O cineasta John L. Lloyd Sullivan (Joel McCrea) abomina as tolas mas lucrativas comédias que dirige. Acredita
que o cinema deve valorizar as questões sociais, ainda mais nos Estados Unidos
varridos pela Grande Depressão, tomados por desemprego e desesperança. Mas ele,
milionário desde o berço, não possui conhecimento empírico sobre o assunto.
Resolve sair em campo, como um sociólogo apoiado na mais sincera pesquisa
participante. Conhecerá a pobreza e a exclusão social por dentro,
vivenciando-as. Acaba indo, metaforicamente, do paraíso ao inferno mais
tenebroso para descobrir a importância social da comédia. Ao mesmo tempo Contrastes
humanos (Sullivan's travels, 1941) expõe, por meio de uma câmera
cirúrgica, imagens fortes e tocantes sobre a pobreza e a miséria, raramente
vistas em produções hollywoodianas. A realização de
Preston Sturges é um clássico indiscutível. Integra, desde 1990, a lista dos
filmes de preservação obrigatória do National Film Registry.
Contrastes humanos
Sullivan's
travels
Direção:
Preston Sturges
Produção:
Preston Sturges (não creditado)
Paramount Pictures
EUA — 1941
Elenco:
Joel McCrea, Veronica Lake, Robert
Warwick, William Demarest, Franklin Pangborn, Porter Hall, Byron Foulger,
Margaret Hayes, Robert Greig, Eric Blore, Torben Meyer, Victor Potel, Richard
Webb, Charles R. Moore, Almira Sessions, Esther Howard, Frank Moran, Georges
Renavent, Harry Rosenthal, Alan Bridge, Jimmy Conlin, Jan Buckingham, Robert
Winkler, Chick Collins, Jimmie Dundee, Billy Bletcher, Harry Hayden, Harry
Seymour e os não creditados George Anderson, Myrtle Anderson, Elizabeth Ashley,
Roscoe Ates, Ruth Bias, Monte Blue, Grace Boone, Arie Lee Branche, William
Broadus, Jess Lee Brooks, Anita Brown, Ruth Byers, Matilda Caldwell, Mark
Carnahan, Chester Conklin, Laurence Criner, Gladys Davis, James Davis, Edgar
Dearing, Joan Douglas, A. Downs, Frances Driver, Robert Dudley, LeRoy Edwards,
Fay Fifer, Elizabeth Gray, Jester Hairston, Inez Hatchett, Edward Hearn, Arthur
Hoyt, Paul Jones, Bob Kortman, Pearl Lancaster, Elsa Lanchester, Cora Lang,
Perc Launders, J. Farrell MacDonald, Esther Michelson, Frank Mills, Howard M.
Mitchell, Paul Newlan, Artie Overstreet, Emory Parnell, War Perkins, Gus Reed,
Mary Reed, Willard Robertson, Dewey Robinson, Sheila Sheldon, Irving Smith,
Preston Sturges, Madame Sul-Te-Wan, Julius Tannen, Lillian Taylor, Henry 'Hot
Shot' Thomas, Maggie Thomas, Harry Tyler, Notable Vines, Pat West, Jack
Winslow, Bill Wolfe, Ted Billings, Ed Brady, Kit Guard, Chuck Hamilton, Sheldon
Jett, Payne B. Johnson, Pat McKee, Ray Milland, Bert Moorhouse, Lon Poff.
Preston Sturges, diretor e roteirista |
Em 2000, os irmãos Joel e Ethan Coen, baseados muito livremente em A odisseia, de Homero, levaram às telas a comédia que é, provavelmente, o melhor filme que realizaram: E aí, meu irmão, cadê você? (O brother, where art thou?). Com ação localizada no profundo sul estadunidense durante o auge da Grande Depressão, acompanha as desventuras de três presidiários em fuga — vividos por George Clooney, John Turturro e Tim Blake Nelson — que revelam ao espectador as mazelas e bem entranhadas contradições do país tingido por racismo, crise econômica, fundamentalismo religioso, crendices, banditismo, truculência policial, violência, especulação, oportunismo político e country music. A inspiração para o título veio de Contrastes humanos, quarta incursão de Preston Sturges na direção[1].
