O filme de estreia do realizador Marcus Baldini é baseado
numa das personalidades mais exploradas pela mídia brasileira nos últimos anos:
Raquel Pacheco — relaxada, desajeitada e solitária filha adotiva de classe
média paulistana —, catapultada para a fama sob a alcunha de Bruna Surfistinha.
Ela abandonou a pretensão de se tornar psicóloga para se firmar como prostituta
e ascender meteoricamente como bem sucedida profissional do sexo. Passou a ser
conhecida como "A garota de programa mais famosa do Brasil",
principalmente por se tornar fenômeno da Internet, o que lhe rendeu o prêmio
"Revelação Interativa do Ano". De sua autobiografia, O
doce veneno do escorpião, nasceu o filme Bruna Surfistinha. Trata-se
de narrativa linear formalmente bem executada. No entanto, tem valor mediano
como realização cinematográfica na tentativa de estabelecer diálogo fácil com o
grande e pouco exigente público. Mas se a direção não ousa, Deborah Secco se
entrega à personagem com segurança e desenvoltura.
Bruna Surfistinha
Direção:
Marcus Baldini
Produção:
Marcus Baldini, Roberto Berliner, Rodrigo Letier
Damasco Filmes, Rio Filmes, TV Zero, Teleimage
Brasil — 2011
Elenco:
Deborah Secco, Cássio Gabus Mendes, Drica Moraes, Fabíula
Nascimento, Cristina Lago, Guta Ruiz, Clarisse Abujamra, Luciano Chirolli,
Sérgio Guizé, Simone Iliescu, Érika Puga, Brenda Lígia, Gustavo Machado,
Juliano Cazarré, Rodrigo Dourado, Roberto Áudio, Plínio Soares, Sidney
Rodrigues, Justine Otondo, Raquel Pacheco, Alex Sander.
Pensativo sobre a dolly, Marcus Baldini, realizador estreante |
Raquel Pacheco é filha adotiva de
família de classe média paulistana. Relaxada, desajeitada e solitária, é mal
vista pelos colegas de colégio. Quer ser psicóloga. Porém, aos 18 anos abandona
tudo e todos. Não demora a ser conhecida como Bruna, garota de programa, a mais
famosa do Brasil — segundo alguns slogans. Inicia carreira no bordel de Madame
Larissa. Depois, experimenta meteórica escalada rumo ao sucesso como
profissional autônoma, criando o blog no qual narra o dia-a-dia e atribui
conceitos aos clientes. Para suportar a alta rotatividade da carreira — que
inclui atuação em filmes pornôs — passa a consumir cocaína. O vício a conduz ao
endividamento com fornecedores, descontrole da vida pessoal, à perda da autoestima
e ao fundo do poço. Oferece-se para fileiras de clientes a preço de ocasião. Sucumbe
ao esgotamento físico e termina hospitalizada. Suas peripécias chamam a atenção
de jornalistas e programas sensacionalistas, graças principalmente ao blog que
a converte em fenômeno de acessos na Internet e lhe vale o prêmio “Revelação
Interativa do Ano”. Resolve contar a vida de profissional do sexo no livro O
doce veneno do escorpião, escrito em parceria com o jornalista José
Tarquini. Lançado em 2005, ultrapassa a marca dos 250 mil exemplares vendidos.
É traduzido para 15 idiomas. Atualmente, com outros dois outros livros
publicados, Raquel abandonou a prostituição, mas continua a interagir com a exploração
sexual como roteirista de filmes pornográficos. Está casada com ex-cliente.
Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha (Deborah Secco) |
A história é verdadeira, seja lá o
que isso signifique. Melhor dizer: é baseada em fatos. Raquel
Pacheco , ou Bruna, é profissional do sexo no exato sentido de
“professar”. Realiza seu trabalho com desenvoltura, pouco se importando com
parceiros, preferências e situações. Não considera fatores pessoais próprios,
como sentimentos e afetos. As questões relacionadas a praticar com afinco e
rigor a atividade estão em primeiro lugar. É uma máquina de fazer sexo. Desumaniza-se,
a ponto de se importar apenas em juntar dinheiro para alcançar a pretendida
independência financeira. Não quer viver às expensas de terceiros. Por isso, diz,
tão logo estreia no bordel de Madame Larissa (Morais): apesar de sentir falta
dos pais (nunca mais os verá!), entrega-se à prostituição porque os ama. Isto
poderia render bastante num filme de Buñuel, mas é apenas passagem pouco
explorada em Bruna Surfistinha. Provavelmente , a busca de
autoafirmação e o desejo de independência — mesmo por caminhos considerados socialmente
tortos — expliquem esse amor aos pais. Eles pareciam esperar muito pouco da
filha adotiva. Então, para Raquel, a prostituição surge como vocação,
alternativa profissional como tantas. Isso fica evidente depois de o irmão Romiro
(Dourado) — que constantemente a azucrinava e lhe cobrava maior rigor e
determinação frente à vida — localizá-la no bordel. Diante de ameaças físicas, xingamentos
enfáticos de “puta” e gritos de “Fica longe de minha família!”, ela termina o
ciclo de reconhecimento de sua nova posição. Será uma puta, sem nojos e
pudores. Atende a mais de trinta clientes na primeira semana. Melhora as roupas
e o visual. A garotinha que sentia medo de dormir fora de casa perde as
inibições por completo. Mas ainda se sente humilhada e diminuída diante de
motivos que lhe evocam o passado — como fica claro na cena da loja de
conveniência, ao perceber a presença de antigos colegas de escola.
