domingo, 24 de novembro de 2013

A DISTOPIA DE TRUFFAUT ADAPTADA DE BRADBURY: LIVROS ARDEM A 451 GRAUS FAHRENHEIT!

Um ano após Jean-Luc Godard realizar Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965), François Truffaut também lançaria o espectador nas entranhas de uma distopia. Em geral avesso à ficção científica, o diretor não titubeou em levar às telas o romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451. É o filme mais controvertido de Truffaut, considerado por muitos como um passo em falso. Em futuro distante, numa sociedade sob regime totalitário, os livros — considerados perigosos à segurança nacional — são postos sob controle de brigadas incineradoras. A apreciação, escrita em 1975, é mais descritiva que analítica. Na época, creio, considerei que seria muito temerário arriscar abordagem mais profunda de um filme que me marcou tão profundamente. Ou o temor não passava de insegurança de um cinéfilo de apenas 19 anos, que encarava François Truffaut com a mais sacrossanta das reverências?






Fahrenheit 451
Fahrenheit 451

Direção:
François Truffaut
Produção:
Lewis M. Allen
Universal, Vineyard
Inglaterra — 1966
Elenco:
Julie Christie, Oskar Werner, Anton Diffring, Mark Lester, Cyril Cusack, Jeremy Spenser, Bee Duffell, Alex Scott, Michael Balfour, Anna Palk, Anne Bell, Caroline Hunt, David Glover, Gillian Lewis, Roma Milne, Noel Davis, Donald Pickering, Arthur Cox, Eric Mason, Michael Mindell, Chris William, Denis Gilmore, Fred Cox, Frank Cox, Judith Drinan, Yvonne Blake, Earl Younger, John Rae, Joan Francis, Tom Watson, Kevin Elder, Edward Kaye, Gillian Aldam.



O cineasta François Truffaut



Fahrenheit 451 – quinto longa-metragem de François Truffaut e nono título de sua filmografia – foi realizado dois anos após Um só pecado (La peau douce, 1964) e um ano antes de A noiva estava de preto (La mariée etait en noir, 1967).


É adaptação da novela de ficção científica de Ray Bradbury. Para muitos, é um tropeção na carreira do diretor. Não é verdade! Mas pode ser classificado como a mais incomum e paradoxal de suas realizações. Nunca mais Truffaut manifestaria visão tão pessimista, árida, fria e francamente marcada pela desumanização.


Mais que estranhamento, Truffaut sentia verdadeira repulsa por filmes e livros de ficção científica. Contra o gênero, segundo consta, escreveu artigo dos mais virulentos. Alegou gostar apenas de O monstro do ártico (The thing from another world, 1951), de Christian Nyby[1]. Talvez por ter Howard Hawks na produção, realizador de sua particular predileção ao lado de Alfred Hitchcock e Jean Renoir.



Bombeiros queimam livros em um tempo tingido por totalitarismo, pessimismo e alienação


Foi por recomendação do amigo Raoul Lévy que Truffaut chegou ao livro de Bradbury no começo dos anos 60. Gostou tanto que, de imediato, procurou o autor para lhe comprar os direitos de adaptação e conversar sobre a realização. Com esse exclusivo fim viajou a New York em 1962.


Fahrenheit 451, o filme, é ficção científica muito pessoal. Localiza a ação em futuro distante, num país de governo totalitário. São essas as únicas informações dadas ao espectador para a contextualização da história. A vida inteligente, a fruição intelectual e o prazer do conhecimento estão banidos de todos os setores da sociedade. Espaços e comportamentos foram padronizados. Ler não é permitido. Logicamente, não são admitidos livros e outros materiais escritos, considerados de alto risco à segurança nacional. Tais ameaças, quando surgem, são entregues aos cuidados da brigada incineradora, composta por bombeiros. Leitores são tratados como subversivos e podem, dependendo da gravidade do crime, receber punições como execração pública, prisão e morte. Apesar das analogias permitidas pelo tema, Truffaut desaconselhou qualquer identificação da sociedade imaginada de Fahrenheit 451 com as "democracias populares" do Leste Europeu.


