O homem que vendeu a alma (All that money can buy,
1941) é, provavelmente, o melhor produto da safra estadunidense do profícuo
realizador alemão William Dieterle. Seus filmes, geralmente, não resistem à
prova do tempo. Gostosa e saudável exceção é a obra em questão, produção
independente a desenvolver com agilidade e brejeirice uma trama faustiana.
Nela, o Diabo — Mr. Scratch (Walter Huston) — é, depois de provocar muitos dissabores,
derrotado pelo modelar indivíduo americano e pelos valores liberais e
igualitários legados pelos pais fundadores à terra de Thomas Jefferson. O
homem que vendeu a alma costuma ser incluído entre os mais importantes
filmes realizados nos Estados Unidos. Conta com afinado time de intérpretes,
inspirada direção de fotografia de Joseph H. August e inovador comentário
musical de Bernard Herrmann. A realização, tão revestida de americanidade, não
livrou Dieterle da perseguição macartista. A apreciação é de 2000.
O homem que vendeu a
alma
All that
money can buy
Direção:
William
Dieterle
Produção:
William
Dieterle
William
Dieterle Productions
EUA — 1941
Elenco:
Edward
Arnold, Walter Huston, James Craig, Jane Darwell, Simone Simon, Gene Lockhart,
John Qualen, H. B. Warner, Frank Conlan, Lindy Wade, George Cleveland, Anne
Shirley e os não creditados William Alland, Frank Austin, Walter Baldwin, Eddie
Borden, Hazel Boyne, Sonny Bupp, Bob Burns, Jeff Corey, Horace B. Carpenter,
Tex Cooper, Alec Craig, Eddie Dew, Patricia Doyle, Robert Dudley, Sarah
Edwards, Fern Emmett, Jim Farley, Charles Herzinger, Payne B. Johnson, Harry
Hood, Harry Humphrey, Robert Emmett Keane, Anita Lee, Thomas Mitchell, Robert
Pittard, June Preston, Stewart Richards, Sherman Sanders, Carl Stockdale,
Robert Strange, Ferris Taylor, Jim Toney, Virginia Williams.
Avaliações exageradas incluem O homem que vendeu a alma entre os mais importantes filmes estadunidenses. Mas é tão somente produção merecedora de destaque. Certamente, está entre os melhores trabalhos do praticamente esquecido realizador alemão William Dieterle — radicado nos Estados Unidos desde 1930 —, responsável por cinebiografias que marcaram época como Madame Du Barry (Madame Du Barry, 1934), A história de Louis Pasteur (The story of Louis Pasteur, 1934), A vida de Émile Zola (The life of Émile Zola, 1937), Juarez (Juarez, 1939) e adaptações de consagradas obras literárias a exemplo de O corcunda de Notre Dame (The hunchback of Notre Dame, 1939). Sua filmografia costuma ser vítima de um mal geralmente fatal: e envelhecimento. Em regra, não resiste ao teste do tempo. Na revisão seus trabalhos se revelam frágeis e artificiais. Prova disso é O corcunda de Notre Dame. Apesar de contar com defensores abalizados, essa transposição da novela de Victor Hugo se mostra, hoje, anacronicamente atroz, a ponto de por em questão a tão festejada e esforçada interpretação de Charles Laughton como Quasímodo.
Passados quase
sessenta anos, O homem que vendeu a alma preserva praticamente intactos a
graça, o frescor e a agilidade. Mas essas qualidades não decorrem
exclusivamente da mise en scene de
Dieterle. Aliás, percebe-se claramente a falta de mais ousadia à direção. Esta se
apresenta quase sempre prisioneira do academicismo, das regras do bem fazer que
tanto prejudicam a revisão de considerável parte da produção cinematográfica
estadunidense desenvolvida nos moldes do sistema dos grandes estúdios — mesmo
sabendo que a realização em questão é produção independente.
