domingo, 26 de outubro de 2014

DE "CORAÇÕES E MENTES" ÀS ORIGENS DO TRAUMA DE JODIE FOSTER

Em 1976 fiquei literalmente abalado com o documentário-denúncia Corações e mentes (Hearts and minds, 1974), de Peter Davis, sobre a Guerra do Vietnã. Ao buscar recomposição emocional, deparei-me com Napoleão e Samantha (Napoleon and Samantha, 1972), de Bernard McEveety. É descompromissada e praticamente insossa realização da Walt Disney Productions a respeito das peripécias das duas crianças do título, interpretadas por Johnny Whitaker e Jodie Foster. A parte principal da história é a inusitada jornada de ambas — acompanhadas de uma galinha e um leão velho e desdentado — por trecho acidentado das Montanhas Rochosas, em busca do amigo Danny (Michael Douglas). Seu ponto forte é a abordagem adulta da morte, surpreendente numa produção destinada ao público infanto-juvenil. Napoleão e Samantha também explica, devido aos seus bastidores, as razões do trauma de Jodie Foster com os felinos em geral.







Napoleão e Samantha
Napoleon and Samantha

Direção:
Bernard McEveety
Produção:
Winston Hibler
Walt Disney Productions
EUA — 1972
Elenco:
Michael Douglas, Will Geer, Johnny Withaker, Jodie Foster, Arch Johnson, Henry Jones, Vito Scotti, John Crawford, Mary Wickes, Ellen Corby, Rex Holman, Claude Johnson, John Lupton, Monty Margetts, John Ortega, os leões Major e Zambo.



O leão da Metro, Major Lee McTavish, entre Samantha (Jodie Foster) e Napoleon (Johnny Withaker)


Passei a infância e adolescência habituado às produções da Walt Disney Productions. Lá pelos vinte anos, crescidinho, comecei a me enfastiar com essa dieta, não tanto por causa dos desenhos animados e documentários, mas pelas realizações protagonizadas por gente de carne e osso. Ficaram extremamente burocráticas. Perderam por completo viço e sabor. Tais sensações em alguém que amadurecia e experimentava a ampliação dos horizontes além dos limites estreitos da provinciana comunidade de pertencimento tiveram, porém, que dar o braço a torcer diante do que pareceu, num determinado instante, providencial exibição do rotineiro Napoleão e Samantha.


Em condições de normalidade não daria bola para o filme de Bernard McEveety. Surgiu em meu caminho como acidental e bem vindo refrigério. Estava em Belo Horizonte. Acabara de sair da exibição de Corações e mentes (Hearts and minds, 1974), excelente e acachapante documentário-denúncia de Peter Davis sobre a covarde e desastrosa intervenção bélica dos Estados Unidos no Vietnã. Embora soubesse muito sobre a guerra, fiquei vivamente abalado diante da força das imagens e dos depoimentos reveladores. A rápida parada em um bar para aprofundamento da reflexão sobre o filme não me tranquilizou. Melhor seria a imersão em outro cinema. Napoleão e Samantha se apresentou como alternativa de diversão descompromissada e reparadora. Torci o nariz, comprei o ingresso, respirei, entrei.


O filme cumpre a contento o papel de pedestre e descompromissado passatempo. O diretor, irmão do ligeiramente superior Vincent McEveety, conduz bovinamente uma história que teria tudo para ser mais interessante. Provavelmente, esbarrou nas limitações impostas pela companhia produtora: Napoleão e Samanta é mais um típico produto Disney voltado à diversão de toda a família.


Jodie Foster no papel de Samantha


Bernard McEveety, realizador prolífico formado pela televisão, atua no meio desde o começo dos anos 60. Sua carreira contabiliza episódios de incontáveis séries como Os intocáveis (The untouchables), O homem de Virgínia (The Virginian), Bonanza (Bonanza), Laredo (Laredo), Combate (Combat!), Big Valley (The Big Valley), O planeta dos macacos (Planet of the apes), Gunsmoke (Gunsmoke), S.W.A.T. (S.W.A.T.), Havaí Cinco-0 (Hawaii Five-0), Os Waltons (The Waltons) etc. No cinema dirigiu westerns promocionais para Chuck Connors: O sabre partido (Broken sabre, 1965) e A marca do vingador (Ride beyond vengeance, 1966). Para a tela grande também fez o terror The brotherhood of Satan (1971). Na Walt Disney Productions dirigiu episódios para o televisivo Disneylandia (Disneyland) além dos cinematográficos Napoleão e Samantha e O pequeno fugitivo (One little indian, 1973), com James Garner.


