domingo, 8 de setembro de 2013

O BALANÇO DOS ANOS 60 E DO SONHO AMERICANO POR ARTHUR PENN

Amigos para sempre (Four friends/Georgia's friends, 1982) é o décimo-primeiro filme de Arthur Penn, um dos cineastas que melhor captaram a essência da América, da conquista do Oeste aos dias atuais. Seus temas tratam de indivíduo, racismo, violência, exclusão social, conservadorismo sulista, contestação e esperança. Amigos para sempre acompanha a trajetória de sonhos e desilusões de quatro amigos ao longo dos libertários anos 60. Pelos olhos e ações de Danilo, David, Tom e Georgia, o diretor confronta criticamente os limites do mito da terra das oportunidades que sustenta e embala os Estados Unidos. Em seu balanço, valoriza o potencial regenerador da amizade como forma de resistência ao alto preço cobrado pelo ajuste à realidade, quando os sonhos envelhecem ou chegam ao fim. A apreciação a seguir é de 1983.







Amigos para sempre
Four friends/Georgia’s friends

Direção:
Arthur Penn
Produção:
Gene Lasko, Arthur Penn
Cinema 77, Filmways Pictures, Florin, Geria Productions, Capital B Entertainment Corporation, 20th. Century-Fox
EUA — 1982
Elenco:
Graig Wasson, Jodi Thelen, Jim Metzler, Michael Huddleston, Louis Smith, Reed Birney, Scott Hardt, Elizabeth Lawrence, Miklos Simon, Michael Kovacs, Beatrice Fredman, Pier Calabria, Zaid Farid, David Graf, Felix Shuman, George Womack, Todd Isaacson, Sharon Kemp, Harlan Hogan, Elizabeth Goldstein, Natalija Nogulich, Branko Vasich, Ruzica Markovici, Petrea Burchard, Paul Greco, James Maxwell, Mercedes Ruehl, Ramiro Carrillo, Glenne Headly, Julia Murray, Dick Sollenberger, James Leo Herlihy, Brandon Green, William Salatich, Nga Bich Thi Duong, Thu Anh Ly Nguyen, Linh Thanh Ly Nguyen, Alice Elliott, Epicycle, Sar Planina Band, Helen Nogulich.



O diretor Arthur Penn (1922 - 2010)


Danilo Prozor (Wasson, adulto; Hardt, criança), iugoslavo, tem cerca de 13 anos ao chegar aos Estados Unidos, acompanhado da mãe (Lawrence), em meados da década de 50. Na estação ferroviária de Gary, Indiana, reencontra o pai (Simon), operário de siderurgia emigrado 9 anos antes. O senhor Prozor é homem duro, amargo e bruto. Perdeu, em meio ao calor das forjas, a capacidade de sorrir e extravasar emoções. Danilo testemunha, ao crescer, a paulatina desumanização do pai, cujo rosto pétreo desmente cabalmente o mito da “terra das oportunidades” que sustenta os Estados Unidos da América. O velho Prozor, como muitos, emigrou acreditando piamente nessa utopia. Mas encontrou uma realidade de muito trabalho e poucas compensações.


Apesar das mensagens profundamente talhadas no rosto do pai, Danilo acredita no sonho americano. Embalado pelos signos da esperança expressados pelo mito, faz da Sinfonia do novo mundo, de Dvorak, o hino que o impulsiona. Confiante, adentra os anos 60. Termina o colegial consolidando sólida amizade com os colegas David (Huddleston), Tom (Metzler) e Georgia (Thelen).



Georgia (Jodi Thelen) e seus amigos - a partir da esquerda, David (Michael Huddleston), Danilo (Graig Wasson) e Tom (Jim Metzler)