Contrastes humanos é filme cômico de primeira grandeza. Mas está longe de provocar o riso descompromissado e inconsequente, apesar de tratar exatamente disto: o poder liberador e humanizador da gargalhada a partir de produções supostamente inocentes e pueris. Destaca a relevância social da comédia e ao mesmo tempo enaltece o papel de Hollywood na produção de filmes classificados genericamente como escapistas. Estes, percebidos simplesmente como alienantes — segundo a ortodoxia mal-humorada de determinadas cartilhas e manuais —, também servem ao alívio de tensões e à recomposição da humanidade em segmentos marginalizados e brutalizados, relegados, no limite, à mais miserável das existências. Porém, até se convencer disso, o diretor de cinema John L. Lloyd "Sully" Sullivan (McCrea) passará por situações as mais insólitas, que partem do inusitadamente cômico ao intensamente dramático, avançando para o trágico.
O
título original — Sullivan's travels (Viagens de Sullivan) — alude em tom de brincadeira ao clássico livro Gulliver's travels
(Viagens de Gulliver) do inglês Jonathan Swift, publicado em 1726. O personagem vivido por Joel McCrea, tal qual
o de Swift, é lançado numa jornada de reconhecimento do mundo à sua volta,
povoado por seres e realidades totalmente desconhecidos. John Sullivan é
diretor hollywoodiano consagrado. Moldou a carreira realizando comédias
popularescas, de forte apelo entre as massas, que alegram principalmente os
produtores. Ele, porém, está frustrado, totalmente insatisfeito com o que faz.
Pretende realizar filmes sérios, engajados, com atenção voltada aos deserdados
sociais, à realidade obscura dos anônimos que vivem do trabalho duro ou que
estão abandonados ao infortúnio da miséria. Para a mudança de rumo, Sullivan já
tem um projeto em mente: adaptar o famoso romance O brother, where art thou?.
O momento vivido pelos Estados Unidos é oportuno à guinada. O país absorve os
efeitos da Depressão Econômica de 1929. Desemprego, pobreza e desesperança
estão em todo lugar. Sullivan sente vergonha, pois o cinema dá as costas a esta
realidade, preferindo a mundanidade e futilidade das existências vazias do
reino do faz de conta.
Diante
da pronta decisão do cineasta, os chefões do estúdio, Mr. LeBrand (Warwick) e Mr.
Hadrian (Hall), manifestam compreensível apreensão. Temem a diminuição dos
ganhos da empresa devido ao desvio de rota de seu diretor mais lucrativo. Conhecem
como ninguém os desejos do público e as questões concretas da indústria
cinematográfica. Contra-argumentam alegando que filmes realistas fracassam nas
bilheterias. Também invocam o parco conhecimento de Sullivan sobre a pobreza.
Ele, afinal, nasceu em berço esplêndido. Sempre foi milionário. "O que
você sabe sobre a realidade da vida e da pobreza; quando teve a necessidade de
esmolar, implorar por um prato de comida, buscar alimentação nas lixeiras?",
perguntam-lhe.
Convencido de que carece
de conhecimento empírico sobre o assunto, Sullivan resolve sair em campo, a
caráter, armado de vontade, cara e coragem. Atuará como um cientista social na
realização da mais sincera pesquisa participante. Entrará em contato, em
primeira mão, com o cidadão comum curtido nos percalços da existência. Cai na
estrada qual autêntico andarilho, em
andrajos, levando uma trouxa e apenas 10 centavos no bolso. Por segurança, a
identidade funcional vai oculta num dos sapatos.
Se os chefes não demoveram
Sullivan, seus perplexos criados não terão melhor sorte. Enquanto o camareiro
(Blore) se tranca no mutismo, aparentando pavor com a ideia, o fleumático
mordomo Burroughs (Greig) adianta sábias e preocupadas impressões. Teme pela
segurança do patrão e desconfia da relevância social da empreitada. Diante dos
andrajos usados por Sullivan, adianta, empertigado: "Nunca fui simpático
às caricaturas dos pobres e necessitados, Senhor!". O cineasta retruca.
