domingo, 20 de abril de 2014

TRAMA FAUSTIANA EM FILME RARO: O DIABO É DERROTADO PELO ORIGINAL ESPÍRITO AMERICANO

O homem que vendeu a alma (All that money can buy, 1941) é, provavelmente, o melhor produto da safra estadunidense do profícuo realizador alemão William Dieterle. Seus filmes, geralmente, não resistem à prova do tempo. Gostosa e saudável exceção é a obra em questão, produção independente a desenvolver com agilidade e brejeirice uma trama faustiana. Nela, o Diabo — Mr. Scratch (Walter Huston) — é, depois de provocar muitos dissabores, derrotado pelo modelar indivíduo americano e pelos valores liberais e igualitários legados pelos pais fundadores à terra de Thomas Jefferson. O homem que vendeu a alma costuma ser incluído entre os mais importantes filmes realizados nos Estados Unidos. Conta com afinado time de intérpretes, inspirada direção de fotografia de Joseph H. August e inovador comentário musical de Bernard Herrmann. A realização, tão revestida de americanidade, não livrou Dieterle da perseguição macartista. A apreciação é de 2000.







O homem que vendeu a alma
All that money can buy

Direção:
William Dieterle
Produção:
William Dieterle
William Dieterle Productions
EUA — 1941
Elenco:
Edward Arnold, Walter Huston, James Craig, Jane Darwell, Simone Simon, Gene Lockhart, John Qualen, H. B. Warner, Frank Conlan, Lindy Wade, George Cleveland, Anne Shirley e os não creditados William Alland, Frank Austin, Walter Baldwin, Eddie Borden, Hazel Boyne, Sonny Bupp, Bob Burns, Jeff Corey, Horace B. Carpenter, Tex Cooper, Alec Craig, Eddie Dew, Patricia Doyle, Robert Dudley, Sarah Edwards, Fern Emmett, Jim Farley, Charles Herzinger, Payne B. Johnson, Harry Hood, Harry Humphrey, Robert Emmett Keane, Anita Lee, Thomas Mitchell, Robert Pittard, June Preston, Stewart Richards, Sherman Sanders, Carl Stockdale, Robert Strange, Ferris Taylor, Jim Toney, Virginia Williams.



O diretor de origem alemã William (Wilhelm) Dieterle


Avaliações exageradas incluem O homem que vendeu a alma entre os mais importantes filmes estadunidenses. Mas é tão somente produção merecedora de destaque. Certamente, está entre os melhores trabalhos do praticamente esquecido realizador alemão William Dieterle — radicado nos Estados Unidos desde 1930 —, responsável por cinebiografias que marcaram época como Madame Du Barry (Madame Du Barry, 1934), A história de Louis Pasteur (The story of Louis Pasteur, 1934), A vida de Émile Zola (The life of Émile Zola, 1937), Juarez (Juarez, 1939) e adaptações de consagradas obras literárias a exemplo de O corcunda de Notre Dame (The hunchback of Notre Dame, 1939). Sua filmografia costuma ser vítima de um mal geralmente fatal: e envelhecimento. Em regra, não resiste ao teste do tempo. Na revisão seus trabalhos se revelam frágeis e artificiais. Prova disso é O corcunda de Notre Dame. Apesar de contar com defensores abalizados, essa transposição da novela de Victor Hugo se mostra, hoje, anacronicamente atroz, a ponto de por em questão a tão festejada e esforçada interpretação de Charles Laughton como Quasímodo. 


Passados quase sessenta anos, O homem que vendeu a alma preserva praticamente intactos a graça, o frescor e a agilidade. Mas essas qualidades não decorrem exclusivamente da mise en scene de Dieterle. Aliás, percebe-se claramente a falta de mais ousadia à direção. Esta se apresenta quase sempre prisioneira do academicismo, das regras do bem fazer que tanto prejudicam a revisão de considerável parte da produção cinematográfica estadunidense desenvolvida nos moldes do sistema dos grandes estúdios — mesmo sabendo que a realização em questão é produção independente.