Seth Wilson (Will Geer), Major e Napoleão Wilson (Johnny Whitaker)


O louro e sardento Napoleão Wilson (Withaker), de aproximadamente 10 anos, vive com o avô, o ancião Seth Wilson (Geer) numa cidadezinha do Oregon, em meio às Montanhas Rochosas. Quando não está na escola, brinca com a amiga Samantha (Foster). Ambos ludibriam o merceeiro Mr. Gutteridge (Jones) e alimentam um velho cavalo no pasto próximo. São crianças vivendo na ausência dos pais. Os de Samantha viajaram, deixando-a aos cuidados da velha governanta Gertrude (Corby). Napoleão é órfão. A proximidade com idosos põe em evidência o espectro da morte.



Acima e abaixo: Napoleon Wilson (Johnny Withaker) e Samantha (Jodie Foster)
Crianças na ausência dos pais, cuidadas por idosos e convivendo com o espectro da morte


A rotina de Napoleão é alterada quando Seth consente na adoção de Major, manso, velho e praticamente desdentado leão de circo. Abrigado no galinheiro, ingere apenas leite. Major será praticamente um substituto de Seth. Este falece, deixando o neto, sem outros parentes vivos, na iminência de internação em orfanato. Temendo essa possibilidade e acumpliciado com Samantha, o garoto faz segredo do acontecimento. Consegue o inusitado auxílio do jovem estudante e receptivo forasteiro Danny (Douglas). O trio sepulta o velho na colina próxima à casa, onde ele tantas vezes apreciou o por do sol junto ao neto. Acreditando que Napoleão ficará aos cuidados de parentes, Danny nada informa às autoridades. Parte para o distante prado onde mora e trabalha enquanto prepara monografia de conclusão de curso.


Temeroso com seu futuro, Napoleão parte com Major ao encontro de Danny. Pretende viver com ele. Samantha resolve segui-lo. Começa aí a aventura. Duas crianças acompanhadas de uma galinha e um leão velho e cansado cruzam o trecho mais perigoso da Montanhas Rochosas. Até encontrar Danny, passam fome, enfrentam ataques de lince e urso, escorregam em despenhadeiros... Após recebê-los, o cioso rapaz vai à cidade, comunicar a Gertrude o paradeiro de Samantha. Termina preso, acusado de rapto. O local do enterro de Seth já fora descoberto. Danny escapa da delegacia, temeroso com a segurança das crianças, pois descobre que Mark (Holman) o visitante com quem as deixou, é psicopata fugitivo e perigoso. Apodera-se de uma moto e dispara pelas estradas, matas e vales. A perseguição policial não o perde de vista. Como seria de esperar, chegam a tempo de salvar os garotos e prender Mark. Tudo termina bem. Danny cuidará de Major pois Napoleão consente na ida para o orfanato.


Napoleão Wilson (Johnny Whitaker), Major e Samantha (Jodie Foster)


Alguns momentos da travessia de Napoleão e Samantha pelas Rochosas e as peripécias de Danny sobre a motocicleta garantem razoável suprimento de adrenalina ao espectador interessado nos aspectos mais viscerais desse ingênuo drama. Mas as melhores passagens, mais introspectivas e realistas, chegam a amenizar o fator ingenuidade: a apresentação da inevitabilidade da morte a uma criança num filme destinado ao público infantil. A conversa de Seth com o neto, pondo-o a par do fato incontornável, é algo cada vez mais raro no cinema, pois crescem as tendências para a legitimação do fenômeno social do escamoteamento da morte, a ponto de expulsá-la por completo do conhecimento dos petizes. O diálogo do avô com Napoleão é adulto, realista, amargo e desprovido de pieguice, como poucas vezes se viu, inclusive em filmes para maiores. Ponto para Stewart Raffill, roteirista, e Bernard McEveety.


Seth (Will Geer) e Napoleon (Johnny Withaker)

  
Outro aspecto positivo de Napoleão e Samantha é o elenco. O veterano Will Geer impõe respeitabilidade com sua forte presença, apesar de ficar pouco tempo em cena. Os meninos Johnny Whitaker e Jodie Foster convencem em suas interpretações. São, acima de tudo, espontâneos. Nem parece que estão cercados por um intimidador aparato de filmagens. Michael Douglas, filho de Kirk Douglas, apareceu no cinema pela primeira vez em um papel não creditado, quando ainda era adolescente, em À sombra de um gigante (Cast a giant shadow, 1966), de Melville Shavelson, protagonizado pelo pai. Tem a primeira chance como protagonista em Napoleão e Samantha, aos 28 anos. Pouco se exige de seu personagem. Segundo consta, dispensou dublês nas peripécias com a motocicleta.


