domingo, 1 de setembro de 2013

MIZOGUCHI E A FRAGILIDADE DA EXISTÊNCIA NO MUNDO DOMINADO PELO MAL

Kenji Mizoguchi é um dos expoentes do cinema japonês. Dele o cinéfilo antenado provavelmente viu Oharu, a vida de uma cortesã (Saikaku ichidai onna, 1952), Contos da lua vaga depois da chuva (Ugetsu monogatari, 1953), A mulher infame (Uwasa no onna, 1954) e Os amantes crucificados (Chikamatsu monogatari, 1954). O diretor é conhecido por sua preocupação com a condição humana e pela abordagem da subalternidade da mulher na cultura japonesa. O intendente Sansho (Sansho dayu, 1954) valoriza essas temáticas. Ao acompanhar a saga de três personagens desafortunados numa realidade governada pelo Mal, Mizoguchi parece perguntar: como lutar por justiça e, ao mesmo tempo, preservar valores que dizem respeito à honra e integridade moral quando a instabilidade provoca a dissolução de tudo aquilo em que se acredita? Haverá resposta definitiva a esses problemas? Também é uma realização de elaborada concepção plástica, que se comunica diretamente aos sentidos do espectador.








O Intendente Sansho
Sansho dayu

Direção:
Kenji Mizoguchi
Produção:
Masaichi Nagata
Daiei
Japão — 1954
Elenco:
Kinuyo Tanaka, Yoshiaki Hanayagi, Kyôko Kagawa, Akitake Kono, Eitaro Shindo, Masahiko Kato, Keiko Enami, Chieko Naniwa, Masao Shimizu, Ken Mitsuda, Kazukimi Okuni, Yoko Kosono, Noriko Tachibana, Ichiro Sugai, Teruko Omi, Bontaro Akemi, Kikue Mori, Ryosuke Kagawa, Kanji Koshiba, Shinobu Araki, Reiko Kongo, Shozo Nanbu, Ryonosuke Azuma, Saburo Date, Sumao Ishihara, Ichiro Amano, Yukio Horikita, Hachiro Okuni, Jun Fujikawa, Akiyoshi Kikuno, Soji Shibata, Akira Shimizu, Goro Nakanishi.



O diretor Kenji Mizoguchi


A década de 50 é decisiva para a carreira de Kenji Mizoguchi, principalmente em termos de reconhecimento internacional. O cineasta atinge, no período, o pleno domínio da linguagem cinematográfica. Depura estilo narrativo próprio, que lhe garante lugar cativo entre os mestres da tela. O Ocidente lhe reconhece o talento ao descobri-lo nos festivais de cinema de Veneza, onde consegue o ineditismo de ser agraciado por três anos consecutivos, seja com o Prêmio Especial do Júri ou o Leão de Prata de São Marcos. A primeira premiação é em 1952, para Oharu, a vida de uma cortesã (Saikaku ichidai onna)[1]. Em 1953[2] chega a vez de Contos da lua vaga depois da chuva (Ugetsu monogatari)[3] — para muitos a maior das obras-primas do cineasta. O intendente Sansho recebe as láureas de 1954[4], mesmo ano em que Mizoguchi logra duas outras peças de mestre: A mulher infame (Uwasa no onna) e Os amantes crucificados (Chikamatsu monogatari).


Desafortunadamente o cineasta não completa a década de 50. Morre em 1956, aos 58 anos, vitimado pela leucemia. Deixa filmografia de aproximadamente 100 títulos, desde Ai ni yomigaeru (1922) a Osaka monogatari (1957). Entre seus temas está a constante preocupação com a condição do Homem. É humanista sensível e consciencioso. Mas dirige à oprimida mulher japonesa — não importa de qual época e estrato social — a mais carinhosa das atenções. Retrata-a sempre como a mais sublime das criaturas, afogada num mundo essencialmente masculino, povoado de vozes fortes, ríspidas e gritadas  típicas de quem comanda , onde ganham sentido ações e tradições guerreiras. Ao feminino resta reduzido e silencioso espaço de expressão, contraposto aos signos másculos por meio dos códigos do sofrimento, do amor e do sacrifício. Não se trata de idealização de Mizoguchi. É o dado concreto de uma realidade vivenciada de perto, ainda criança, que o marca para toda a vida. Viu Suzu, irmã mais velha, vendida pelo pai a uma casa de gueixas — costume do Japão “profundo” que perdurou há até bem pouco tempo. Essa experiência familiar Mizoguchi sempre recriou em seus filmes, de uma forma ou outra: as mulheres, sujeitas ao despotismo masculino, são escravas, mendigas, prostitutas ou simplesmente senhoras. Em todas Mizoguchi vislumbra Suzu, responsável por sua criação após a morte da mãe.