O all American Daniel Webster, interpretado por Jack Arnold |
Alguns dos
principais trunfos de O homem que vendeu a alma decorrem
de propriedades extracinematográficas e pouco dependem do talento da direção. Tais
qualidades residem principalmente no forte americanismo que emana da história
original de Stephen Vincent Benet, All that money can buy — espécie de
releitura em forma de conto do Fausto de Johann Wolfgang von Goethe.
A transposição do original para o roteiro — pelo próprio autor em parceria com
Dan Totheroh — preservou os traços arquetípicos, quintessenciais dos Estados
Unidos. São o ponto forte da narrativa conduzida por Dieterle.
O filme é
conhecido por vários nomes nos Estados Unidos, inclusive por The
Devil and Daniel Webster. Tem esplendorosa fotografia de Joseph H.
August e possibilitou a Bernard Herrmann — merecidamente — o Oscar de Melhor
Trilha Musical para Filme Dramático em 1942. Com O homem que vendeu a alma,
o compositor inaugurou outro conceito de música para cinema, menos dependente dos
acordes clássicos, mas mais fiel ao clima, à ambientação e movimentação da
cena. O inconveniente — por assim dizer — dessa inovação é uma melodia mais
contextualizada e significativa, praticamente dependente das imagens ilustradas
ou comentadas. É estritamente cinematográfica, pouco adequada à audição descompromissada
no recesso dos lares, por exemplo. Esse “problema” não é percebido nas
composições de Alfred Newman, Victor Young, Dimitri Tiomkin, Max Steiner,
Miklós Rozsa e outros de igual estirpe — todos encarregados das trilhas de uma
Hollywood que há muito deixou de existir. Seus acordes fazem sentido mesmo se ouvidos
apartados dos respectivos suportes fílmicos. Em 1942, por ironia, o vitorioso Bernard
Herrmann derrotou a si próprio na entrega do Oscar, no caso a trilha musical de Cidadão
Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, muito mais inovadora.
Ainda no tocante
ao Oscar, O homem que vendeu a alma candidatou Walter Huston a Melhor
Ator num ano de acirrada competição na categoria. Também disputavam o prêmio: Orson
Welles por Cidadão Kane; Cary Grant por Serenata prateada (Penny
serenade), de George Stevens; Robert Montgomery por Que
espere o céu (Here comes Mr. Jordan), de Alexander
Hall; e o vencedor Gary Cooper por Sargento York (Sergeant York), de Howard
Hawks. Entretanto, Walter Huston foi considerado Melhor Ator pelos Críticos de
Nova York. Em 1948 o Oscar lhe faria justiça como Melhor Ator Coadjuvante por O
tesouro de Sierra Madre (The treasure of Sierra Madre),
dirigido pelo filho John Huston.
O homem que
vendeu a alma desenvolve ação em meados da década de 30 do século 19,
ambientando-a na fronteira de três estados básicos da formação do espírito nacional
dos Estados Unidos da América: New Hampshire, Massachusetts e Vermont. Saúda
aos valores básicos legados à nação pelos pais fundadores, principalmente
Thomas Jefferson. Enaltece o culto ao indivíduo que se realiza por amor próprio
e apego ao trabalho, particularmente o farmer
— pequeno proprietário que se completa na família e na comunidade de homens
livres e iguais. Por tudo isso, principalmente devido à complicada conjuntura
internacional da época da realização — que não tardaria a lançar o país na
Segunda Guerra Mundial —, O homem que vendeu a alma pode ser
categorizado como peça de propaganda. Expõe os valores tipicamente americanos
suportados na idealização do passado que legou ao país uma democracia liberal, originalmente
de boa cepa, contra o horror autoritário que se alastrava na Europa às expensas
de Hitler e do nazismo e, mais ao leste, de Stalin e do comunismo. Um dos
personagens fundamentais à história do filme é real: Daniel Webster (Arnold)[1],
congressista republicano derrotado na disputa à presidência do país, defensor
entusiasmado dos mais profundos valores da terra. Por tudo isso não se deve
estranhar o fato de Dieterle, alemão refugiado, encenar história tão
tipicamente americana. Ao saudar o ideário liberal, democrático e igualitário
da pátria fundada por Jefferson, o cineasta, no fundo, lamentava a ausência de
tudo isso no país de origem. Paradoxalmente, será por causa dessas simpatias que
ele entrará na mira do Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas do
Senado, em 1947 — sem esquecer que também realizou Bloqueio (Blockade,
1937) — pleno de simpatia aos republicanos em luta contra Franco na Guerra Civil
Espanhola. Nos Estados Unidos, a paranoia em torno da identificação de um
inimigo interno invisível e inexistente estigmatizou o próprio ideário
americano básico que Dieterle enalteceu. Além do mais, ele financiou — aliado a
Fritz Lang — a vinda de outros refugiados ilustres e igualmente alemães:
Bertold Brecht e Kurt Weil. O primeiro — sabe-se — deu trabalho ao Comitê e
deixou o país no auge das perseguições. A “caça às bruxas” confiscou o
passaporte de Dieterle em 1951 e 1953. Felizmente, nunca teve o nome incluído
na famigerada "lista negra”.