O all American Daniel Webster, interpretado por Jack Arnold


Alguns dos principais trunfos de O homem que vendeu a alma decorrem de propriedades extracinematográficas e pouco dependem do talento da direção. Tais qualidades residem principalmente no forte americanismo que emana da história original de Stephen Vincent Benet, All that money can buy — espécie de releitura em forma de conto do Fausto de Johann Wolfgang von Goethe. A transposição do original para o roteiro — pelo próprio autor em parceria com Dan Totheroh — preservou os traços arquetípicos, quintessenciais dos Estados Unidos. São o ponto forte da narrativa conduzida por Dieterle.


O filme é conhecido por vários nomes nos Estados Unidos, inclusive por The Devil and Daniel Webster. Tem esplendorosa fotografia de Joseph H. August e possibilitou a Bernard Herrmann — merecidamente — o Oscar de Melhor Trilha Musical para Filme Dramático em 1942. Com O homem que vendeu a alma, o compositor inaugurou outro conceito de música para cinema, menos dependente dos acordes clássicos,  mas mais fiel ao clima, à ambientação e movimentação da cena. O inconveniente — por assim dizer — dessa inovação é uma melodia mais contextualizada e significativa, praticamente dependente das imagens ilustradas ou comentadas. É estritamente cinematográfica, pouco adequada à audição descompromissada no recesso dos lares, por exemplo. Esse “problema” não é percebido nas composições de Alfred Newman, Victor Young, Dimitri Tiomkin, Max Steiner, Miklós Rozsa e outros de igual estirpe  todos encarregados das trilhas de uma Hollywood que há muito deixou de existir. Seus acordes fazem sentido mesmo se ouvidos apartados dos respectivos suportes fílmicos. Em 1942, por ironia, o vitorioso Bernard Herrmann derrotou a si próprio na entrega do Oscar, no caso a trilha musical de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, muito mais inovadora.


Ainda no tocante ao Oscar, O homem que vendeu a alma candidatou Walter Huston a Melhor Ator num ano de acirrada competição na categoria. Também disputavam o prêmio: Orson Welles por Cidadão Kane; Cary Grant por Serenata prateada (Penny serenade), de George Stevens; Robert Montgomery por Que espere o céu (Here comes Mr. Jordan), de Alexander Hall; e o vencedor Gary Cooper por Sargento York (Sergeant York), de Howard Hawks. Entretanto, Walter Huston foi considerado Melhor Ator pelos Críticos de Nova York. Em 1948 o Oscar lhe faria justiça como Melhor Ator Coadjuvante por O tesouro de Sierra Madre (The treasure of Sierra Madre), dirigido pelo filho John Huston.


O homem que vendeu a alma desenvolve ação em meados da década de 30 do século 19, ambientando-a na fronteira de três estados básicos da formação do espírito nacional dos Estados Unidos da América: New Hampshire, Massachusetts e Vermont. Saúda aos valores básicos legados à nação pelos pais fundadores, principalmente Thomas Jefferson. Enaltece o culto ao indivíduo que se realiza por amor próprio e apego ao trabalho, particularmente o farmer — pequeno proprietário que se completa na família e na comunidade de homens livres e iguais. Por tudo isso, principalmente devido à complicada conjuntura internacional da época da realização — que não tardaria a lançar o país na Segunda Guerra Mundial —, O homem que vendeu a alma pode ser categorizado como peça de propaganda. Expõe os valores tipicamente americanos suportados na idealização do passado que legou ao país uma democracia liberal, originalmente de boa cepa, contra o horror autoritário que se alastrava na Europa às expensas de Hitler e do nazismo e, mais ao leste, de Stalin e do comunismo. Um dos personagens fundamentais à história do filme é real: Daniel Webster (Arnold)[1], congressista republicano derrotado na disputa à presidência do país, defensor entusiasmado dos mais profundos valores da terra. Por tudo isso não se deve estranhar o fato de Dieterle, alemão refugiado, encenar história tão tipicamente americana. Ao saudar o ideário liberal, democrático e igualitário da pátria fundada por Jefferson, o cineasta, no fundo, lamentava a ausência de tudo isso no país de origem. Paradoxalmente, será por causa dessas simpatias que ele entrará na mira do Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas do Senado, em 1947 — sem esquecer que também realizou Bloqueio (Blockade, 1937)  pleno de simpatia aos republicanos em luta contra Franco na Guerra Civil Espanhola. Nos Estados Unidos, a paranoia em torno da identificação de um inimigo interno invisível e inexistente estigmatizou o próprio ideário americano básico que Dieterle enalteceu. Além do mais, ele financiou — aliado a Fritz Lang — a vinda de outros refugiados ilustres e igualmente alemães: Bertold Brecht e Kurt Weil. O primeiro  sabe-se  deu trabalho ao Comitê e deixou o país no auge das perseguições. A “caça às bruxas” confiscou o passaporte de Dieterle em 1951 e 1953. Felizmente, nunca teve o nome incluído na famigerada "lista negra”.


