Esta apreciação de A marca da brutalidade (Prime
cut, 1972) é um dos meus primeiros escritos sobre cinema. O texto original,
de 1974, sofreu ligeira revisão e ampliação em 1988. Mesmo assim, transparecem
os sinais da época de sua inicial elaboração, com o autor mal entrado nos 18
anos. O roteiro de Robert Dillon reatualiza temas caros aos clássicos filmes de
gângster. A direção objetiva do ainda promissor Michael Ritchie carrega na
violência — segundo os padrões que começavam a vigorar — em narrativa pontuada
de ironia e cinismo. De um lado está Nick Devlin (Lee Marvin), duro, romântico
e sentimental gângster da velha guarda. Recusa rendição aos novos padrões do
crime, estruturados segundo normas burocráticas e impessoais. Na outra ponta,
representando a mudança temporal, está o perverso e amoral Mary Ann (Gene
Hackman). Sissy Spacek, aos 22 anos, tem seu primeiro papel relevante como
Poppy.
A marca da
brutalidade
Prime cut
Direção:
Michael Ritchie
Produção:
Joe Wizan
Cinema Center Films
EUA — 1972
Elenco:
Lee
Marvin, Gene Hackman, Angel Tompkins, Gregory Walcott, Sissy Spacek, Janit
Baldwin, William Morey, Clint Ellison, Howard Platt, Les Lannom, Eddie Egan,
Therese Reinsch, Bob Wilson, E. Lund, Gordon Signer, Gladys Watson, Hugh Gillin
Jr., David Savage, Graig Chapman, Jim Taksas, Wayne Savagne e os não creditados
Jerry Tracey e Judy Williams.
O diretor Michael Ritchie, talento que se perdeu |
É a segunda realização do então promissor Michael
Ritchie, revelado logo na estreia em Os amantes do perigo (The
downhill racer, 1969). Após A marca da brutalidade assinou O
candidato (The candidate, 1973), que parecia a confirmação plena de um
talento. Mas os trabalhos posteriores decepcionaram. Atualmente, Ritchie não goza
da menor visibilidade. Sua filmografia é preenchida por obras pueris e
indefensáveis.
A marca da brutalidade é releitura atualizada dos filmes de gângster. A
narrativa violenta, objetiva, carregada de ironia e cinismo, vai direto ao
ponto. Não há nada que a desvie. É sustentada pela onipresença de Lee Marvin —
eficaz e verossímil como de hábito — na pele do irlandês Nick Devlin, gângster
das antigas, de métodos próprios, sangue quente e poucas palavras. Mas a capa da
dureza abriga um sentimental que resiste à descaracterização imposta pela
penetração de regras burocráticas e impessoais nas estruturas do crime.
Recusa-se a abandonar Chicago. Apesar de decadente, a cidade continua a lhe
sorrir com certo charme. Kansas City é o centro promissor. Aí o chefão tem nome
de mulher: Mary Ann (Hackman). Atua sob fachada legal da agropecuária e processamento
de carnes. Mas não é tão independente como pensa. Deve 500 mil dólares a Jake (Egan)
— mandachuva de Chicago — e se recusa a pagar. Três tentativas de cobrança
terminam com os emissários mortos. Quando o filme começa, o terceiro agente é
processado como salsicha aos cuidados do truculento e boçal Weenie (Walcott),
irmão de Mary Ann. Em poucos dias Jake recebe um pacote de embutidos —, os restos
mortais do seu serviçal.
Acima e abaixo: Lee Marvin como Nick Devlin, gângster da velha guarda |
O jeito é apelar para Nick, de início relutante. Aceita
a missão em desagravo aos amigos eliminados em Kansas, tão logo toma
conhecimento das salsichas. Acompanham-no os inexperientes Delaney (Ellison),
Saughnessy (Platt) e O'Brien (Lennon) — cedidos por Jake — mais o motorista e
velho companheiro Shay (Morey).
Nick não perde tempo. Sabe onde pisa e a quem
procurar. Diz a que veio ao invadir os aposentos de Weenie e ameaçá-lo. Logo vai
à procura de Mary Ann. Encontra-o como anfitrião de almoço festivo servido a
amigos, clientes e lideranças locais. O cardápio oferece, além de carne,
adolescentes nuas e dopadas exibidas nos currais como objetos de leilão. A cena
choca Nick. Mas não há tempo a perder. Curto e grosso, efetua a cobrança e
concede prazo mínimo para a quitação. Ao se retirar resgata a garota Poppy
(Spacek). Qual o motivo desse gesto? Condoeu-se com a sorte da menina? Deseja-a
para o próprio prazer? Ou quis apenas se impor perante Mary Ann? O filme não oferece
respostas. Melhor atribuir as causas do ato às ambiguidades do personagem, mais
de uma vez explicitadas pela encenação.