Georgia, o centro do grupo, é bem acabada síntese do espírito libertário que atravessou a década. Nasceu no dia em que é lembrada a morte de Isadora Duncan, a dançarina que, em seu tempo, notabilizou-se pelo enfrentamento de tabus e preconceitos. Desprendida, irreverente, generosa, solidária, adepta do amor livre, do movimento hippie e da contestação, pretende ser a nova Isadora. Seu comportamento inspira o grupo de amigos e inscreve na belíssima e nostálgica trilha musical do filme outro significativo comentário, o blue de Hoagy Carmichael e Stuart Correll, Georgia on my mind, imortalizado na voz de Ray Charles e que será uma espécie de motivo condutor da história. Mas Georgia também choca com o seu modo de ser, a ponto de Danilo lhe recusar o pedido de partilhar com ela a primeira noite de amor de ambos. Crente convicto nas potencialidades do sonho americano, ele se emociona sempre que ouve o hino nacional. Segue para a universidade, tentando manter acesa a esperança que o impulsiona. David, descendente de judeus, gordo e calvo, não alimenta tantas ilusões quanto ao futuro. Seu caminho já foi estabelecido pela comunidade de pertencimento. Herdará do pai a atividade de agente funerário. É ele, ainda nas cenas iniciais, que tece um comentário acerca da inutilidade de se desafiar o determinismo do código genético e os limites dados pelas tradições. Tom, convocado para a Guerra do Vietnã, é o primeiro a ser torpedeado pela realidade. Terá um filho com Georgia, sugestivamente batizado como Isador Duncan. Mas ela se casa com David. Depois, “cairá na estrada” em busca de sua porção Isadora.


Arthur Penn é cineasta de poucos filmes. Dirigiu 11 títulos até o momento: Um de nós morrerá (The left handed gun, 1958), O milagre de Anna Sullivan (The miracle worker, 1962), Mickey One (Mickey One, 1965), Caçada humana (The chase, 1966), Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), Deixem-nos viver (Alice’s restaurant, 1969), O pequeno grande homem (Little big man, 1970), Visões de oito mestres (Visions of eight, 1974), Um lance no escuro (Night moves, 1975), Duelo de gigantes (Missouri breaks, 1976) e Amigos para sempre, baseado em roteiro autobiográfico de Steven Tesich, descendente de operários estadunidenses de origem iugoslava. Excetuando-se Visões de oito mestres  documentário episódico de realização coletiva  e Duelo de gigantes   equivocado e arrastado big western estrelado por Marlon Brando e Jack Nicholson  o somatório de realizações de Penn é dos mais vigorosos e consistentes.


Pode-se dizer que em todos os seus filmes o diretor propõe um inventário da trajetória americana, passando pela conquista do Oeste aos dias atuais. Seus temas abordam questões que falam de indivíduo, racismo, violência, exclusão social, conservadorismo sulista, contestação, esperança etc. Amigos para sempre é o parecer do cineasta sobre os anos 60. Porém, a ele não interessa captar a década priorizando o período naquilo que nos legou de mais significativo e envolvente. Tudo está lá, evidentemente, mas como pano de fundo à encenação do ponto de vista de quatro pessoas comuns, desprovidas de maiores qualificações, tipos que frequentemente se confundem com a numerosa massa anônima cujas trajetórias são relegadas aos bastidores que conduzem ao esquecimento da História. Amigos para sempre apanha os anos 60 pelos anseios e pulsações de quatro dignos representantes da maioria silenciosa. Participaram, realizaram, sofreram, sonharam, protestaram, mas não deixaram marcas visíveis de sua presença. Fazem parte daqueles que tiveram a efemeridade e a insignificância revelada pela implacabilidade do tempo.



Tom (Jim Metzler), David (Michael Huddleston) e Danilo (Graig Wasson)

Georgia (Jodi Thelen), o centro das atenções


Georgia habitou os mais belos sonhos e fantasias da época, sempre transbordando generosidade e vitalidade. É particularmente bela e tocante a sequência em que se entrega ao aleijado Louie (Birney), proporcionando-lhe inesquecíveis — ainda que fugazes — instantes de felicidade. Mas antes do fim da jornada, verá a impossibilidade de se transformar em outra Isadora Duncan. Ela mesma se obriga a um balanço crítico. Constata amargamente que o tempo passou: os cabelos estão embranquecendo junto com a crescente convicção de que falta consistência a muitas experiências que viveu e defendeu. “Estou cansada de ser jovem”, acentua Georgia ao final do filme. É outra versão para uma sentença real e mais famosa: “O sonho acabou”. Com um filho para cuidar, a personagem se inclina por Danilo, apesar de todos os desencontros que tiveram.


Georgia (Jodi Thelen)


Danilo refaz de outra maneira a trajetória do pai. Após as desilusões na perseguição do sonho, conforma-se aos imperativos da realidade. Passa da universidade ao calor da siderurgia e ao volante de um táxi. Termina como professor. Perceberá que, para ascender, não basta querer e procurar. Antes, é fundamental o aval dos membros do seleto grupo que controla as chaves da comunicação da realidade com o sonho. Seus intentos serão duramente barrados. Por pouco não é consumido nas chamas da frustração e do ressentimento, como o velho Prozor. Este retorna à terra natal, deixando para trás uma América que nunca lhe sorriu.