Provavelmente é em Oharu, a vida de uma cortesã que Mizoguchi expõe de forma mais aguda a situação da mulher na sociedade japonesa. Oharu, vendida pelo pai à prostituição, torna-se cortesã e enfrenta vida de muitas tribulações. Ao envelhecer, é abandonada pobre e enferma. Vagueia às tontas, esmolando e buscando o filho que teve com um antigo senhor.


Apesar da temática masculina, o universo feminino não deixa de ocupar lugar de destaque em O intendente Sansho. As mulheres  e suas atitudes de sacrifício  são responsáveis pela regeneração de Zushio (Kato, na juventude; Hanayagi, adulto), personagem central. O roteiro — baseado em romance de Ogai More, um dos mais renomados escritores da Era Meiji — desenvolve história ambientada no Japão medieval, ao fim do conturbado período Heian, no século XI. Fuji Yashiro, primeiro roteirista, foi extremamente fiel ao original. Mas Mizoguchi não gostou da adaptação, na qual crianças eram personagens centrais. Queria a história protagonizada por adultos. Yoshikata Yoda assumiu a tarefa de adequar o roteiro aos padrões exigidos. Porém, manteve de Yashiro as cenas iniciais até o salto narrativo de dez anos. Daí em diante, com Zushio e sua irmã Anju (Enami, quanto jovem; Kagawa, adulta), o roteiro é totalmente de Yoda. Além de adaptar o romance, foi instruído por Mizoguchi a pesquisar a função social e econômica da escravidão no período histórico retratado[5].


Zushio e Anju são filhos de Masauji Taira (Shimizu), bom e justo governador provincial. Por reconhecer a dignidade e humanidade de camponeses e escravos, cai em desgraça perante a nobreza. É deposto e exilado. Numa era de convulsão social, dominada pelo banditismo e tráfico de homens, Masauji Taira sempre manteve a fé no humanismo. Pouco antes dos trágicos acontecimentos que reordenaram a vida da família, dizia ao filho: “Homem sem caridade não é homem. Seja caridoso com todos. Os homens são iguais, todos merecem a felicidade”.


A instabilidade política e militar obriga Taira a uma operação arriscada: enviar a mulher Tamaki (Tanaka) e os filhos, acompanhados apenas da governanta Ubutake (Naniwa), a uma jornada a pé, por regiões perigosas, até a mais segura Yashiro. Terminam aprisionados por mercadores de escravos. Separados da mãe, Zushio e Anju são levados a Tango e vendidos ao Intendente Sansho (Shindo), Ministro da Dieta e maioral da localidade, cruel senhor de terras e homens. Tamaki é conduzida à ilha de Sado e obrigada à vida de cortesã. Ubutake, que a acompanhava no mesmo barco, prefere o suicídio e se atira na correnteza.


Ubutake (Chieko Naniwa), o jovem Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka) e a jovem Anju (Keiko Enami)


O jovem  Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka), a jovem Anju (Keiko Enami) e Ubutake (Chieko Naniwa)


Reduzidos a escórias, Anju e Zushio têm os nomes trocados para Shinobu e Mutso. Arrastam-se ao longo de 10 anos numa vida de pura obrigação. Esse tempo provocou a desumanização de Zushio. Tanto sofrimento acarretou no esquecimento dos ensinamentos paternos. Tornou-se um escravo endurecido, que goza da confiança de Sansho na vigilância e castigo dos companheiros de infortúnio.


Anju, por sua vez, não perdeu a inocência e as lembranças. Traz viva a imagem da mãe. Apega-se aos cantos e às lições que aprendeu. Ouve de escrava recém-chegada de Sado uma canção familiar. Fica sabendo que era entoada pela cortesã Nakagimi, cujo tendão foi cortado por tentar escapar de seu senhor.


Anju tenta, inutilmente, convencer Zushio de que a mãe ainda vive. Ao acompanhar o irmão — escalado para abandonar nas montanhas uma escrava moribunda, repetem inconscientemente um gesto do passado e que fora interrompido pelo canto chamativo da mãe. Novamente ouvem a mesma canção, modulada em muitas variações. A misteriosa voz devolve a Zushio a humanidade perdida. Contando com a confiança do guarda e ajuda da irmã, foge. Leva consigo a escrava quase morta. Abrigam-se num templo budista.