A versão em questão de O homem que vendeu a alma é a integral, de 112 minutos, recentemente restaurada. As cópias que circulavam desde o lançamento vinham sofrendo sucessivos cortes a ponto de desfigurar a história.


O Diabo versus valores americanos: em essência, este é o tema do filme. Com apresentação não convencional dos créditos — que dividem a equipe entre os que estiveram "à frente" e "atrás" das câmeras —, O homem que vendeu a alma tem narrativa tão simples quanto a moral que veicula. Resulta daí a importância capital da fotografia em preto-e-branco de Joseph H. August. Ela amplia a complexidade do argumento e acentua as nuanças de uma encenação pontuada por áreas iluminadas e escuras.


Walter Huston interpreta Mr. Scratch, o Diabo em pessoa


A história, como o próprio filme lembra, poderia acontecer a qualquer um e em toda parte. Mas terá lugar em Cross Corners, povoado rural de New Hampshire. O Diabo, na pele de Mr. Scratch, irrompe mais uma vez nessas bandas. Busca alguém disposto a lhe vender a alma. Já firmara pacto com o tristemente afamado Mister Stevens (Qualen), agiota que tira a pele dos pobres e pequenos sitiantes da localidade. A riqueza e o poder acumulados pelo usurário decorrem das artes do Diabo. Mas como é praticamente impossível saldar, por espontânea vontade, a dívida pactuada, a alma empenhada se tornará, para sempre, propriedade de Mr. Scratch. E o tempo de Stevens está chegando ao fim.


Jabez Stone (James Craig), 27 anos, fazendeiro pobre e pacato — um dos muitos endividados com o agiota — contraiu núpcias há menos de dois anos com Mary (Shirley). Com o casal reside a velha e puritana Ma Stone (Darwell), a tão ciosa mãe de Jabez. Ela educou o filho segundo os rígidos princípios religiosos que consolidaram o espírito nacional estadunidense.



Jabez Stone (James Craig) e Mr. Scratch (Walter Huston), o "coisa ruim"


Daniel Webster, representante de Cross Corners ao Congresso em Washington, postula a Presidência da República. Visita a comunidade no instante em que lá irrompe Mr. Scratch. Conduz a própria charrete, puxada pelos cavalos denominados Constituição, Direitos, Compromisso de Missouri e Suprema Corte. Constituição e Direitos são extremamente confiáveis — alega —, os melhores companheiros para jornadas seguras. Suprema Corte, no entanto, deve ser pressionado algumas vezes. Mas os três tem a regularidade do trote garantida por Compromisso de Missouri. A brincadeira com os nomes dos cavalos define a moral do filme e seu comprometimento político. Também situa a fidelidade de Webster e os valores que o orientam. É o porta-voz dos pobres; goza de enorme apoio e prestígio. No começo, Scratch pretendia pactuar com ele. Mas a força de caráter do político é inabalável: afasta o “coisa ruim” afirmando preferir "vê-lo na oposição”. "Estou lá também!" — é a resposta bem humorada que recebe.