Acima e abaixo: Danilo (Graig Wasson) na despedida aos pais (Elizabeth Lawrence e Miklos Simon)


David — que muito antes alertara os amigos sobre a inutilidade de se desafiar cromossomos e tradições — cedo se ajustou à realidade. Envolveu-se brevemente com os sonhos de Georgia. Como agente funerário, prepara o sepultamento de muitos com os quais conviveu. Com Tom aconteceu praticamente o mesmo. O preço de sua adequação foi a participação na Guerra do Sudeste Asiático, de onde retornou convenientemente marcado: casado com uma vietnamita, que lhe deu duas filhas.


Uma das características mais transparentes de Amigos para sempre  que confere ao filme o nível de excelência  é o carinho franco manifestado por Penn aos personagens. São pessoas reais, frágeis e vulneráveis. O cineasta não tenta julgá-las, somente compreendê-las. Dessa opção brota a força dessa realização despojada, de imagens simples, mas extremamente generosas e sinceras.



À esquerda, os pais (Elizabeth Lawrence e Miklos Simon) de Danilo (Graig Wasson) no infeliz casamento do filho com Adrienne (Julia Murray)

Danilo (Graig Wasson), à direita, com o amigo Louie (Reed Birney)


Por outro lado, Amigos para sempre acredita na capacidade redentora dos relacionamentos. Volta e meia, apesar de tantas modificações, desencontros, tragédias e desilusões, os personagens se reencontram e fazem balanços de suas vidas. Valoriza o potencial regenerador da amizade. A manutenção do laço fraterno talvez seja, de fato, o maior dos sonhos, em qualquer tempo e lugar.