Acima e abaixo: Mary Ann (Gene Hackman) provoca o código moral de Nick Devlin (Lee Marvin) |
Poppy (Sissy Sapcek) |
Os próximos movimentos apresentam uma das melhores
sequências de A marca da brutalidade: a sensacional entrada de Nick e
companhia no hotel. São cinco homens resolutos que não dão a menor atenção aos
olhares de testemunhas incrédulas. Transportam nos braços a catatônica Poppy protegida
por uma coberta.
Ela não se assusta ao despertar diante do olhar de
Nick. Age como se fatos assim fossem parte de sua rotina. Aparenta ingenuidade.
Diz que nunca acordou em lugar tão bonito. Procede de orfanato responsável pelo
fornecimento periódico de garotas a Mary Ann. Tem a irmã Violet (Baldwin) em
poder de Weenie. No restaurante do hotel os personagens de Marvin e Spacek causam
furor. Ambos desconhecem as boas maneiras. Ela usa longo e transparente vestido
negro sem nada por baixo. Mas o rosto de poucos amigos do protetor afasta os
olhares curiosos. Poppy é o primeiro papel relevante de Sissy Spacek no cinema,
então com 22 anos. Embora pareça desajeitada, a futura intérprete da
adolescente endiabrada em Carrie, a estranha (Carrie,
1976), de Brian De Palma, movimenta-se com desinibição e desenvoltura.
O dia seguinte é tenso. Começa na feira
agropecuária de Kansas City. Ritchie exibe tarimba e eficiência ao casar a
ansiedade decorrente do embate anunciado entre Nick e Mary Ann com a descontração
oriunda da exposição da vida interiorana dos Estados Unidos — um provincianismo
situado entre o ridículo, o cafona e o grotesco. Marvin faz rir quando seu
personagem se vê na desconfortável situação de provar o leite oferecido por uma
fazendeira, que também lhe pede comentários sobre a qualidade do produto. Nas
proximidades, Mary Ann assusta crianças, obrigando-as a se desfazer de seus
animais premiados por preços irrisórios. Ao localizar a irmã ao lado de Weenie,
Poppy apressa o desenrolar dos eventos. A dívida não é resgatada. Perseguidos, Nick
e sua protegida buscam refúgio no trigal e são acuados por uma ceifadeira. Dellaney
morre na tentativa de ajudá-los. São momentaneamente salvos por Shay, que lança
um carro de encontro à máquina.
Fecha-se o cerco. Poppy é recapturada; Saughnessy,
morto. Nick invade o pardieiro de Weenie. Encontra Violet com o rosto tomado
por hematomas. Auxiliado por O'Brien e Shay, ataca a fortaleza de Mary Ann.
Ritchie orquestra brilhante sequência de tiroteio num campo de girassóis.
O'Brien é ferido. Na estrada, Nick toma um caminhão e obriga o motorista a usá-lo
como aríete para arrombar as instalações. A troca de tiros continua nos estábulos.
Weenie provoca humor ao morrer, após se lançar furioso e ferido sobre o
oponente. Pensava atacá-lo com uma faca. Mas era apenas uma salsicha (!).
Baleado, Mary Ann despenca em meio aos porcos. Ensanguentado, atrai os animais
que o devoram ainda vivo. Nick não se abala com os gritos de socorro. O epílogo
é no orfanato. As internas são libertadas e Poppy usa os punhos contra a tutora.
Nick Devlin (Lee Marvin) |
Há semelhanças entre o personagem de Marvin —
atraído por Poppy em A marca da brutalidade —, com o Babe
Kossuck que interpretou quando era somente eficaz coadjuvante em Morrendo
a cada instante (I died a thousand times, 1956), de
Stuart Heisler — refilmagem da obra mestra O último refúgio (High
sierra, 1941), de Raoul Walsh. Como o personagem Roy Earl (Humphrey
Bogart) nesse filme, Kossuck auxilia uma jovem pobre e cega — Velna (Lori Nelson)
— a recuperar a visão.
