de não ser ouvida; Valentin é a ambição desmedida dos oportunistas que se locupletam em situações de crise, inclusive às custas dos semelhantes; Françoise é a flor viçosa da utopia que cedo feneceu devido aos seus movimentos contraditórios. Junte-se a isso o tom fatalista. Os personagens, com exceção de Clara, são criaturas assemelhadas a fantoches manipulados pelo inevitável destino. Estão tolhidos nos desejos e vontades de liberdade. Esta só é permitida pela morte, que também tem em Françoise uma espécie de anjo ou agente inconsciente.


Arletty, em desempenho sincero e contido, faz da ajustada Clara o produto do cruzamento da sinceridade com a experiência de quem tudo conhece, mas sem disso se vangloriar. Seu semblante, um tanto amargurado, sugere conformação, como se soubesse, de antemão, o desfecho de uma história que se afigura inevitável. Jacqueline Laurent é, por sua constituição, a expressão da ingenuidade. Também se parece a uma produção de Valentin, em estágio de aperfeiçoamento. Jules Berry é um vilão tão terrível como sedutor. Pode ser facilmente odiado por sua aparência, gestos, fala e trabalho, sempre disposto a tratar as pessoas como posses ou animais amestrados.


Clara (Arletty)


Jean Gabin é extremamente veraz em seu desempenho. François é a imagem perfeita de um homem resignado, depois, acuado, sempre pronto a entrar em ebulição. Sentem-se a dor e a frustração extravasadas de sua alma dilacerada. O ator está no auge em sua representação para lá de quintessencial, como criatura aprisionada no beco sem saída de uma vida que redundou em fracasso e da qual é impossível retornar.


A cenografia do não creditado Alexandre Trauner joga papel considerável na criação destacada de um décor que em momento algum se revela gratuito. Todos os ambientes de Trágico amanhecer são funcionais e se comunicam plenamente à alma de François. Desde a tomada inicial, reveladora do prédio esguio e alto, de escadaria espiralada que conduz ao quarto exíguo, parcamente decorado, no qual o personagem monta o palco de seus últimos momentos. Também há o seu miserável local de trabalho, no qual passa os dias na estafante manipulação de um artefato mecânico de polir metais com jatos de areia. A atividade o obriga a ingerir leite com frequência, para desobstruir as vias aéreas. É neste misto de cortiço com inferno que conhecerá Françoise. Ela aparece de súbito, perdida, procurando pelo endereço para a entrega de uma encomenda de flores.


Françoise (Jacqueline Laurent), qual um anjo, aparece a François pela primeira vez

  
Muito se falou da direção de fotografia e do trabalho de câmera de Trágico amanhecer, por conta da equipe formada por Philippe Agostini, André Bac, Curt Courant e Albert Viguier. A iluminação de tons expressionistas, valorizadora da oposição entre zonas claras e sombreadas, mais os planos obtidos por ângulos pouco convencionais, logo deitaria influências pelo cinema estadunidense, principalmente no filme noir. Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, também se beneficia, principalmente da estrutura narrativa armada em flashback com interpolações contínuas entre passado e presente.


A história é despojada. Apesar de permitir leituras outras, não se pode esquecer que Trágico amanhecer é, acima de tudo, uma trama de amor levada a termo com simplicidade e carregada de sutileza. Os resultados são trágicos, o tom é pessimista. Mesmo assim, há lirismo e poesia em suas imagens. Mesmo filiado ao Realismo Poético, o filme destila romantismo e simbolismo. Extravasam-se os sentimentos pessoais e há a leitura pessimista da vida e do social. Por fim, a morte se apresenta como única e definitiva solução. Ainda assim, não deixa de ser realista a abordagem, por retratar, com apego aos fatos, o estado de espírito de uma nação ou parte dela. Num ambiente tomado de indigência, inclusive moral, pulsa a alma melancólica de um indivíduo aprisionado em circunstâncias que se afiguram tão injustas como inevitáveis. O roteiro de Jacques Prévert mantém a situação em estado de tensão quase intolerável, sem apelar para qualquer excesso melodramático. É um filme sóbrio e cativante. Está perfeitamente equilibrado em todas as suas influências, sejam as fílmicas, decorrentes do talento de orquestrador de Marcel Carné, como as literárias, quando se sobressaem as costuras pelas quais Prévert consolidou o roteiro, alimentado por fontes tão díspares, mas ordenadas com integridade e coerência por talentos criadores e refinados.