Trajando jeans, a pouco promissora aluna de segundo grau Raquel Pacheco (Deborah Secco) |
Três personagens permitem
contrapontos a Bruna, oferecendo-lhe, pode-se dizer, espelhos nos quais poderia
perceber seu processo de desumanização e queda. O primeiro é Hudson (Gabus
Mendes), o primeiro cliente, que marcará presença em praticamente todas as
etapas de sua vida. Paternal, interessa-se sinceramente por ela. Quer saber seu
verdadeiro nome. Chama constantemente a atenção de Bruna para o passado e a
identidade que ela pretende sepultar e esquecer. “Lembra da vida que você
escolheu ao trepar com esses caras mais tarde” — diz, diante da recusa da moça em
aceitar novas possibilidades de vida. O segundo é Gustavo (Cazarré), que lhe
possibilitou uma entrega sincera, a ponto de fazer o serviço por conta da casa.
Mas será totalmente destratado quando, ávida por dinheiro, estiver no fundo do
poço. Gabi (Lago) é a terceira personagem. Também estava a serviço de Madame
Larissa quando Bruna a conheceu. Por causa do vício em cocaína chegou a furtar
jóias, dinheiro e outros pertences da colega. Por isso, quase vão às vias de
fato. Tal não acontece porque ela vê na companheira a materialização de seus dilemas
e problemas. Ficam juntas depois de expulsas do bordel. Gabi se torna uma
espécie de secretária de Bruna em ascensão. Tenta lhe impor freios diante das
compulsões e do endividamento decorrente do vício. Um desentendimento encerra a
relação.
Raquel Pacheco, já Bruna Surfistinha (Deborah Secco), com Hudson (Cássio Gabus Mendes), primeiro cliente, amigo e confidente |
Bruna Surfistinha, primeiro filme de Marcus Baldini,
recebeu o prêmio “Contigo Cinema” de 2011 em diversas categorias. O público o
escolheu como Melhor Filme e Deborah Secco, no papel-título, Melhor Atriz. Da
parte do júri venceu nas categorias de Melhor Atriz (Secco), Melhor Atriz Coadjuvante
(Fabíula Nascimento), Melhor Filme e Melhor Direção.
A realização pode ser dividida em
três partes: 1) a apresentação da personagem seguida de sua permanência na casa
de Madame Larissa; 2) a independência de Bruna, afirmando-se como garota de
programa e produzindo o blog que a deixa famosa; e, 3) o vício em drogas e,
consequentemente, o desregramento acompanhado do esgotamento físico e mental.
Em nenhuma dessas partes o filme engrena totalmente. Mas não é ruim. Atinge o
patamar de realização mediana, formalmente bem executada, inclusive do ponto de
vista didático. O ordenamento linear da história confirma essa impressão: encena,
na sequência, a opção da personagem, sua iniciação, ascensão, queda e recomeço.
Também é forma de estabelecer diálogo com o grande público. Por isso, apesar do
tema, encena história palatável, capaz de ser compreendida sem maiores
considerações e esforços pelas plateias menos exigentes.
Raquel Pacheco ou Bruna (Deborah Secco) com as amigas e colegas de profissão |
Em que pesem as ousadias do tema e da
biografada, não é filme apelativo e rendido às fórmulas fáceis. Não cai nas
armadilhas da glamorização e do moralismo. Sua melhor qualidade é a
interpretação de Deborah Secco. A atriz realmente se entrega à personagem, com
segurança e desenvoltura. Não dá nem para imaginar o que seria da realização se
a produção houvesse optado por Karen Junqueira para o papel principal. Pouco pode ser
dito sobre ela, principalmente por desconhecimento de causa. Mas Deborah Secco se
colou de tal forma na representação de Bruna a ponto de tornar irrelevantes
todas as demais candidatas.
Pode-se
dizer da direção do estreante Bruno Baldini: sabe o que faz. Infelizmente, ousa
muito pouco. Vai ver, tal se deve à cautela que o cercou neste primeiro
trabalho, o que é perdoável. Ou — sabe-se lá! — não pode avançar além das imposições
dos parceiros envolvidos na produção e exigências da própria biografada. São
conjecturas, mas totalmente pertinentes.