Alega que não se trata de caricatura, mas de produção de conhecimento relevante
sobre a pobreza e a necessidade, com o propósito de gerar um filme sério e realista.
Cada vez mais cético, Burroughs contrapõe, como um Joãozinho Trinta avant la lettre: "Se me permite
opinar, Senhor, o tema não possui relevância alguma. Os pobres sabem tudo sobre
a pobreza e apenas ricos e teóricos, que são geralmente ricos, consideram o
assunto digno e glamouroso. Duvido que os pobres apreciem o seu esforço, Senhor.
Eles irão se ressentir da invasão de sua privacidade e com toda razão". E
prossegue, de forma premonitória: "Pessoas ricas como o Senhor pensam
sobre a pobreza negativamente, como falta de riquezas, da mesma forma como se a
doença pudesse ser falta de saúde. Mas não é, Senhor, em absoluto. A pobreza é
um estado, não é falta de coisa alguma. É uma praga real, virulenta, viciosa,
insidiosa, infecciosa. Deve ser mantida à distância, evitada, mesmo que
desperte interesses ao conhecimento".
Apesar da
desconfiança do mordomo, Sullivan vai em frente. Logo estará na
estrada, sentindo o desconforto de ser seguido, muito de perto, por estranha
comitiva. Afinal, os produtores não só estão preocupados com a segurança do
diretor como pretendem capitalizar sobre o empreendimento. Assim, enquanto o
constrangido cineasta avança pelo acostamento, um ônibus com equipe de filmagem,
assessoria de imprensa, unidade médica e cozinheiro o acompanham. Para se
livrar do incômodo, pega carona num tanque de guerra improvisado e sem freios,
pilotado por um garoto (Payne B. Johnson; não creditado), que avança desembestado a 120 milhas/hora. Dessa
forma, num clima de comédia rasgada, francamente pastelão, começa a aventura
propriamente dita de Contrastes humanos.
Num primeiro
momento, Sullivan, inexperiente, assemelha-se ao protagonista das
descompromissadas e tontas comédias que dirigiu. Tudo é idílio e diversão.
Tem-se uma visão alegre da suposta vida aventureira, livre, leve e solta dos
andarilhos, totalmente apartada das coerções sociais. De certa maneira, a
partir de um começo francamente cômico, pode-se dizer que ele empreenderá
trajeto semelhante ao de Dante em A divina comédia, descontada a inversão
de sentido. Nesse clássico do Renascimento literário italiano, parte-se do
Inferno ao Paraíso com escala no Purgatório. Contrastes humanos começa
metaforicamente no Paraíso — equivalente à comédia em Dante, pois sua obra
contraria o espírito da tragédia. Nesta, os personagens experimentam o fracasso
e terminam invariavelmente mal. Sullivan evolui da aventura cômica para as
colorações sombrias do purgatório da pobreza e do desemprego até experimentar o
pesadelo trágico da violência e cessação da liberdade. Tal qual Dante, também
terá a companhia de um Virgílio. Este, em A divina comédia, guiará o
protagonista pelas sendas do Inferno e do Purgatório. Mas devido às suas
origens pagãs não entrará no Paraíso. Sullivan terá como guia aquela que será
conhecida simplesmente como A Garota (Lake). Ela será o equivalente a Virgílio,
mas com pretensões a Beatriz. Auxiliará o cineasta a transitar do mundo louco e
desvairado da comédia para o purgatório do drama coalhado de deserdados sociais
que ele tanto quer conhecer. Mas não o acompanhará na queda à infernal estação
da mais abjeta miséria e negação da humanidade. Sullivan, por descuido e pelas
tramas do infortúnio, será largado praticamente só no terceiro e definitivo estágio
de provação e descoberta.