A versão em
questão de O homem que vendeu a alma é a integral, de 112 minutos,
recentemente restaurada. As cópias que circulavam desde o lançamento vinham
sofrendo sucessivos cortes a ponto de desfigurar a história.
O Diabo versus
valores americanos: em essência, este é o tema do filme. Com apresentação não
convencional dos créditos — que dividem a equipe entre os que estiveram "à
frente" e "atrás" das câmeras —, O homem que vendeu a alma
tem narrativa tão simples quanto a moral que veicula. Resulta daí a importância
capital da fotografia em preto-e-branco de Joseph H. August. Ela amplia a
complexidade do argumento e acentua as nuanças de uma encenação pontuada por
áreas iluminadas e escuras.
Walter Huston interpreta Mr. Scratch, o Diabo em pessoa |
A história, como
o próprio filme lembra, poderia acontecer a qualquer um e em toda parte. Mas terá
lugar em Cross Corners ,
povoado rural de New Hampshire. O Diabo, na pele de Mr. Scratch, irrompe mais
uma vez nessas bandas. Busca alguém disposto a lhe vender a alma. Já firmara
pacto com o tristemente afamado Mister Stevens (Qualen), agiota que tira a pele
dos pobres e pequenos sitiantes da localidade. A riqueza e o poder acumulados
pelo usurário decorrem das artes do Diabo. Mas como é praticamente impossível
saldar, por espontânea vontade, a dívida pactuada, a alma empenhada se tornará,
para sempre, propriedade de Mr. Scratch. E o tempo de Stevens está chegando ao
fim.
Jabez Stone
(James Craig), 27 anos, fazendeiro pobre e pacato — um dos muitos endividados
com o agiota — contraiu núpcias há menos de dois anos com Mary (Shirley). Com o
casal reside a velha e puritana Ma Stone (Darwell), a tão ciosa mãe de Jabez. Ela
educou o filho segundo os rígidos princípios religiosos que consolidaram o espírito
nacional estadunidense.
Jabez Stone (James Craig) e Mr. Scratch (Walter Huston), o "coisa ruim" |
Daniel Webster,
representante de Cross Corners ao Congresso em Washington, postula a
Presidência da República. Visita a comunidade no instante em que lá irrompe Mr.
Scratch. Conduz a própria charrete, puxada pelos cavalos denominados
Constituição, Direitos, Compromisso de Missouri e Suprema Corte. Constituição e
Direitos são extremamente confiáveis — alega —, os melhores companheiros para
jornadas seguras. Suprema Corte, no entanto, deve ser pressionado algumas
vezes. Mas os três tem a regularidade do trote garantida por Compromisso de
Missouri. A brincadeira com os nomes dos cavalos define a moral do filme e seu
comprometimento político. Também situa a fidelidade de Webster e os valores que
o orientam. É o porta-voz dos pobres; goza de enorme apoio e prestígio. No
começo, Scratch pretendia pactuar com ele. Mas a força de caráter do político é
inabalável: afasta o “coisa ruim” afirmando preferir "vê-lo na oposição”. "Estou
lá também!" — é a resposta bem humorada que recebe.
