Luís Sérgio Person legou ao cinema brasileiro dois renomados
clássicos: o impecável São Paulo S.A. (1965) e o implacável
O
caso dos irmãos Naves (1967). Cassy Jones, o magnífico sedutor
(1971) irrompeu na sua filmografia em momento politicamente complicado aos engajados
realizadores nativos. A censura havia ampliado o raio de ação com o
endurecimento do regime militar após a decretação do AI-5. Aos cineastas, a
abordagem direta dos problemas nacionais deu lugar às encenações marcadamente
alegóricas, de linguagem cifrada, nem sempre compreendidas pelo público. Disso
é exemplo Cassy Jones, o magnífico sedutor. É, aparentemente, uma comédia
descompromissada que interage com as chanchadas da Atlântida, pornochanchadas,
os humorísticos da TV, o Teatro de Revista, Tropicalismo e a Jovem Guarda. Mas
suportou incólume a passagem dos anos? Como dialogou com as questões propostas
por sua época?
Cassy Jones, o magnífico sedutor
Direção:
Luís Sérgio Person
Produção:
Glauco Mirko Laurelli, Luís Sérgio
Person
Lauper Filmes
Brasil — 1971
Elenco:
Paulo José, Sandra Bréa, Sônia
Clara, Glauce Rocha, Hugo Bidet, Grande Otelo, Carlos Imperial, Gracinda Freire,
Suzana Gonçalves, Nilson Condé, Henriqueta Brieba, Ilva Niño, Lenoir
Bittencourt, Cláudio Ferreira, Mano Rodrigues, Tatiana Leskova, Patrícia.
O diretor Luís Sérgio Person |
A crueldade do
tempo é, às vezes, excessiva. Cassy Jones, o magnífico sedutor é a prova. Visto
hoje, 40 anos depois de realizado, parece não resistir à mais clemente mirada
crítica. Muito esforço é necessário para inseri-lo na época em que foi
produzido e, assim, tentar a apreciação devida para compreendê-lo
adequadamente. Como está datado! Por mais inacreditável que possa parecer ao
espectador de agora, é dirigido por Luís Sérgio Person, que lega à posteridade o
impecável São Paulo S.A. (1965) e o implacável O caso dos irmãos Naves (1967). O tempo
desafia todas as lógicas. Como entender, hoje, que Cassy Jones, o
magnífico sedutor tenha conquistado tantos prêmios? Mereceu o Kikito de Ouro para a Melhor Direção no Festival de
Gramado de 1973, quando também foi indicado a Melhor Filme. Nessa categoria, em
1974, recebeu o Troféu da Associação Paulista de Críticos de Arte. Do Instituto
Nacional do Cinema (INC), angariou, em 1972, o Prêmio Adicional de Qualidade e
o Coruja de Ouro para Carlos Imperial, autor da trilha musical. Semelhante ao
romano Cícero, poderia o espectador embatucado e perplexo, do início do século
XXI, também exclamar “O tempora, o mores”
diante de Cassy Jones, o magnífico sedutor.
O personagem do título é interpretado por Paulo José |
O filme é comédia
descompromissada. Como tal, envelheceu terrivelmente, da mesma maneira que
outras incursões cinematográficas pelo gênero, realizadas durante o período, ao
sul e ao norte do Equador. O fato de Person ter enveredado pela trilha cômica,
em detrimento das cruéis e precisas radiografias da realidade brasileira, deve
ter razões de ser. O abandono desses caminhos se dá gradativamente na carreira
do cineasta após O caso dos irmãos Naves. A mudança de
perspectiva é assinalada em Procissão dos mortos — episódio para a Trilogia do terror (1968), de Luís
Sérgio Person, José Mojica Marins e Ozualdo Candeias. O processo se acentua com Panca de valente (1968), flerte com o western. Quatro anos após, Cassy Jones, o magnífico sedutor propõe diálogo reverencial com a graça
das chanchadas da Atlântida, a alienação da pornochanchada, os humorísticos
produzidos pela TV da época, o Teatro de Revista, o Tropicalismo e a Jovem
Guarda. Vitimado por acidente de automóvel, o diretor falece em 1976. Consta
que pretendia realizar um filme com Roberto Carlos.