Após as primeiras
desventuras com o tanque improvisado e o ônibus do estúdio, Sullivan se livra
das intenções nada inocentes de Zeffie Kornheiser (Howard), alegre e carente viúva
que o empregou para cortar lenha em troca de comida. Ainda está nos limites de Hollywood
quando encontra A Garota numa lanchonete de beira de estrada. Era aspirante a atriz;
sonhava trabalhar com Ernst Lubitsch. Como nada conseguiu, pretende voltar à
casa paterna. Generosa, paga o lanche para o maltrapilho Sullivan. Feitas as
apresentações, não acredita estar diante de um cineasta famoso. Este, ainda por
cima, leva-a à sua luxuosa mansão. Apanha a limusine para facilitar a viagem da
moça. Mas a polícia desconfia do motorista em andrajos e os aprisiona. São
libertados graças à intervenção de Burroughs e Blore. Sullivan, ao interceder
pela Garota, termina brincando com um dos mais famosos clichês de Hollywood. "Onde
entra A Garota nesta história?", pergunta o policial. Sullivan responde: “Sempre
há uma garota na história. Qual é o problema, você não vai ao cinema?”.
Após breve temporada
na mansão, entre o bom e o melhor, Sullivan retorna à pesquisa, acompanhado da
Garota, também devidamente caracterizada. Juntam-se a outros andarilhos e embarcam
no vagão de um cargueiro. Mal conseguem disfarçar o amadorismo. Com isso, atraem o desprezo dos
mais experientes. Logo estarão famintos, sujos e mal cheirosos. Desembarcam
atabalhoadamente, com o trem em movimento, nos arredores de Las Vegas. Encontram
outra lanchonete e, por sorte, o ônibus da comitiva. Entregam-se por alguns
instantes às comodidades proporcionadas pelo veículo até se depararem, enfim,
de forma participativa, com a pobreza tão procurada.
Acima e abaixo: Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) na fartura do bom e do melhor após o início fracassado da expedição de conhecimento à pobreza |
Sullivan e A Garota
testemunham a vida ao relento e em casebres improvisados de papelão e
compensado. Enfrentam fila para conseguir comida distribuída por agências de
caridade. São infestados por pulgas. Frequentam banhos públicos; cultos
religiosos endereçados aos desesperançados; restaurantes comunitários; albergues
lotados e mal cheirosos. São roubados em seus parcos pertences, trabalham no
que podem e reviram latas de lixo em busca de comida. Todos os seus movimentos
são registrados pelos fotógrafos do estúdio. Em meio aos momentos cômicos,
Sturges obtém cenas fortes, chocantes e tocantes, praticamente silenciosas,
sobre a pobreza. São passagens raramente vistas em produções hollywoodianas,
captadas por uma câmera cirúrgica, sempre em movimento. O efeito
dessas imagens de privação extrema se torna mais poderoso se contrastado ao
luxo e a fartura da vida despreocupada levada por celebridades hollywoodianas,
como Sullivan.
Não demora para encerrarem
a provação. Suficientemente enfastiados e enojados com a dura realidade,
abandonam as latas de lixo e voltam correndo à mansão. Aparentemente, viram o
que era preciso. Tanto que o tocado e agradecido Sullivan resolve voltar
sozinho aos campos de pesquisa para distribuir cinco dólares, de um montante
considerável, a cada deserdado que encontrar. Descuidado, termina espancado, roubado,
desacordado e abandonado. Desperta cambaleante, num vagão em movimento. Agredido
pelo guarda-linha, revida com violência. É preso e julgado por tentativa de
assassinato. Desmemoriado em consequência dos golpes sofridos, é condenado a
seis anos de trabalhos forçados. Conhecerá enfim, o Inferno, o lado pior da
humanidade, feito de cerceamento à liberdade, arbitrariedade e violência. Na
prisão, Sullivan praticamente refaz a experiência de James Allen (Paul Mumi) em
O
fugitivo (I am a fugitive from a Chain Gang, 1932), de Mervyn LeRoy.
Nos primeiros momentos de Contrastes
humanos, Sullivan encontrava dificuldades para ultrapassar os limites
do seu mundo hollywoodiano. Algo como um alerta parecia prendê-lo a uma espécie
de destino manifesto, à realidade do faz de conta. Agora, a comédia e a
liberdade de escolha estão distantes. É prisioneiro sofrendo de amnésia, degradado,
achincalhado e brutalizado por carcereiros truculentos. O ladrão que
indiretamente o lançou nesta situação morreu sob um trem. A documentação de
Sullivan é encontrada junto aos irreconhecíveis restos do marginal. Por isso, todos
acreditam que o cineasta pereceu.