Sem opções à
vista, Mr. Scratch se acerca do moralmente fragilizado Jabez Stone. Sem
dinheiro para quitar a dívida contraída com Stevens, está a ponto de perder a
propriedade. Problemas climáticos lhe inviabilizam a colheita e o sustento familiar.
Preocupado, desgasta-se com blasfêmias — para desgosto da mãe. Amigos e
vizinhos, na mesma situação, procuram-no com a proposta de uma cooperativa. Mas
a armadilha já foi lançada. Mary sofre sério acidente e inúmeros outros dissabores
irrompem na vida do seu marido. A situação ruim piora. Desesperado, Jabez
esbraveja, alegando que “Venderia a alma ao Diabo por dois cents” para se ver
livre dos infortúnios. É prontamente atendido por Mr. Scratch, que lhe compra a
mercadoria ofertada; presenteia-o com uma fortuna em moedas de ouro e lhe
concede sete anos para quitar o débito. Neste período conhecerá a plena prosperidade.
A marca do diabólico pacto é exposta em árvore próxima ao celeiro.
Jabez liquida
totalmente a dívida com Stevens. Também sofre lenta e profunda transformação no
modo de ser. Passa de solidário a egoísta. Abandona as obrigações religiosas. É
dominado pela soberba. Gasta sem parcimônia. Alimenta pretensões políticas, a
ponto de ameaçar Daniel Webster, porta-voz de preceitos e valores que passará a
recusar. Porém, não se dá conta das mudanças. Vivencia um processo de paulatina
perda da alma, considerada como um nada. Concede importância somente ao
dinheiro e a tudo o que pode ser comprado.
De outro lado
Jabez trabalha com afinco e transforma sua propriedade em modelo para toda a
região. Também fecunda Mary, numa cena de sexo tão bela quanto poética, considerada
forte para a época apesar de pouco explícita. É tempo de lua nova. A fraca luminosidade
noturna invade o quarto do casal. Mary, com o rosto em expectativa, diz: “Eu
sei, há promessa e esperança no luar. Plante! Uma boa colheita está por vir”. Uma
sugestiva melodia intimista comenta o instante. A seguir, Jabez ara fundo a
solo. Todo o conjunto é orquestrado numa maravilhosa sequência da natureza
cultivada, na qual mulher e terra ganham idênticos significados. Ambas gerarão
frutos. Neste momento, Dieterle, o fotógrafo Josepeh H. August e o músico
Bernard Herrmann presenteiam o espectador com uma das mais belas tomadas
pastorais do cinema.
A providência
sorri para Jabez Stone. A colheita promete; seu herdeiro está por nascer. Porém,
parece desconhecer as razões de tanta felicidade. Pergunta a Ma Stone se
“Estaria ganhando dinheiro de modo ruim”. Ela responde: “Quem pensa assim está
com o Diabo no coração”. É o que basta para acionar a lembrança do malfadado pacto.
Tenta rompê-lo, inutilmente, apagando as marcas estampadas na árvore. O tempo
fecha em
Cross Corners. Tempestade de granizo arrasa os cultivos de
todos, exceto os de Jabez. Passam a crer que ele está em boas graças com os céus.
Tentados pelo
próprio Mr. Scratch, os arruinados agricultores de Cross Corners buscam trabalho
e auxílio financeiro com o próspero Jabez. A alternativa, a princípio, é encarada
com asco. Afinal, a pior coisa que pode acontecer a um estadunidense livre e
proprietário é trabalhar para outro. Mas não há saída. Todos hipotecam suas
vidas ao único homem feliz da comunidade. Dele recebem generosos empréstimos
para o reerguimento das próprias atividades. As cenas da colheita são
belíssimas e esplendidamente captadas. Mais uma vez Dieterle confirma talento
de orquestrador de pastorais.