Razões políticas
fornecem a explicação da mudança, não apenas na carreira de Person mas de
outros colegas brasileiros. Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, envereda
por discurso cada vez mais alegórico como revelam El justiceiro (1967), Fome de amor (1968), Azyllo muito louco (1970), Como era gostoso o meu francês (1971) e Quem é beta? (1972), até se
reinventar com O amuleto de Ogum (1974). Glauber
Rocha, depois de O dragão da maldade contra o santo
guerreiro (1969), prossegue carreira no exterior com O leão de sete cabeças (Der leone have sept cabeças, 1970), Cabeças cortadas (Cabezas cortadas, 1970), História do Brasil (História do Brasil, 1973) e Claro (Claro, 1975). O endurecimento do regime militar em 1968, com a
imposição do AI-5, amplia os campos de ação da censura. No cinema, os alvos são
produções que abordam de forma explícita e direta as contradições da realidade
brasileira. A Luís Sérgio Person a alternativa significa refúgio no
sobrenatural de Trilogia do terror, no Oeste de araque
de Panca de valente e na inconsequência de Cassy Jones, o magnífico sedutor. O jeito é encontrar outros meios para
enviar recados ao público, ainda que cifrados, e convidá-lo à reflexão sobre o
país. Isso teria funcionado com Cassy Jones, o magnífico sedutor?
Paulo José (de camisa rosa) interpreta Cassy Jones |
Cassy Jones (José)
e Clara (Bréa) — personagens principais do filme — não guardam, apesar dos
nomes, semelhança alguma com o romance de Lima Barreto, Clara dos anjos. Na obra de Person, o personagem do título é um folgazão
que cumpre invejável sina de Casanova. “Mamãe passou açúcar em mim”, poderia ele
dizer a respeito de si mesmo. As mulheres caem em seu colo. Está sempre
acompanhado, “fazendo a gostosa brincadeira a dois”, para inveja e desespero do
amigo Bubu (Bidet), que nunca tem sorte em suas tentativas de conquista. Tudo é
fácil demais com Cassy Jones. Mas tanto sucesso começa a enfastiá-lo. Cansado
de tanta farra, imagina-se numa ilha deserta. Nem lá encontra sossego. Está
disposto a mudar de vida. Até o momento em que conhece Clara Mondal por meio de
um programa de TV. Herdeira rica e não emancipada, é protegida com rigor pela
mal-humorada Frida (Rocha). Além do mais, não tem e nunca teve namorado. É um
desafio novo para Cassy, que apronta planos os mais mirabolantes para conquistá-la.
Uma tentativa de assalto à casa da moça apressa a situação, quando Frida é
morta na troca de tiros entre o marginal e o guarda-noturno. Clara está livre.
Parte com Cassy. Porém, após a primeira noite, ela é ridicularizada e dispensada
ao propor uma união estável. Melhor para Bubu: ele atrai a rica herdeira e consegue
recursos para concretizar o tão acalentado sonho de formar uma companhia de
teatro de revista. Pior para Cassy, que termina rejeitado por todas as
mulheres.
Paulo José no papel de Cassy Jones e Hugo Bidet como Bubu |
Comédia de
situações pontuada de correrias, perseguições e equívocos, Cassy Jones, o magnífico sedutor é excessivamente dialogado. A cenografia de
cores fortes e quentes confere às imagens um visual kitsch e delirante, bem condizente com a época da realização. A
inconsequência e a inverossimilhança fornecem a tônica. Há profusão de malabarismos
de câmera, gerando efeitos pouco funcionais tomando por parâmetro o cinema atual.