Evidentemente,
a memória é recuperada. Mas isso de nada servirá. Sullivan, conforme amplamente
divulgado, está morto e enterrado. Insistir que se trata de engano não adianta.
Só irrita o diretor do presídio (Alan Bridge), que o castiga no exíguo espaço
do "suadouro". Terminada a tortura, ele e os demais prisioneiros terão direito a
alguns momentos de prazer. Acorrentados, são conduzidos a um pobre templo
evangélico, de negros despossuídos, para assistir a alguns filmes.
Segue-se
uma sequência curta mas de memorável impacto. Enquanto a congregação entoa a tradicional
Let
my people go (ou Go down, Moses), surgem os
condenados, como espectros silenciosos. Cruzam acorrentados a paisagem
pantanosa. Adentram o templo sob o lancinante som dos grilhões arrastados e
tomam assento. Começa a exibição de um movimentado desenho animado da Disney
Productions,
repleto de nonsense, estrelado por
Mickey Mouse e Pluto[2].
Toda a plateia, sem exceção, explode em gargalhadas. O
atônito Sullivan, a princípio, não compreende como gente tão sofrida pode se
divertir com tantas e despropositadas tolices. Mas não demora para ele também entrar
no clima. O riso francamente liberado se apodera do ambiente. Parece gerar uma
epifania que devolve os condenados a um estado de humanidade do qual estavam há
muito afastados.
Nos momentos centralizados
pelo templo, Sturges, mais uma vez, explora territórios na maioria das vezes
estranhos a Hollywood. Há a humanização catártica dos prisioneiros e também o tratamento
respeitoso concedido aos negros, mostrados como seres perfeitamente normais ao contrário das figurações assustadas, de olhos esbugalhados, como tantas vezes foram
pintados. Tais cenas, com o tempo, perderam muito do seu efeito desbravador.
Mas, na época da realização, certamente funcionaram como bem-vindo sopro
revolucionário aos padrões estabilizados do cinema comercial americano. Prisioneiros
e negros, apartados das benesses dos direitos civis, mas estranhamente
irmanados pelo abrigo do templo e ao som de Let my people go, inscrevem
Contrastes
humanos entre os mais poderosos manifestos sociais conseguidos pelo
cinema.
Sullivan,
por sua vez, não encontrou o que pretendia. Mas adquiriu inesperada consciência
sobre o poder do riso. Sua pesquisa participante revelou, graças a Pluto e
Mickey, que pobres e miseráveis não querem se ver nas telas tais quais são. Ao
contrário. Almejam se emancipar desse estado, refugiando-se no universo do faz
de conta. É o meio, apesar de breve, que encontram para recompor suas vidas
fragmentadas. A comédia que Sulivan fazia e passara a abominar talvez não seja,
assim, tão irrelevante.
Contrastes
humanos, desde as cenas iniciais, é
dedicado “À
memória daqueles que nos fazem rir: saltimbancos, palhaços, bufões, em todas as
épocas e em todas as nações, cujos esforços diminuíram um pouco nosso fardo".
Após tantas desventuras, Sullivan compreendeu o sentido dessas palavras. Seu
filme eleva a comédia ao máximo patamar da nobreza, não importando o quão despretensiosa
e absurda seja.
Depois
de fazer as pazes com sua vocação e consigo mesmo, resta ao cineasta sair da prisão.
A esta altura, o recurso encontrado só poderia ser inusitadamente cômico.
Sullivan assume a responsabilidade pela morte de... Sullivan. Confessa que
assassinou o cineasta. A revelação chega aos jornais. A fotografia do suposto
criminoso é estampada nas primeiras páginas e gera comoção. Ele é reconhecido.
A Garota atuava num filme quando soube das novidades. Sai correndo pelo estúdio,
para espalhar a boa nova, num dos momentos mais divertidos do filme.