O melhor momento de A marca da brutalidade é
o começo, no frigorífico: correm os créditos de abertura enquanto o cínico e
bruto Weenie prepara a transformação em salsicha do terceiro cobrador de Jake.
Com distanciamento suficiente a câmera acompanha o processo, desde o
"abate" — as nádegas do infeliz são rapidamente visualizadas junto
aos bois na fila da morte — ao produto final, com escalas nos depeladores, prensas,
esteiras, cortadores, trituradores, moendas, misturadores e embutidores. De
relance parece que o espectador vê um pé, já em condições de preparo. A imagem
seguinte confirma a visão: um sapato é lançado sobre a esteira.
Entrevistado sobre os personagens violentos,
impulsivos e viscerais que sempre interpretou no cinema, Lee Marvin forneceu
resposta curta e precisa, capaz de resumir toda a escalada da humanidade rumo à
civilização: "A violência está em cada gota de sangue que tenho, porque
também descendo dos homens das cavernas. Caso contrário não estaria aqui"[1].
Mary Ann (Gene Hackman) e Nick Devlin (Lee Marvin) |
Eddie Eggan, o intérprete de Jack, foi policial em
Nova York. Ele e o parceiro Sonny Grosso terminaram afastados da corporação,
acusados de desviar heroína apreendida de traficantes franceses cuja atividade
investigavam. Parte dessa história foi contada em Operação França (The
French connection, 1971), de William Friedkin, no qual Eggan serve de
base ao policial Jimmy "Popeye" Doyle, interpretado por Gene Hackman,
enquanto Grosso, rebatizado como Buddy Russo, ganhou as feições de Roy
Scheider.
Roteiro: Robert Dillon. Direção de fotografia (Panavision,
Technicolor): Gene Polito. Primeiro
assistente de direção: Michael Daves. Segundo
assistente de direção: Ronald R. Grow (não creditado). Desenho de produção: Bill Malley, James Payne. Títulos: Don Record. Figurinos:
Patricia Norris. Efeitos especiais:
Logan Frazee. Montagem: Carl Pingitore.
Assistente de montagem: Herb
Steinore. Música: Lalo Schifrin. Guarda-roupa masculino: Ray Summers. Maquiagem: Ken Chase, Emile LaVigne. Penteados: Salley Bailey. Som: John Wilkinson. Mixagem sonora: Barry Thomas. Mixagem da combinação de sons: Joel
Moss. Edição de efeitos sonoros:
Jack Finlay. Supervisão musical: Ed
Forsyth. Eletricista-chefe: Clifford
C. Hutchison. Produção de elenco:
Hoyt Bowers. Gerente de unidade de
produção: David Salven. Gerente de
unidade: Les Kimber (não creditado). Supervisão
de script: Charlsie Bryant. Assistente
de produção: Betty Gumm. Consultor
de locações: Les Kimber. Decoração:
James Payne. Fotografia fixa:
Orlando Suero. Contrarregra: Allan
Levine. Assistente de contrarregra:
Terry Lewis. Elaboração do poster:
Tom Jung (não creditado). Coordenação de
construções: Gene Lauritzen (não creditado). Direção de arte: Bill Malley. Produção
associada: Mickey Borofsky. Produção
executiva: Kenneth L. Evans. Coordenação
de dublês: John Hudkins (não creditado). Dublês: Bob Herron, Buddy Van Horn, Ted White. Assistente de câmera: Charles J. Renaud. Operador de câmera: Roger Shearman (não creditado). Capitão de transportes: Roy Hollis (não
creditado). Secretária de Michael
Ritchie: Dolores Harris (não creditada). Secretária da produção: Vivien Holt (não creditada). Gerente de locações: Dennis Judd (não
creditado). Auditor de locações:
Elton MacPherson (não creditado). Assistente
de produção: Joe Thornton (não creditado). Tempo de exibição: 88 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974;
revisto e ampliado em 1988)
[1] ATOR Lee Marvin morre aos 63 anos nos EUA, O. Folha
de São Paulo. São Paulo, 31/ago./1987. Ilustrada. p. 28.
Eugenio,
ResponderExcluirTenho pouquissima ligação com o diretor em pauta e apenas vi um filme dele, O Rapto do Menino Dourado/86
.
Assim, vou deixar de me expandir neste comentário por me observar em desencontro com a matéria.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir;
ExcluirAcredito que você gostaria - e muito - de A MARCA DA BRUTALIDADE. Infelizmente, a esta altura, sequer sei onde poderia encontrá-lo para conferir.
Abraços.