Demonstração pública da atividade de incineração de livros


Fahrenheit 451 permitiu a Truffaut dar vazão a duas de suas mais caras obsessões: o amor aos livros e o fascínio pelo fogo. Quanto à última, alegou sem nenhum pudor que sempre vibrou com cenas de incêndio e se considerava um pouco incendiário. O título diz respeito à temperatura de combustão de uma folha de livro.


Aos apreciadores de ficção científica causa estranheza o fato de o roteiro de Truffaut e Jean-Louis Richard ter abolido qualquer traço de progresso tecnológico que identificasse a sociedade onde se passa a história como pertencente ao futuro. Nenhuma maravilha da ciência é mostrada. O tempo à frente é apenas sugerido por um décor extremamente asséptico e inquietante. No mais, tudo se parece ao mundo de hoje. Disso não escapa nem mesmo a música  que, nos filmes, geralmente, busca identificação — mesmo idealizada — com o tempo em que se passa a história. Os acordes melancólicos de Bernard Herrmann estão longe de qualquer associação aos temas da antecipação. Nesse ponto, Fahrenheit 451 apresenta nítida semelhança com Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution), ficção científica dirigida por Jean-Luc Godard em 1965.


Considerados subversivos, livros são procurados e incinerados 


Truffaut apresentou boas razões para abolir os elementos futuristas. Afirmou que os livros e seus autores sempre foram considerados inimigos do poder e, dessa forma, condenados às fogueiras reais e simbólicas. Todos os dias um livro é proibido em algum país. Fahrenheit 451 denuncia esses fatos. O futuro, no caso, é apenas a confirmação de uma tendência presente, de combate ao pensamento divergente, de guerra ao espírito crítico. Em realidades assim o indivíduo é absorvido pela massificação que força a robotização da sociedade. Sobra apenas o instinto de sobrevivência. Pela manutenção da ordem são banidos todos os movimentos em prol da valorização da vida interior, pois ameaçam o bem estar coletivo. Cessam todas as manifestações culturais.


Montag (Werner), bombeiro incinerador, é o "herói" da história. Não tem muita convicção sobre o caráter de utilidade pública da missão que desempenha. Um dia, na surdina, salva um livro da destruição. Em casa, começa a lê-lo. Fica encantado e absorvido com as novidades que descobre. Passa a faltar ao trabalho. A mudança de comportamento é visível. Levanta suspeitas na esposa Linda (Christie) e na corporação. É vigiado pelo colega Fabian (Diffring).



O incinerador Montag (Oskar Werner) adere à subversão
Passa ao salvamento e à leitura de livros, para insatisfação da esposa Linda (Julie Christie)


Perseguido, Montag foge e estabelece contato com um foco clandestino de resistência — a comunidade dos “homens-livros” à qual se incorpora. Cada membro do grupo é responsável pela memorização de todo um livro. Com a proximidade da morte o conteúdo memorizado é repassado a uma criança ou a um companheiro. Assim, a cultura é preservada e transmitida por meio de um processo que põe em contato duas tradições geralmente vistas como paradoxais: a oral e a escrita.


Linda (Christie) e Montag (Werner), o incinerador rebelado 


O tema da queima de livros é tão gritante que fala por si. O filme é a própria denúncia de fato tão ignóbil. Diante das cenas que mostram as labaredas envolvendo títulos os mais diversos, nada mais precisa ser dito. Principalmente quando a câmera se aproxima das chamas, permitindo ao espectador a identificação de exemplares de obras fundamentais. Por isso, Fahrenheit 451 não faz qualquer defesa da literatura, da cultura ou do saber. Cena alguma transmite mensagem de amor e respeito aos livros. A falta desse discurso a favor aumenta a secura da história, tornando-a mais contundente. Foi pensando nisso que Truffaut eliminou um dos personagens do original de Bradbury, o filósofo Faber. Suas falas, lamentando o destino dado aos livros, poderiam soar redundantes.




Acima e abaixo: Montag (Oskar Werner)  com a resistência, os "homens-livros" ou homens livres


Desde que realizou Os incompreendidos (Les 400 coups, 1959), Truffaut manifestava desejo de realizar um filme no qual os heróis fossem os livros. Cogitou adaptar o romance Bleu d’outre-tombe, de Jean-René Clot, integralmente ambientado numa sala de aula, entre crianças. Infelizmente, não houve como concretizar o projeto.