Livre, Sullivan
abandona as intenções de rodar O brother, where art thou? e qualquer outra pretensão de se
enveredar pela seara dos filmes sérios, realistas e dramáticos. Assume-se
como realizador de comédias. "Eu quero fazer as pessoas rirem. Pode não
ser muito, mas é tudo o que alguns têm neste mundo louco", afirma
taxativamente.
Contrastes humanos transita com
maestria por uma sucessão de gêneros os mais distintos, sem jamais deixar de
lado sua filiação à comédia. É documento social, musical, melodrama, policial,
manifesto político e tragédia. Sua execução é praticamente perfeita. É um dos
filmes mais equilibrados que há. Tal pode soar espantoso, dadas algumas
condições que presidiram a realização, dentre as quais o roteiro. Apesar de
previamente escrito, houve a necessidade de reajustá-lo às contingências dos quase
dois meses de filmagens em locações[3].
A peça era constantemente reescrita, fato que não só confirma o talento de
Preston Sturges como diretor e roteirista[4],
mas, também, o conhecimento de que dispunha sobre o método de realizar filmes
segundo os cânones do sistema de produção hollywoodiano.
Uma torrente de
piadas visuais e verbais perpassa Contrastes humanos. As primeiras predominam
principalmente nos momentos iniciais, francamente cômicos, e na fase do
purgatório. As demais marcam presença em todo o filme e contam com o auxílio de
alguns dos diálogos mais rápidos já escritos para a tela. Até parece que os
atores não tomam fôlego enquanto falam, de modo praticamente ininterrupto, em
tomadas sem cortes. O espectador necessitado de legendas para acompanhar a montanha
russa verbal de Contrastes humanos deverá ser consideravelmente fluente em
leitura, ou perderá muita coisa. Nesse quesito, pelas minhas lembranças, apenas
Jejum
de amor (His girl Friday, 1940), de Howard Hawks, se equipara ao filme
de Sturges.
Joel McCrea está
excelente. Sullivan é, certamente, a melhor interpretação de sua carreira.
Apresenta-se plenamente crível como milionário e vagabundo, pesquisador e
prisioneiro, personagem de comédia e tragédia que pagou preço muito alto pela
sua pretensão, a ponto de ser privado de quase tudo, exceto da capacidade de
rir. Veronica Lake, geralmente desvalorizada, tem em Contrastes humanos o seu melhor
momento nas telas. Sua personagem multifacetada equilibra estados de
frustração, diversão, graça, sensualidade, incredulidade, esperança, razão e
certeza. De certo modo, funciona como um espelho para o próprio Sullivan. No
entanto, se dependesse dos produtores, A Garota ficaria com Lucille Ball,
Claire Trevor, Ida Lupino, Betty Field ou Frances Farmer. Mas Veronica Lake
fora escolhida pessoalmente por Sturges. Diante de sua recusa em substituí-la
por talentos mais consolidados, a Paramount Pictures impôs prazo restrito para
as filmagens e fixou o orçamento da produção em exíguos 600 mil dólares.
A insistência do
diretor pela atriz logo seria explicada. Ambos ocultavam um relacionamento
amoroso. Lake, inclusive, engravidara de Sturges. Segundo consta, conseguiu
disfarçar a gestação até o sexto mês. Temia prejudicar o pai, casado, e a própria
produção do filme. Quando a situação se tornou insustentável, Lake tomou a
iniciativa de revelar o caso a Louise Tevis, esposa de Sturges. Rompido o
segredo, a figurinista-mor da Paramount, Edith Head, foi chamada para
confeccionar trajes largos, capazes de dissimular a gravidez da atriz.
Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) no início de aventura de conhecimento da pobreza |
Apesar de seus
estados de graça, McCrea e Lake não seguram sozinhos as interpretações de Contrastes
humanos. Uma farta e muito bem aproveitada constelação de atores
característicos como William Demarest, Dewey Robinson, Charles R. Moore, Esther
Howard, Frank Moran, Steve Forrest, Julius Tannen, Al Bridge, Franklin
Pangborn, Jimmy Conlin, Margaret Hayes, Esther Howard, Byron Foulger, Steve
Forrest, Roscoe Ates, Porter Hall, Robert Greig, Eric Blore, Margaret Hayes, Torben
Meyer, Robert Warwick, Almira Sessions e Robert Greig contribui decisivamente
para o brilho do filme.