Sem opções à vista, Mr. Scratch se acerca do moralmente fragilizado Jabez Stone. Sem dinheiro para quitar a dívida contraída com Stevens, está a ponto de perder a propriedade. Problemas climáticos lhe inviabilizam a colheita e o sustento familiar. Preocupado, desgasta-se com blasfêmias — para desgosto da mãe. Amigos e vizinhos, na mesma situação, procuram-no com a proposta de uma cooperativa. Mas a armadilha já foi lançada. Mary sofre sério acidente e inúmeros outros dissabores irrompem na vida do seu marido. A situação ruim piora. Desesperado, Jabez esbraveja, alegando que “Venderia a alma ao Diabo por dois cents” para se ver livre dos infortúnios. É prontamente atendido por Mr. Scratch, que lhe compra a mercadoria ofertada; presenteia-o com uma fortuna em moedas de ouro e lhe concede sete anos para quitar o débito. Neste período conhecerá a plena prosperidade. A marca do diabólico pacto é exposta em árvore próxima ao celeiro.


Jabez liquida totalmente a dívida com Stevens. Também sofre lenta e profunda transformação no modo de ser. Passa de solidário a egoísta. Abandona as obrigações religiosas. É dominado pela soberba. Gasta sem parcimônia. Alimenta pretensões políticas, a ponto de ameaçar Daniel Webster, porta-voz de preceitos e valores que passará a recusar. Porém, não se dá conta das mudanças. Vivencia um processo de paulatina perda da alma, considerada como um nada. Concede importância somente ao dinheiro e a tudo o que pode ser comprado.


De outro lado Jabez trabalha com afinco e transforma sua propriedade em modelo para toda a região. Também fecunda Mary, numa cena de sexo tão bela quanto poética, considerada forte para a época apesar de pouco explícita. É tempo de lua nova. A fraca luminosidade noturna invade o quarto do casal. Mary, com o rosto em expectativa, diz: “Eu sei, há promessa e esperança no luar. Plante! Uma boa colheita está por vir”. Uma sugestiva melodia intimista comenta o instante. A seguir, Jabez ara fundo a solo. Todo o conjunto é orquestrado numa maravilhosa sequência da natureza cultivada, na qual mulher e terra ganham idênticos significados. Ambas gerarão frutos. Neste momento, Dieterle, o fotógrafo Josepeh H. August e o músico Bernard Herrmann presenteiam o espectador com uma das mais belas tomadas pastorais do cinema.


A providência sorri para Jabez Stone. A colheita promete; seu herdeiro está por nascer. Porém, parece desconhecer as razões de tanta felicidade. Pergunta a Ma Stone se “Estaria ganhando dinheiro de modo ruim”. Ela responde: “Quem pensa assim está com o Diabo no coração”. É o que basta para acionar a lembrança do malfadado pacto. Tenta rompê-lo, inutilmente, apagando as marcas estampadas na árvore. O tempo fecha em Cross Corners. Tempestade de granizo arrasa os cultivos de todos, exceto os de Jabez. Passam a crer que ele está em boas graças com os céus.


Tentados pelo próprio Mr. Scratch, os arruinados agricultores de Cross Corners buscam trabalho e auxílio financeiro com o próspero Jabez. A alternativa, a princípio, é encarada com asco. Afinal, a pior coisa que pode acontecer a um estadunidense livre e proprietário é trabalhar para outro. Mas não há saída. Todos hipotecam suas vidas ao único homem feliz da comunidade. Dele recebem generosos empréstimos para o reerguimento das próprias atividades. As cenas da colheita são belíssimas e esplendidamente captadas. Mais uma vez Dieterle confirma talento de orquestrador de pastorais.