Truffaut não conseguiu viabilizar Fahrenheit 451 na França. Por isso, deslocou a produção para a Inglaterra. Amargou a experiência. Teve sérios problemas de relacionamento com técnicos e atores britânicos devido à obsessiva atração dos mesmos pela verossimilhança, pela reprodução fiel da realidade. As coisas se agravaram diante de uma história passada no futuro. Com Oskar Werner as relações se azedaram de fato. O ator  que atuou para Truffaut em Jules e Jim ‑ Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961)  trouxe para as filmagens ideias prontas sobre Montag. Não foram aceitas. A situação ficou tensa. Diretor e ator chegaram ao fim das filmagens sem se falar. Nessa altura, Truffaut instruía Werner intermediado por um dublê.



É inútil opôr resistência à incineração
Uma bibliófila é envolvida pelas chamas que devoram os seus livros

A princípio, Jean-Paul Belmondo faria o papel de Montag. Desistiu com a transferência da produção para a Inglaterra. Julie Christie interpreta duas personagens: a esposa de Montag e Clarisse, professora por quem o protagonista se apaixona.


As cenas de incêndio se revelaram perigosas. Na última, Truffaut e o operador de câmera saíram com os cabelos ligeiramente chamuscados.






Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, baseados em novela de Ray Bradbury. Direção de fotografia (Technicolor): Nicholas Roeg. Desenho de produção: Syd Cain, Tony Walton. Figurinos: Tony Walton. Montagem: Thom Noble. Música: Bernard Herrmann. Efeitos especiais: Les Bowie. Direção de arte: Syd Cain. Assistente de direção: Bryan Coates. Gerente de produção: Ian Lewis. Mixagem: Gordon K. McCallum. Som: Bob McPhee, Norman Wanstall. Maquiagem: Basil Newall. Tempo de exibição: 113 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)




[1] Howard Hawks tem participação não-creditada na direção.

4 comentários:

  1. Engraçado saber que o Truffaut não gostava de ficção. Logo ele que ficou marcado para o grande público como o professor Lacombe, seu papel em Contatos Imediatos do Terceiro Grau, do Spielberg. Aliás, dizem que apesar de interpretar o especialista em ufologia da trama, o Truffaut participou sem entender nada do que seu personagem fazia. Abraço. Robson

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    1. De fato, o Truffaut não compreendeu "Contatos imediatos do terceiro grau" por causa de sua dificuldade com o inglês mas também por estranhar toda a parafernália envolvida em uma superprodução. Mas, pelo que soube, Spielberg o escalou não apenas para atuar, mas também para auxiliá-lo na direção com o Cary Guffey, o garoto que interpreta Barry Guiler. Truffaut era um expert na direção de crianças.

      Abraços.

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  2. Foi o primeiro filme de Truffaut que vi, quando tinha quatorze anos, e cativou-me de imediato. Li o livro de Bradbury, que, para mim, é a melhor dentre as distopias, ao lado de "O Zero e o Infinito", de Arthur Koestler, e exprime, mais do que o problema do totalitarismo, o do crescimento de uma visão puramente utilitarista e imediatista, que põe tudo o que provoque reflexão na conta de algo deletério, porque quem reflete, tem dúvidas, e quem tem dúvidas, hesita, não é pronto na obediência.

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    1. Olá, Ricardo;

      Diante do que você pôs em seu comunicado, dá para ver o quanto permanece atual o filme de Truffaut e o livro de Bradbury que o originou. Os tempos presentes, mais que nunca estão imersos na racionalidade "puramente utilitarista e imediatista, que põe tudo o que provoque reflexão na conta de algo deletério", como bem destacou. Estamos cada vez mais imersos no tempo da racionalidade instrumental, como diriam os frankfurtianos, principalmente os da origem: Horkheimer e Adorno. Desgraçadamente, ainda não li O ZERO E O INFINITO. Igual a você, também fui apresentando ao cinema de François Truffaut via FAHRENHEIT 451.

      Grande abraço.

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