Os adultos Zushio (Yoshiaki Hanayagi) e Anju (Kyôko Kagawa) ante uma escrava à beira da morte


Anju, chamada a explicar o paradeiro do irmão, escapa para retardar os perseguidores. Sem chances de sucesso e temendo o pior, caminha decidida rumo às águas em remanso de um rio e desaparece lentamente — uma cena que é, certamente, das mais belas do cinema.


Autoimolação de Anju (Kyôko Kagawa)


Desconhecendo o sacrifício da irmã, Zushio busca o governador local em Kyoto, levando-lhe carta de apresentação assinada pelos sacerdotes budistas. Vencidas as dificuldades, é recebido e consegue provar suas origens nobres. Termina nomeado para a governadoria de Tango, sede do poder de Sansho. Antes de assumir o posto, visita o túmulo do pai, transformado em centro de romaria por camponeses e despossuídos. Baseado no exemplo paterno, toma a radical medida de abolir a escravidão nos seus domínios. Ao ir à propriedade de Sansho, para verificar o cumprimento da ordem, é informado da morte de Anju. Renuncia e parte para Sado, em busca da mãe. Após percorrer os prostíbulos, encontra-a cega e alquebrada numa praia de pescadores.


O intendente Sansho (Shindo) e Zushio (Hanayagi)

Zushio (Yoshiaki Hanayagi) reencontra a mãe Tamaki (Kinuyo Tanaka) passados mais de 10 anos


Em sua delimitação O intendente Sansho aborda a história e a cultura japonesas. Devassa mitos e códigos em torno dos quais o país se estruturou e adquiriu especificidade entre as demais formações sociais. Porém, Mizoguchi vai além. O filme é um tratado sobre a fragilidade da existência. Mira personagens submetidos a situações que escapam ao seu controle, sejam naturais ou humanas. Enquanto constrói a saga de sofrimento de Zushio, Anju e Tamaki, o diretor parece perguntar: como lutar por justiça e, ao mesmo tempo, preservar valores que dizem respeito à honra e integridade moral quando a instabilidade provoca a dissolução de tudo aquilo em que se acredita? Haverá respostas definitivas a esses problemas? Desencantado, Mizoguchi parece dizer que não. No entanto, acentua: a missão mais nobre do Homem é buscar alternativas que, adequadas a cada contexto, regenerem o quadro social e solapem os enclaves dominados por poderosos como Sansho. Este é mais que um simples personagem. É a próprio representação do Mal que desencadeia a subversão dos seres e do mundo. Somente a ação regeneradora, às vezes ao preço do próprio sacrifício, gera o movimento que emancipa os prisioneiros da circularidade ou fixidez. Provavelmente, esse é o significado a extrair dos imensos e imóveis círculos de pedra, tão firmemente fixados ao chão, tão cravados em sua aparência de eternidade.



A escravizada Anjou (Kyôko Kagawa)


Apesar de respirar uma atmosfera de tragédia, a concepção plástica de O intendente Sansho é belíssima. Parte disso deve ser creditado a Kazuo Niyagawa, fotógrafo de quase todos os filmes de Mizoguchi. Sua luz, ajustada à lenta elaboração dos elementos visuais e sonoros, confere às imagens um toque de mistério, próximo do realismo fantástico. Momentos assim o espectador percebe no prólogo; na jornada de Tamaki e seus filhos, principalmente quando encobertos pelas flores dos campo; com Zushio e Anju ouvindo a canção materna, após tanto tempo, como se fosse entoada por entidade fantasmagórica; ou mirando a superfície mansa das águas onde Anju se deixa afundar.



 Ubutake (Chieko Naniwa), o jovem  Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka) e a jovem Anju (Keiko Enami)


A concepção narrativa de O intendente Sansho fala, acima de tudo, aos sentidos. Aprisiona a atenção de quem o vê pelo uso sucessivo de lentos planos-sequência e quadros aparentemente estáticos, de longa duração. Não fossem algumas tomadas em câmera fixa, o filme dispensaria tranquilamente a montagem. Nas realizações de Mizoguchi as cenas e sequências adquirem formato quase definitivo no decorrer das filmagens. Por muito pouco não prescindiriam das atividades típicas desenvolvidas nas salas de corte.