A francesa Belle Dee (Simone Simon) lançada por Mr. Scratch (Walter Huston) no caminho de Jabez Stone (James Craig) para terminar de corrompê-lo


Durante o baile pela celebração da colheita, nasce o herdeiro. Mary o chamará de Daniel Webster Stone (Cleveland, aos sete anos) em honra ao representante da comunidade que também o apadrinhará. Daí em diante, as transformações no caráter de Jabez se explicitam de vez. Mr. Scratch lança em seu caminho a francesa[2] Belle Dee (Simon), “contratada” para o parto de Mary. Ela vem das montanhas, misteriosamente. Chega em noite de tempo revolto. Acordes de tonalidades diabólicas de Bernard Herrmann a apresentam. Também atuará como criada, para desagrado de Ma Stone e Mary, constantemente desrespeitadas por Jabez.




Acima e abaixo: Jabez Stone (James Craig) com a agente do Diabo, Belle Dee (Simone Simon), a "francesa"


Linda e sensual, Belle se acerca de Jabez ao som da música executada por Scratch. Banca a difícil às primeiras investidas do patrão. Ele, por isso, torna-se mais blasfemo, mesquinho, zombeteiro, orgulhoso, autoritário, venal e ambicioso, um usurário entregue aos vícios da mundanidade. Passa a motivar comentários em toda Cross Corners. Manipula as autoridades em proveito próprio. Trata os empregados como escravos. Fica mais temido e desapiedado que Mr. Stevens. “É culpa da francesa”, dizem todos. Quando se torna amante de Belle, o processo de dominação de Jabez por Scratch é consumado. Ergue mansão no estilo aristocrático inglês; veste-se como landlord britânico e, como tal, dedica-se a caçar raposas. Para o senso comum do tempo em que corre a história, passa a ostentar a imagem do antigo e ocioso explorador colonial. É o horror endemoniado para a mentalidade puritana. Praticamente repudia a esposa e isola a mãe no esquecimento. O garoto Daniel cresce endiabrado, mirando-se no exemplo do pai protetor e permissivo. Atazana mãe e avó.


Entretanto, apesar de tudo, Jabez não é feliz. Sente falta de amor, alegria e amizade. Mas essas coisas  frisa Mr. Scratch  "Nem todo o dinheiro do mundo pode comprar".


Os sete anos de prosperidade de Jabez estão no fim. Uma visão do que poderá lhe acontecer, caso não cumpra o pacto, deixa-o apavorado: o desesperado Stevens, cujo tempo expirou, é transformado em borboleta e aprisionado na casaca de Mr. Scratch. Outros terão idêntico destino. Jabez tenta derrubar a árvore com a marca do acordo, o que leva Scratch, enfurecido, a cobrar a dívida imediatamente. Porém, aceita uma prorrogação, desde que a alma do pequeno Daniel seja incluída no novo contrato. Tais cenas, hoje, frente à banalização que arrefeceu em todos os sentidos os efeitos do horror, parecem desprovidas de maior impacto. Mas é possível imaginar a angústia que provocaram no imaginário do espectador dos anos 40.


Disposto a tudo por sobrevida, Jabez se dispõe a entregar o filho. Mary, porém, se antecipa ao pior. Foge de casa com o menino. Busca a proteção de Daniel Webster. Este se propõe a enfrentar Mr. Scratch pela libertação das almas de pai e filho. O desafio assume a forma de um tribunal de júri. Jabez Stone será o réu; Webster, o advogado de defesa; Mr. Scratch, o acusador.


O Diabo impõe a escolha de juiz e jurados. Convoca um batalhão de almas penadas, das mais nefastas personalidades da história americana. O “Júri da Meia Noite de New Hampshire” terá lugar no velho celeiro dos Stone, onde a trama faustiana começou. Será presidido pelo tristemente famoso Juiz Hawthorne (Warner), responsável por condenar à fogueira mulheres acusadas de bruxaria. No corpo de jurados atuarão o Capitão Kidd, General Benedict Arnold, Simon Gerty, Walter Butler e outros celerados.