Deborah Secco como Bruna Surfistinha |
Opções
narrativas levaram a produção e o roteiro a não explorar as atividades de Bruna
no cinema pornográfico e em programas televisivos de auditório.
A
verdadeira Raquel Pacheco aparece na cena do restaurante: é a garçonete que
atende Bruna e Hudson.
Raquel Pacheco (Deborah Secco) prestes a fazer a escolha definitiva de sua vida |
O epílogo
é muito bom. Mostra a jovem Raquel, assim que abandona a família, perambulando
por São Paulo. A cidade e a noite se apresentam como incógnitas. A personagem
avança de costas para a câmera. Na mochila de colegial se destaca um ursinho de
pelúcia. O rosto interrogativo da jovem encara o espectador algumas vezes. Este
se posiciona diante de uma quase criança, prestes a fazer escolha definitiva na
transição para novo patamar. Esse semblante parece também se comunicar aos
dilemas da Bruna madura do filme — que encontra o natural epílogo, não
significando isso o fim da personagem: as imagens da jovem Raquel deixando a
casa paterna deixam evidente que se trata de uma obra aberta.
Deborah Secco atua com segurança e desenvoltura no papel de Bruna Surfistinha. |
O sucesso de Bruna também é explicado
por outra qualidade atribuída às prostitutas: são boas ouvintes das desilusões
e carências dos clientes. Estes não querem apenas sexo, mas alguém que se
disponha a ouvi-los nos mais variados assuntos. Nesse quesito, segundo o filme,
Bruna nunca faz ouvidos moucos. Entrega-se atentamente à audição dos parceiros,
mesmo revelando, com sua expressão, a chateação que deve ser tudo isso.
Bastidores da filmagem: a atriz Deborah Secco e o diretor Marcus Baldini discutem o roteiro |
Roteiro: José de Carvalho, Homero Olivetto, Antônia Pellegrino, com
base no livro O doce veneno do escorpião, de Raquel Pacheco, co-escrito por
José Tarquini. Produção associada: Suzana
Villas Boas, Marcelo Corpanni, Cássio Gabus Mendes, Deborah Secco, Patrick
Siaretta, Bianca Villar. Produção
executiva: Lorena Bondarovsky, Rodrigo Letier, Bianca Villar. Música: Gui Amabis, Rica Amabis, André
Lucarelli, Tejo. Direção de fotografia
(cores): Marcelo Corpanni. Montagem:
Manga Campion, Oswaldo Santana. Direção
de arte: Luiz Roque. Decoração: Dani
Vilela. Figurinos: Leticia Barbieri.
Maquiagem: Gabi Moraes. Assistentes de direção: Luciana
Baptista, Gabriela Ribeiro. Mixagem de
som: Miriam Biderman, Paulo Gama. Edição
de diálogos: Ana Chiarini. Mixagem
da regravação de som: Paulo Gama. Edição
de som: William Lopes, Débora Morbi. Pós-produção
de áudio: Adriano Machado. Gravação
de som: Louis Robin. Mixagem sonora
do master: José Luiz Sasso. Efeitos
visuais: Nills Bonetti, Rafael Brandão, Marcelo Ferreira PeeJay, Rogério
Marinho. Composição digital: Daniel
T. Müller. Equipamentos e ferramentas:
Israel Basso. Eletricista: Joel
'Junior' de Queiroz. Assistente de
operador de vídeo: Pepe Mendes. Operador
de steadicam: Felipe Reinheimer. Assistente
de figurinos: Ana Carvalho. Consultoria
legal para assuntos musicais: Caio Mariano. Instrutor de atuação: Sérgio Penna. Coordenação de produção: Renato Rondon. Coordenação de pós-produção: Leandro Scorsafava. Agradecimentos especiais: Sam Eigen,
Brian Sweet. Sistema de mixagem de som:
Dolby Digital. Tempo de exibição:
109 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2012)
Eugenio,
ResponderExcluirComo disseste, a forma linear de como a fita é construida é um dos pontos positivos desta boa, e até bem feita pelicula do estreante Baldini.
Um dos principais trunfos positivos da criação do diretor está a qualidade estética do filme, com um bom padrão fotográfico a cores, com ótimos intérpretes dando ainda mais qualidade ao filme e, por conseguinte, uma fita de um bom nivel de aceitação por tudo de bem selecionado aplicado na sua construção.
Outro ponto fundamental para que o filme do Baldini obtivesse o sucesso alcançado, foi a beleza quase que estonteante da Débora como a personagem principal, a Bruna, fator que a própria Raquel não tem nem de longe, chegando até a ser uma branquela bem feinha.
Numa computação geral o filme passa bem. Pouquissimos escorregões, porém muitos tiros certeiros do Baldini.
jurandir_lima@bol.com.br
Concordo, Jurandir;
ExcluirÉ um trabalho bem realizado, com boas interpretações, principalmente da atriz responsável pela protagonista. Deixa-se ver com prazer.
Abraços.