Alusões fálicas saltam aos olhos, implícita e explicitamente, aproximando o
filme do universo das pornochanchadas. Em alguns momentos os delírios do
personagem identificam-no fisicamente com o Guido Anselmi interpretado por Marcelo
Mastroianni em Fellini 8 ½ (8 ½, 1963), de Federico Fellini. Muitas cenas e sequências de movimentação
acelerada lembram as comédias pastelão dos primórdios do cinema, em particular
o estadunidense.
O poder de atração de Cassy Jones (Paulo José): "Mamãe passou açúcar em mim" |
Na sala de embarque do aeroporto, Cassy Jones (Paulo José) tenta a reconquista de Clara (Sandra Bréa) |
Interessante é voltar
os olhos ao personagem principal depois de quatro décadas. É alguém que vive à
larga, curtindo os momentos, um de cada vez, sem maiores preocupações. Mora
bem, numa cobertura dotada de todas as comodidades. É o típico desbundado. Em seu
caminho não há agruras ou maiores dificuldades. Tem tudo o que quer. Em sua
alienação, Cassy Jones respira a atmosfera do Brasil Grande segundo a campanha
publicitária que marca a dura época do Governo Médici — período de combinação
da repressão política com o arbítrio e ampliação do consumo. Cassy pertence ao
Brasil que “vai pra frente”, conforme a canção interpretada por Os Incríveis, legitimadores
do regime com suas composições. Talvez, então, Luis Sérgio Person não tenha
realizado um filme tão alienado e descompromissado. Mesmo assim, é duro
assisti-lo, exceto pela juventude esfuziante de Paulo José.
Paulo José como Cassy Jones e Grande Otelo em simples figuração |
Clara (Sandra Bréa) e Cassy Jones (Paulo José) |
É a última
intepretação de Glauce Rocha no cinema, fulminada por ataque cardíaco quando
contava 40 anos, em 1971[1],
antes do lançamento do filme. A ela Cassy Jones, o magnífico sedutor[2], é ofertado,
inclusive a Isabel Miranda Person, Jorge Affonso Bouquet e Sérgio Porto —
“pessoas que souberam rir e viver”, segundo a dedicatória em tela.
Paulo José e Sandra Bréa nos respectivos papéis de Cassy Jones e Clara |
Roteiro e argumento: Joaquim Assis, Luís Sérgio Person. Música: Carlos Imperial. Direção de fotografia
(Eastmancolor): Oswaldo de Oliveira, Renato
Neumann. Montagem: Maria Guadalupe, Glauco
Mirko Laurelli. Assistência de
produção: P. Soares, Theodoro Pedroso, Walter Schilke. Patrocínio: Embrafilme. Gerência de produção: Luiz Pablo, Raul Araújo. Assistente
de direção:
Paulo Mamede. Continuidade: Helena Levier. Desenho de produção e coreografia: Edmundo Carijó,
Tatiana Leskova. Assistente de câmera:
Miro Reis. Eletricista-chefe: Jaime Neves. Maquinista: José Vieira. Técnicos de som: Victor Raposo, Júlio Calabar, Nelson Ribeiro. Assistente de montagem: Manoel Fernandes. Direção de arte: José Luiz Ripper. Assistente de direção de arte: Regina Jehá. Maquiagem: Gilberto Marques. Orquestração:
Leonardo Bruno. Tempo de exibição: 101
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2012)
[1] MILLARCH, Aramis. Glauce Rocha: o último ato de uma
atriz. Disponível em http://retrovamoslembrar.blogspot.com.br/2011/04/glauce-rocha-o-ultimo-ato-de-uma-atriz.html.
Acessado em 12 nov. 2012.
[2] Às vezes o prenome do personagem de Paulo José é
grafado com ‘i’ no lugar de ‘y’. O título da produção pode, então, aparecer
como Cassi Jones, o magnífico
sedutor. Dados da produção e registros
oficiais legitimam o uso do ‘y’.
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