Daniel Webster (Edward Arnold) e Mr.  Scratch (Walter Huston)


Webster afirma na defesa: Jabez e todas as almas penadas presentes foram vítimas do Mal ao qual se entregaram. Não o fizeram de live e espontânea vontade, mas porque foram ludibriadas e aviltadas em suas capacidades de discernimento e livre determinação individual — bem supremo da formação dos Estados Unidos. Com essa argumentação, Webster obtém a concordância imediata de juiz e jurados. A causa americana é invencível! Derrotado, Mr. Scratch é literalmente chutado para fora do celeiro, em nome das 13 Colônias e do pacto maior  o acordo que deu origem aos Estados Unidos da América. Mas Mr. Scratch não está totalmente derrotado. Lança uma maldição sobre Daniel Webster: não se elegerá Presidente da República. Dessa forma, filme e argumento de Stephen Vincent Benet explicam a derrota de Webster para o democrata Martin Von Buren[3], que governou o país de 1837 a 1841.


Jabez Stone e família estão salvos e livres, bem como o modelar indivíduo estadunidense. A concórdia retorna a Cross Corners. A cooperativa é criada, apoiada na certeza de que a responsabilidade social do indivíduo é o que importa para a salvação do bem comum.


E Mr. Scratch? A ele é reservada a ameaçadora cena final que se fecha em íris. Ciente de que deve continuar o seu trabalho, olha zombeteiro para o público, apontando-lhe o indicador.



Mr. Scratch (Walter Huston) de olho no público ao fim de O homem que vendeu a alma


Além dos trunfos representados pela música, fotografia e direção de arte de Van Nest Polglase, O homem que vendeu a alma também tem elenco em perfeita afinação. Ao lado da festejada performance de Walter Huston, merecem destaque Edward Arnold, Simone Simon e Jane Darwell, sem esquecer o lendário H. B. Warner em curta e assustadora aparição. Mas a integração do elenco é devida, em grande parte, aos brilhantes e bem humorados diálogos do roteiro de Dan Totheroh e Stephen Vincent Benet, que conferem ao filme o correto equilíbrio entre comédia e drama.





Roteiro: Dan Totheroh, Stephen Vincent Benet, com base em All that money can buy (The Devil and Daniel Webster), história de Stephen Vincent Benet. Produção associada: Charles L. Glett. Música e direção musical: Bernard Herrmann. Orquestração (não creditada): Bernard Herrmann. Direção de fotografia (preto-e-branco): Joseph H. August. Montagem: Robert Wise. Direção de arte: Van Nest Polglase. Decoração: Darrell Silvera. Figurinos: Edward Stevenson. Assistente de direção: Argyle Nelson. Gravação de som: Hugh McDowell Jr., James G. Stewart. Efeitos especiais: Vernon L. Walker. Direção de diálogos: Peter Berneis. Associado à direção de arte: Alfred Herman. Tempo de exibição: 112 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2000)



[1] O papel de Daniel Webster estava, a princípio, reservado para Thomas Mitchell. Cenas com o ator chegaram a ser filmadas. Foram refeitas quando Arnold o substituiu.
[2] Além da atriz Simone Simon ser natural da França, sua personagem, no filme, é identificada, algumas vezes, como francesa. É um substantivo com valor de adjetivo. Em geral, em muitos filmes americanos, as “perdidas mulheres de vida fácil”, as prostitutas, são naturais da França, donde a adjetivação. Em O homem que vendeu a alma, além de possuir todos os atributos que desagradam aos puritanos, Belle Dee é o imediato do Diabo.
[3] Numa das sequências mais bem humoradas de O homem que vendeu a alma, um garoto puxa conversa com Webster. É Martin Van Buren Aldrich (Bupp). Seu pai, não mostrado no filme, futuro Presidente dos Estados Unidos, é o único membro do Partido Democrata em Cross Corners. O garoto, sob influência paterna, diz ao republicano Webster: “Você não tem chifre e rabo. Ainda não os vi”. A resposta: “Se for a Washington, mostro-os a você”.  

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