A francesa Belle Dee (Simone Simon) lançada por Mr. Scratch (Walter Huston) no caminho de Jabez Stone (James Craig) para terminar de corrompê-lo |
Durante o baile
pela celebração da colheita, nasce o herdeiro. Mary o chamará de Daniel Webster
Stone (Cleveland, aos sete anos) em honra ao representante da comunidade que
também o apadrinhará. Daí em diante, as transformações no caráter de Jabez se
explicitam de vez. Mr. Scratch lança em seu caminho a francesa[2]
Belle Dee (Simon), “contratada” para o parto de Mary. Ela vem das montanhas,
misteriosamente. Chega em noite de tempo revolto. Acordes de tonalidades
diabólicas de Bernard Herrmann a apresentam. Também atuará como criada, para desagrado
de Ma Stone e Mary, constantemente desrespeitadas por Jabez.
Linda e sensual, Belle
se acerca de Jabez ao som da música executada por Scratch. Banca a difícil às
primeiras investidas do patrão. Ele, por isso, torna-se mais blasfemo,
mesquinho, zombeteiro, orgulhoso, autoritário, venal e ambicioso, um usurário
entregue aos vícios da mundanidade. Passa a motivar comentários em toda Cross Corners.
Manipula as autoridades em proveito próprio. Trata os empregados como escravos.
Fica mais temido e desapiedado que Mr. Stevens. “É culpa da francesa”, dizem
todos. Quando se torna amante de Belle, o processo de dominação de Jabez por
Scratch é consumado. Ergue mansão no estilo aristocrático inglês; veste-se como
landlord britânico e, como tal,
dedica-se a caçar raposas. Para o senso comum do tempo em que corre a história,
passa a ostentar a imagem do antigo e ocioso explorador colonial. É o horror endemoniado
para a mentalidade puritana. Praticamente repudia a esposa e isola a mãe no
esquecimento. O garoto Daniel cresce endiabrado, mirando-se no exemplo do pai
protetor e permissivo. Atazana mãe e avó.
Entretanto,
apesar de tudo, Jabez não é feliz. Sente falta de amor, alegria e amizade. Mas
essas coisas — frisa Mr. Scratch — "Nem todo o dinheiro do mundo pode
comprar".
Os sete anos de
prosperidade de Jabez estão no fim. Uma visão do que poderá lhe acontecer, caso
não cumpra o pacto, deixa-o apavorado: o desesperado Stevens, cujo tempo
expirou, é transformado em borboleta e aprisionado na casaca de Mr. Scratch.
Outros terão idêntico destino. Jabez tenta derrubar a árvore com a marca do
acordo, o que leva Scratch, enfurecido, a cobrar a dívida imediatamente. Porém,
aceita uma prorrogação, desde que a alma do pequeno Daniel seja incluída no
novo contrato. Tais cenas, hoje, frente à banalização que arrefeceu em todos os
sentidos os efeitos do horror, parecem desprovidas de maior impacto. Mas é
possível imaginar a angústia que provocaram no imaginário do espectador dos
anos 40.
Disposto a tudo por
sobrevida, Jabez se dispõe a entregar o filho. Mary, porém, se antecipa ao
pior. Foge de casa com o menino. Busca a proteção de Daniel Webster. Este se
propõe a enfrentar Mr. Scratch pela libertação das almas de pai e filho. O
desafio assume a forma de um tribunal de júri. Jabez Stone será o réu; Webster,
o advogado de defesa; Mr. Scratch, o acusador.
O Diabo impõe a
escolha de juiz e jurados. Convoca um batalhão de almas penadas, das mais
nefastas personalidades da história americana. O “Júri da Meia Noite de New
Hampshire” terá lugar no velho celeiro dos Stone, onde a trama faustiana
começou. Será presidido pelo tristemente famoso Juiz Hawthorne (Warner),
responsável por condenar à fogueira mulheres acusadas de bruxaria. No corpo de
jurados atuarão o Capitão Kidd, General Benedict Arnold, Simon Gerty, Walter
Butler e outros celerados.