Major, Napoleão Wilson (Johnny Withaker) e Danny (Michael Douglas) 

Michael Douglas, em sua primeira vez como protagonista, vive Danny


Dois leões foram utilizados nas filmagens. Major, na verdade Major Leo McTavish, tem história em Hollywood. Desde 1957 é o rugidor nas apresentações da Metro-Goldwyn-Mayer. Também apareceu em aventuras de Tarzan protagonizadas por Mike Henry[1] para o cinema e, de 1966 a 1968, na série televisiva dedicada ao Homem-Macaco estrelada por Ron Ely. O outro leão, Zambo, mais arisco, por pouco não provocou uma tragédia. Abocanhou a garotinha Jodie Foster e ficou a balançá-la diante da equipe apavorada e impotente até a intervenção do treinador.


Napoleão e Samantha foi, em 1973, indicado ao Oscar de Melhor Música Dramática para Buddy Baker.





Roteiro: Stewart Raffill. Direção de fotografia (Technicolor): Monroe P. Askins. Música: Buddy Baker. Figurinos: Chuck Keehne, Emily Sundby. Montagem: Robert Stafford. Decoração: Emile Kuri. Maquiagem: Robert J. Schiffer. Direção de arte: Walter M. Simonds, John B. Mansbridge. Supervisão de som: Herb Taylor. Produção associada: Tom Leetch, Stewart Raffill. Assistente de direção: Ted Schilz. Contrarregra: Bob McLing (não creditado). Mixagem de som: Andrew Gilmore. Eletricista-chefe: Jim Rose (não creditado). Edição musical: Evelyn Kennedy. Orquestração: Walter Sheets. Elaboração dos créditos: Jack Boyd, Jane Boyd. Amestradores: Joseph Raffill, Stewart Raffill. Supervisão de animais: Ralph Helfer (não creditado). Sistema de mixagem de som: RCA Sound Recording. Tempo de exibição: 92 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)



[1] Tarzan e o vale de ouro (Tarzan and the valley of gold, 1966), de Robert Day, e Tarzan e o menino da selva (Tarzan and the jungle boy, 1968), de Robert Gordon.

2 comentários:

  1. Eugenio,

    É. Alguns filmes conseguem mesmo fazer isto com a gente. Muitas vezes precisamos de tempo, ou de um refrigerante, para degustar melhor o que vimos. E seu refrigerante foi Napoleão e Samantha, mais uma pelicula dos bons tempos da Disney, filmes dos quais tanto gostamos.

    Pontilhei minha adolecencia assistindo a estes, como dizem, "agua com açucar" da Disney, que na verdade são fitas feitas exatamente para um, de fato, entretenimento. Gostosos de ver, leves como plumas, bons de degustação e nada melhor para quem saiu de um forte e verdadeiro "Corações e Mentes".

    Não conheço esta pelicula e nem Napoleão e Samantha. Mas tenho certeza de que seu golpe em sair de uma porrada e ir para um delicioso passeio pelo mundo criado sempre pela Disney, foi um acertado tiro em si mesmo. Só que um tiro que lhe desceu bem e lhe refrescou do molestante de anteriormente.

    Nunca fui muito fã da Foster, apesar de reconhecer nela uma boa atriz. E isto já desde pequena, pois vi filmes com ela ainda criança. Mas nossas almas não se junto muito e sempre dou desprezo aos filmes que aparecem com ela. Acho ser somente questão de simpatia pessoal, nada mais.

    Em uma sintese geral, ver ou rever (como fazes ainda hoje) os filmes da Cia. do grande homem do cinema e do entretenimento, é sempre uma doçura e um delicioso regresso ao passado.

    jurandir_lima@bol.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Jurandir "Faroeste" Lima;

      Sim, de fato, são mais que verdadeiras as suas palavras. Há momentos na vida em que procuro desesperadamente ver uma realização totalmente descomprometida, apenas com o fim muito salutar de esvaziar a cabeça e me entregar à mais compreensível e sacrossanta das diversões. Como informa o título nacional daquele filme de George Seaton, "De ilusão também se vive". Às vezes precisamentos dela desesperadamente, já que a realidade é por demais brutal, dura, cruel. Vez ou outra, beirando os meus sessenta anos, ainda costumo reencontrar com prazer alguma realização mais pueril vinda à luz pelos estúdios dos criadores de Mickey e cia. Há uns dois dias estava me esbaldando como pinto no lixo diante do inocente e pueril "Em busca da aventura",exibido pelo Telecine Cult e que vi pela primeira vez quando estava com nove anos, em 1965.

      Abraços.

      Excluir