Roteiro: Steven Tesich. Desenho de produção: David Chapman. Música e direção musical: Elizabeth Swados. Edição musical: Norman Hollyn. Direção de fotografia (Technicolor): Ghislain Cloquet. Supervisão da edição de som: Stan Bochner. Produção da mixagem de som: Nathan Boxer, Ray Cymoszinski. Assistentes da edição de som: Paul Cavagnero, Janet Conn, Robert Hein, Richard Nord, Fredric D. Rosenberg, Tracey Smith. Edição de som: Anthony J. Ciccolini III, Neil L. Kaufman, Dan Lieberstein. Gravação de som: Lee Dichter. Edição da combinação de sons: Harriet Fidlow. Cabos: Daniel Gianneschi. Produção de elenco em Chicago: Jane Alderman. Produção executiva: Michael Tolan, Julia Miles. Gerente de unidade de produção: Stephen F. Kesten. Primeiro assistente de direção: Cheryl Downey. Segundo assistente de direção: Steven Franz. Segundo assistente de direção em Nova York: Joseph P. Reidy. Assistente para a produção: Pamela Adler. Coreografia: Julie Arenal. Direção de segunda unidade: Gene Lasko. Supervisão de script: Nancy Hopton. Operador de câmera: Ricky Bravo Sr. Contra-regra: Michael Bird, Aaron Holden, Danny Robert, Kenneth Vogt. Direção de arte: Dick Hughes. Decoração: Robert Drumheller, David Weinman, Morris Weinman, Camareiros: Philip Contursi, Dominic Contursi, Timothy W. Tiedje, David Weinman, Morris Weinman. Carpintaria: Kenneth J. Gagnon Jr., David Johnson, Edward Swanson. Arte cênica: Pamela Garrett, Joseph C. Nieminski, Richard A. Ventre. Coordenação de construções: James Halligan. Mecânico de construções: Robert Miller. Efeitos especiais: Al Griswold. Maquiagem: Vincent Gallaghan. Penteados: Anthony Cortino, Dee Crededio. Figurinos: Patricia Norris. Montagem: Barry Malkin, Marc Laub. Consultor de Technicolor: Otto Paoloni. Produção associada: Steven F. Kesten. Trilha musical: Georgia on my mind (Hoagy Carmichael, Stuart Correll), com Ray Charles; Theme from Bonanza (Jay Livingston, Ray Evans); Hit the road Jack (David Mayfield); Shop around (Berry Gordy Jr., William Smoley Robins), Blue moon (Richard Rodgers, Lorenz Hart), com The Marcels; The third man theme (Anton Karas), com Guy Lombardo; Rico vacilon (Rozando Ruiz), com Arthur Murray Orchestra, conduzida por Ray Carter; Mr. Blah-Blah, de e com Ray Barretto; La moderna (Gilbert Lopez), com Ray Barretto; Please let me prove (Jimmy Key), com Dave Dudley. Dubles: Colette Alexander, Gene Hartline, Brett Smrz, Victoria Vanderkloot. Contabilidade: Lucille Baumann. Operador geral: Edward Auksel. Assistente de contabilidade: Debbie Reichig. Assistente para a produção executiva: Nadja Tesich. Assistente da sala de montagem: John David Coles. Assistente de coreografia: Rachel Ticotin. Assistente de guarda-roupa: Jay Hurley. Assistentes de montagem: Dorian Harris, Glenn Cunningham. Assistentes de produção: Vebe Borge, Kay Clifford, Barry Foy, Bill Higgins, Sondra Horton, Matthew Penn, Suzana Peric, Wendy Tannenbaum, Urban “Spark” Ullman, Marcus Viscidi. Associado à montagem: Jeffrey Wolf. Boy da eletricidade: Vincent Delaney. Boy da mecânica: Jack Kennedy. Chefe do laboratório de arte: Danny Miller. Consultor de cor: Otto Paoloni. Continuidade: Nancy Hopton. Coordenação do escritório de produção: Eileen Eichenstein. Eletricista-chefe: Charles Meere. Eletricistas: Eugene F. Crededio, John D. Crededio, William Dambra, Robert Dolan, Tom Ford. Executivo musical: George Avakian. Fotografia de cena: James Zenk. Gerente de locações: June Rachel Guterman. Gerente de operações: James E. Foote. Gerente de unidade de produção em Nova York: Steven Felder. Guarda-roupa feminino: Melissa Franz. Guarda-roupa masculino: Patrick R. Norris. Mecânica: Peter J. Donoghue, James V. Gartland, Thomas Lewis, Robert McLain. Mecânico da dolly: Tom Prate. Operador de steadicam: Garrett Brown. Operadores de câmera: Frank Miller, Hal Schullman. Orquestração adicional: Carolyn Dutton. Primeiro assistente de câmera: James Blanford. Produção de elenco extra: Lisa Clarkson. Publicidade: Ann Guerin. Segundo assistente de câmera: Ricky Bravo. Supervisão musical: Norman Hollyn.Coordenação de dubles: Harry Madsen. Companhia de efeitos especiais: Sturm's Special Effects International. Tempo de exibição: 115 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1983)

2 comentários:

  1. Eu lembro de quando vi este filme. À época, cursava o segundo grau, julgava-me conhecedor da "medida natural do certo e do errado, do Bem e do Mal", e confesso que, então, fiquei algo chocado com o universo do filme, em que o todo certinho Danilo ficava numa posição de um verdadeiro "pato" em relação à liberadíssima Georgia, em que esta lutava por se tornar - sem consegui-lo inteiramente - "um diabinho", bem como com a abordagem de um mundo absolutamente viciado na alta sociedade norte-americana, quando Danilo tenta casar-se com a filha de um milionário, num evento que termina tragicamente. O que me encantara, então, fora a presença do segundo e do quarto movimentos da 9ª Sinfonia em mi menor, de Dvorak. Embora já tenham passado mais de trinta anos que vi este filme, tenho-o bem presente na memória e, com algum conhecimento a mais e muitas certezas a menos, considero adequada a análise feita pelo Eugênio. Eu não chegava a ver Georgia como uma mulher generosa, mas, pelo contrário, como a expressão daquele egoísmo infantil, que não tem propriamente maldade, mas faz com que aquele que dele é acometido se julgue o mundo.

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    1. Olá, Ricardo Antônio Lucas Camargo;
      Ainda tenho vivas recordações da primeira vez em que vi este filme: abril de 1983. Cine Roxy, de Belo Horizonte. Na ocasião, estava acompanhado de um grupo de amigos, felizes e otimistas, todos ainda sob o efeito da recente formatura. Pensávamos, ingenuamente, que o mundo nos pertencia. O período convidava mesmo ao otimismo. Terminando o filme, nossas faces estavam inundadas de lágrimas e o silêncio nos acompanhou durante um bom tempo. De repente, "Amigos para sempre" pareceu nos devolver à dura realidade.

      Abraços

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