No cinema americano,
Contrastes
humanos dá prosseguimento às trilhas abertas por King Vidor e Frank
Capra, pioneiros na revelação das contradições sociais americanas. Tal qual
seus predecessores, Sturges, ao mesmo tempo em que expõe a pobreza, não retira
dos pobres a dignidade e humanidade. Prova disso são as sequências em que Sullivan e A
Garota experimentam os estados do submundo bem como os momentos passados na
congregação dos negros. Contrastes humanos chega ao final
reafirmando a necessidade do riso como bem fundamental à preservação da
humanidade em meio aos extratos sociais largados às condições limites de
existência. Mas deixa a trava da amargura na consciência do espectador. Este dificilmente esquecerá as duras, tocantes e realistas cenas de pobreza,
privação e miséria tão bem documentadas por Preston Sturges.
Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) experimentam as provações da pobreza |
Quando do seu
lançamento, Contrastes humanos não chegou a fazer tanto sucesso. Mesmo
assim, graças à sensibilidade de alguns analistas, foi incluído entre os 10
filmes mais importantes de 1942 pela National Board of Review. Desde 1990 está
faz parte do rol do National Film Registry como produção merecedora de preservação.
Roteiro:
Preston Sturges. Produção associada:
Paul Jones. Produção executiva:
Buddy G. DeSylva (não creditado). Música
original: Charles Bradshaw, Leo Shuken. Música não original: Gerard Carbonara (não creditado), John Leipold
(não creditado), Joseph J. Lilley (não creditado), Albert Hay Malotte (não
creditado), Felix Mendelssohn-Bartholdy (não creditado), Ernst Toch (não
creditado), Victor Young (não creditado). Direção
de fotografia (preto-e-branco): John F. Seitz. Montagem: Stuart Gilmore. Produção
de elenco: Robert Mayo (não creditado). Direção de arte: Hans Dreier, A. Earl Hedrick. Figurinos: Edith Head. Maquiagem:
Wally Westmore, Hal Lierley (não creditado). Penteados: Merle Reeves (não creditada). Supervisão de penteados: Leonora Sabine (não creditada). Gerente de unidade de produção: Joseph
C. Youngerman (não creditado). Segundo
assistente de direção: Barton Adams (não creditado). Primeiro assistente de direção: Hollingsworth Morse (não
creditado). Assistente de direção:
Anthony Mann. Contrarregra: Robert
Goodstein (não creditado), Oscar Law (não creditado). Camareiro: Ray Moyer (não creditado). Gravação de som: Harry D. Mills, Walter Oberst, Grant Rymal (não
creditado). Operador de microfones:
George Ziegler (não creditado). Engenheiro
de som: Wallace Nogle (não creditado). Dublês:
Wesley Hopper (para Joel McCrea; não creditado), Cheryl Walker (para Veronica
Lake; não creditada), Allen Pomeroy (não creditado), John Sinclair (não
creditado). Animadores de Playfull Pluto (1934): Norman
Ferguson (não creditado), Dick Lundy (não creditado). Produtor de Playfull Pluto
(1934): Walt Disney (não creditado). Direção
de Playfull Pluto (1934): Burt
Gillett (não creditado). Processos
fotográficos: Farciot Edouart. Direção
musical: Sigmund Krumgold. Assistente
de roteiro: Ernst Laemmle. Guarda-roupa:
Clayton Brackett (masculino; não creditado), Hazel Hegarty. Assistente de câmera: Francis Burgess
(não creditado). Publicidade: Teet
Carle (não creditado). Escriturário:
Nesta Charles (não creditado). Eletricista-chefe:
Earl Crowell (não creditado). Secretária
de Preston Sturges: Edwin Gillette (não creditada). Assistentes de produção de elenco: Bill Greenwald (não creditado),
Bert McKay (não creditado), Alice Thomas (não creditada). Assistente de corte: Chandler House (não creditado). Gerente de locações: Norman Lacey (não
creditado). Mecânicos e ferramenteiros:
Walter McCloud (não creditado), George Ziegler (não creditado). Secretária da produção: Marie Morris
(não creditada). Fotografia de cena:
Talmadge Morrison (não creditado). Engenheiro
de palco: Wallace Nogle (não creditado). Segundo assistente de câmera: Otto Pierce (não creditado). Assistente de continuidade: Isabelle
Sullivan (não creditada). Eletricista:
James Tait (não creditado). Joalheria:
Eugene Joseff (não creditado). Sistema
de mixagem de som: Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 90 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 2003)
[1] Os filmes dirigidos
anteriormente por Sturges são: O homem que se vendeu (The
great McGinty, 1940), Natal em julho (Christmas in July, 1940)
e As
três noites de Eva (Lady Eve, 1941).