Roteiro: Fuji Yahiro, Yoshikata Yoda, com base em romance de Ogai Mori, por sua vez inspirado no conto popular Anju e Zushio. Direção de fotografia (preto-e-branco): Kazuo Miyagawa. Iluminação: Kenichi Okamoto. Direção de arte: Kisaku Ito. Desenho de produção: Yoshikasu Fujiwara. Figurinos: Hosei Ueno. Música: Fumio Hayasaka. Montagem: Mitsuji Miyata. Tempo de exibição: 126 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)



[1] Dividiu o prêmio com Depois do vendaval (The quiet man), de John Ford; e Europa 51 (Europa 51), de Roberto Rosselini.
[2] Neste ano o Festival de Veneza não distribuiu o prêmio máximo, o Leão de Ouro de São Marcos.
[3] Dividiu o prêmio com Teresa Raquin (Thérèse Raquin), de Marcel Carné; Moulin Rouge (Moulin Rouge), de John Huston; e Os boas vidas (I vitelloni), de Federico Fellini.
[4] O intendente Sansho repartiu o prêmio com Na estrada da vida (La strada), de Federico Fellini; Os sete samurais (Shichinin no samurai), de Akira Kurosawa; e Sindicato de ladrões (On the waterfront), de Elia Kazan. Todos os filmes de Mizoguchi agraciados em Veneza foram realizados nos anos em que participaram do festival. O mesmo vale para os títulos com os quais dividiu prêmios.
[5] NAGIB, Lúcia (org.). Mestre Mizoguchi: uma lição de cinema. São Paulo: Navegar, 1990. p. 223-224.

5 comentários:

  1. O único filme de Mizoguchi que cheguei a ver foi "Os amantes crucificados", no qual, curiosamente, a morte degradante e lenta na cruz aparece como o único meio pelo qual podem, paradoxalmente, os personagens-título vencer o contexto de humilhações em que vivem. Creio que o enredo era mais ou menos este (há mais de vinte anos que vi este filme): no Japão do século XVII, mulher, casada com um homem que se mostra extremamente avarento com a casa, enquanto esbanja com cortesãs e tiraniza os que estão sob seu comando, tenta, sem sucesso, fugir da cidade em que vive, auxiliada por um fabricante de painéis, e ambos acabam se apaixonando. O marido consegue apanhá-los e, como a pena para o adultério era a crucifixão, resolve chantageá-los. Após algum tempo de intenso sofrimento, eles se entregam às autoridades que, além de os condenarem à morte pela crucifixão, depois de desfilarem pelas ruas da cidade sobre o lombo de um elefante, determinam o banimento do marido, uma vez que se omitira em seu dever de honra de os denunciar. O paradoxo do enobrecimento pela degradação, a duplicidade de pesos e medidas, o dever de denunciar imposto à própria vítima foram coisas que me chamaram a atenção no contexto dramático. Além da bela fotografia em preto-e-branco.

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    1. Não é um filme fácil de ver, "Os amantes crucificados". Sofri bastante quando o assisti. Apesar de ser um grande filme, é exasperante. Por outro lado, tenho dificuldades para suportar qualquer produção que aborde temas relacionados à crucificação, ainda mais quando explicitamente mostrada. Tanto que não tive peito para assistir "A paixão de Cristo", de Mel Gibson.

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  2. Filmes Tristes e que nos deixam mesmo com o coração dilacerado. Eu sinto na pele a fragilidade da mulher como ele expõe . Adorei a sua matéria que descreve perfeitamente que ele foi o primeiro maior diretor feminista. Foi ele que revelou a posição feminina na sociedade japonesa como humilhante e oprimida, e demonstrou que elas podem ser capazes de maior nobreza entre os sexos. Gostaria e ter mais tempo para ver todos os filmes dele que estão sendo lançados e baixados.

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    1. Obrigado por mais esta participação, siby13. A carreira de Mizoguchi começou em 1923 e se encerrou em 1956, quando faleceu. Realizou cerca de 100 filmes. Muitos de seus títulos estão entre os mais importantes já realizados. Alguns estão disponíveis para download.

      Abraços.

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  3. Hola querido Eugenio, pocas obras pueden cubrir tantos aspectos como es el caso de este filme que nos presentas, nunca he visto la película, pero por tu reseña veo una maravillosa obra de arte donde el principal protagonista es la condición humana, una gran sensibilidad del Director que retrata circunstancias que ya no deberían de existir, pero aún existen...Estupendo querido, gracias por tan dedicado y laborioso trabajo, sigo enamorada de la sección de fotografías de tu blog, felicidades, besos, abrazos y aplausos desde mi palco...!!!

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