Roteiro e diálogos: Jacques Prévert, com base em história de Jacques Viot. Música: Maurice Jaubert. Direção de fotografia (preto-e-branco): Philippe Agostini, André Bac, Curt Courant (não creditado), Albert Viguier. Montagem: René Le Hénaff. Desenho de produção: Alexandre Trauner (não creditado). Figurinos: Boris Bilinsky (não creditado). Assistentes de direção: Pierre Blondy, Jean Fazy. Som: Armand Petitjean. Gerente de unidade de produção: Albert Brachet. Gerente de produção: Paul Madeux. Fotografia de cena: Raymond Voinquel. Roteiro técnico: Marcel Carné. Sistema de mixagem de som: Western Electric Wide Range Sound System. Tempo de exibição: 93 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2000)



[1] Em 1952 foram estes os doze melhores filmes de todos os tempos pela Sight & Sound: 1) Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclette, 1948), de Vittorio De Sica; 2) Luzes da cidade (City lights, 1931), de Charles Chaplin; 3) Em busca do ouro (The gold rush, 1925), de Charles Chaplin; 4) O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potemkin, 1925), de Sergei M. Eisenstein; 5) Intolerância (Intolerance: Love's struggle throughout the ages, 1916), de David Wark Griffith; 6) A história de Louisiana (Louisiana story, 1948), de Robert J. Flaherty; 7) Ouro e maldição (Greed, 1924), de Erich von Stroheim; 8) Trágico amanhecer; 9) O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne d'Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer; 10) Desencanto (Brief encounter, 1945), de David Lean; 11) A regra do jogo (La règle du jeu, 1939), de Jean Renoir; 12) O milhão (Le million, 1931), de René Clair.

4 comentários:

  1. Que beleza de abordagem e quão oportuna!
    Como fazer que mais pessoas leiam e se desperte nelas o desejo de assistir ao filme???
    Déti ês di cuéstião!
    ABÇs

    Paulo Braz Clemencio Schettino​

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    1. Pois é, Paulo Braz. É uma questão em aberto. E o diâmetro da abertura só vem aumentado.

      Abs.

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  2. Eugenio,

    Realmente o Paulo Braz atira certo ao elogiar a beleza de mais esta abordagem vossa e dá mesmo vontade de ver o filme.

    Ocorre que nos anos 1950/60 havia um cinema aqui em SSA que tinha por modelo exibir filmes europeus.
    E eu vi muitos deles, que quase sempre eram proibidos de 18 anos, mas eu sempre dava um jeito de fazer alterações grosseiras na Carteira de Estudante para ver tais filmes.

    Assisti a tantos, pois nos meus alfarrábios todos estão anotados, e o Gabin e o George Marais eram os atores franceses que mais caminhavam em volta e com quem vi mais fitas daquela praça.

    No entanto, não o achei em meus escritos e, ainda que achasse não sei se poderia aderia algumas palavras no comentário, por se tratar de coisa vista há longos anos.

    Vi certa vez um filme russo chamado O Quadragésimo Primeiro, fita que nunca mais ouvi falar. Vi com o Montand, de 1953, O Salário do Medo. Vi Pão, Amor e...do Dino Risi e com a Loren. E como estes, muitos e muitos mais outros. Porém, o em pauta eu não o assisti.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Apesar da passagem do tempo, que costuma ser cruel com alguns filmes, vale muito a pena conhecer TRÁGICO AMANHECER, Jurandir. Ao menos para lhe admirar a composição e o andamento. É um filme sólido e sóbrio. Eu, pelo menos, morro de amores por ele.

      Abraços.

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