[2] Trata-se de Playfull
Pluto (1934), dirigido pelo não creditado Burt Gillett.
[3] Fato pouco comum às produções hollywoodianas de
então, quase sempre realizadas nos espaços controlados dos estúdios. cf.
HARPER, Amy. Biography for Preston Sturges. Disponível em <http://www.imdb.com/name/nm0002545/bio> Acessado em 24 jul. 2003.
[4] Preston Sturges se consagrou como roteirista antes de
se firmar na direção. Enquanto esteve em atividade, de 1930 a 1958, redigiu
mais de 40 guiões. Inicialmente, a comédia maluca foi o seu campo de batalha.
Cf. Ibidem.
Querido amigo Eugênio,parabéns p/ aniversário do blog.Que venha muito mais!!!Abraços
ResponderExcluirObrigado, querido Elias, caro divulgador e grande fotógrafo do cotidiano niteroiense.
ExcluirAbraços.
Oi, Eugênio! Esse clássico eu assisti na adolecência, no canal Showtime (substituído depois pela HBO). Me lembro como fiquei vidrado no filme, que começa cômico, torna-se dramático e volta a ser engraçado. O que seria um desastre em outras obras e para muitos diretores, aqui tudo flui natural e perfeitamente. Depois fiquei sabendo num livro do Peter Bogdanovich, que isso faz parte do estilo "Sturges" nos melhores filmes dele. Pena que eu só assistido este filme, e ainda só uma vez, deste diretor, que pensei "esse é craque, que domínio", ao final deste filmaço. Veronica Lake é injustamente esquecida hoje em dia, né? Ah, parabéns pelo aniversário do blog, que descobri recentemente, mas já é um dos meus preferidos. Abraço.
ResponderExcluirRobson
Vale muito a pena conhecer o, hoje, praticamente esquecido Preston Sturges, Robson. Além de "Contrastes humanos" merecem ser vistos "Natal em junho", "As três noites de Eva", "Papai por acaso", "Herói de mentira", "Trapalhadas do Haroldo", "Odeio-te, meu amor" e "Mulher de verdade".
ExcluirDe fato, poucos se recordam de Veronica Lake atualmente. Aliás, vivemos um período infeliz, dominado pelo esquecimento de muita coisa importante. Cada vez mais vale o efêmero, o imediato. Uma pena!
Abraços.
Olá Eugênio! Sempre topo com você no Google + e hoje resolvi conferir seu trabalho, estou maravilhado com o excelente material de pesquisa e apreciação! Parabéns atrasado pelo blog e se possível me visite: http://ocinematografo.blogspot.com.br/
ResponderExcluirAbraço!!!
Mais uma vez, muito obrigado, Emerson Silva. Não conhecia o seu blog (aliás, conheço muito pouco a respeito). Acabo de visitá-lo. Pelo visto, tenho muito a aprender com você. Também inscrevi-me como seu seguidor.
ExcluirAbraços.
*Tornei-me seguidor e vou indicar seu blog no Cinematógrafo!
ResponderExcluirObrigado, Emerson!
ExcluirAbraços.
Parabéns pelo excelente comentário /fotografias dos astros nesta postagem
ResponderExcluir