Daniel Webster (Edward Arnold) e Mr. Scratch (Walter Huston) |
Webster afirma na
defesa: Jabez e todas as almas penadas presentes foram vítimas do Mal ao qual
se entregaram. Não o fizeram de live e espontânea vontade, mas porque foram
ludibriadas e aviltadas em suas capacidades de discernimento e livre
determinação individual — bem supremo da formação dos Estados Unidos. Com essa
argumentação, Webster obtém a concordância imediata de juiz e jurados. A causa
americana é invencível! Derrotado, Mr. Scratch é literalmente chutado para fora
do celeiro, em nome das 13 Colônias e do pacto maior — o acordo que deu origem
aos Estados Unidos da América. Mas Mr. Scratch não está totalmente derrotado.
Lança uma maldição sobre Daniel Webster: não se elegerá Presidente da República.
Dessa forma, filme e argumento de Stephen Vincent Benet explicam a derrota de
Webster para o democrata Martin Von Buren[3],
que governou o país de 1837 a 1841.
Jabez Stone e
família estão salvos e livres, bem como o modelar indivíduo estadunidense. A
concórdia retorna a Cross Corners. A cooperativa é criada, apoiada na certeza
de que a responsabilidade social do indivíduo é o que importa para a salvação
do bem comum.
E Mr. Scratch? A
ele é reservada a ameaçadora cena final que se fecha em íris. Ciente de que
deve continuar o seu trabalho, olha zombeteiro para o público, apontando-lhe o indicador.
Mr. Scratch (Walter Huston) de olho no público ao fim de O homem que vendeu a alma |
Além dos trunfos
representados pela música, fotografia e direção de arte de Van Nest Polglase, O
homem que vendeu a alma também tem elenco em perfeita afinação. Ao lado
da festejada performance de Walter Huston, merecem destaque Edward Arnold,
Simone Simon e Jane Darwell, sem esquecer o lendário H. B. Warner em curta e
assustadora aparição. Mas a integração do elenco é devida, em grande parte, aos
brilhantes e bem humorados diálogos do roteiro de Dan Totheroh e Stephen
Vincent Benet, que conferem ao filme o correto equilíbrio entre comédia e
drama.
Roteiro: Dan Totheroh, Stephen Vincent Benet, com base em All
that money can buy (The Devil and Daniel Webster),
história de Stephen Vincent Benet. Produção
associada: Charles L. Glett. Música
e direção musical: Bernard Herrmann. Orquestração
(não creditada): Bernard Herrmann. Direção
de fotografia (preto-e-branco): Joseph H. August. Montagem: Robert Wise. Direção
de arte: Van Nest Polglase. Decoração:
Darrell Silvera. Figurinos: Edward
Stevenson. Assistente de direção:
Argyle Nelson. Gravação de som: Hugh
McDowell Jr., James G. Stewart. Efeitos
especiais: Vernon L. Walker. Direção
de diálogos: Peter Berneis. Associado
à direção de arte: Alfred Herman. Tempo
de exibição: 112 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2000)
[1] O papel de Daniel Webster estava, a princípio,
reservado para Thomas Mitchell. Cenas com o ator chegaram a ser filmadas. Foram
refeitas quando Arnold o substituiu.
[2] Além da atriz Simone Simon ser natural da França,
sua personagem, no filme, é identificada, algumas vezes, como francesa. É um
substantivo com valor de adjetivo. Em geral, em muitos filmes americanos, as
“perdidas mulheres de vida fácil”, as prostitutas, são naturais da França,
donde a adjetivação. Em O homem que vendeu a alma, além de
possuir todos os atributos que desagradam aos puritanos, Belle Dee é o imediato
do Diabo.
[3] Numa das sequências mais bem humoradas de O
homem que vendeu a alma, um garoto puxa conversa com Webster. É Martin
Van Buren Aldrich (Bupp). Seu pai, não mostrado no filme, futuro Presidente dos
Estados Unidos, é o único membro do Partido Democrata em Cross Corners. O
garoto, sob influência paterna, diz ao republicano Webster: “Você não tem
chifre e rabo. Ainda não os vi”. A resposta: “Se for a Washington, mostro-os a
você”.
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