Kenji Mizoguchi é um dos expoentes do cinema japonês. Dele
o cinéfilo antenado provavelmente viu Oharu, a vida de uma cortesã (Saikaku
ichidai onna, 1952), Contos da lua vaga depois da chuva (Ugetsu
monogatari, 1953), A mulher infame (Uwasa
no onna, 1954) e Os amantes crucificados (Chikamatsu
monogatari, 1954). O diretor é conhecido por sua preocupação com a
condição humana e pela abordagem da subalternidade da mulher na cultura japonesa.
O
intendente Sansho (Sansho dayu, 1954) valoriza essas
temáticas. Ao acompanhar a saga de três personagens desafortunados numa
realidade governada pelo Mal, Mizoguchi parece perguntar: como lutar por
justiça e, ao mesmo tempo, preservar valores que dizem respeito à honra e
integridade moral quando a instabilidade provoca a dissolução de tudo aquilo em
que se acredita? Haverá resposta definitiva a esses problemas? Também é uma
realização de elaborada concepção plástica, que se comunica diretamente aos sentidos
do espectador.
O Intendente Sansho
Sansho dayu
Direção:
Kenji Mizoguchi
Produção:
Masaichi Nagata
Daiei
Japão — 1954
Elenco:
Kinuyo Tanaka, Yoshiaki Hanayagi,
Kyôko Kagawa, Akitake Kono, Eitaro Shindo, Masahiko Kato, Keiko Enami, Chieko
Naniwa, Masao Shimizu, Ken Mitsuda, Kazukimi Okuni, Yoko Kosono,
Noriko Tachibana, Ichiro Sugai, Teruko Omi, Bontaro Akemi, Kikue Mori, Ryosuke
Kagawa, Kanji Koshiba, Shinobu Araki, Reiko Kongo, Shozo Nanbu, Ryonosuke
Azuma, Saburo Date, Sumao Ishihara, Ichiro Amano, Yukio Horikita, Hachiro
Okuni, Jun Fujikawa, Akiyoshi Kikuno, Soji Shibata, Akira Shimizu, Goro
Nakanishi.
O diretor Kenji Mizoguchi |
A década de 50 é
decisiva para a carreira de Kenji Mizoguchi, principalmente em termos de
reconhecimento internacional. O cineasta atinge, no período, o pleno domínio da
linguagem cinematográfica. Depura estilo narrativo próprio, que lhe garante
lugar cativo entre os mestres da tela. O Ocidente lhe reconhece o talento ao descobri-lo
nos festivais de cinema de Veneza, onde consegue o ineditismo de ser agraciado
por três anos consecutivos, seja com o Prêmio Especial do Júri ou o Leão de
Prata de São Marcos. A primeira premiação é em 1952, para Oharu, a vida de uma cortesã
(Saikaku
ichidai onna)[1].
Em 1953[2]
chega a vez de Contos da lua vaga depois da chuva (Ugetsu monogatari)[3]
— para muitos a maior das obras-primas do cineasta. O intendente Sansho
recebe as láureas de 1954[4],
mesmo ano em que Mizoguchi logra duas outras peças de mestre: A
mulher infame (Uwasa no onna) e Os
amantes crucificados (Chikamatsu monogatari).
Desafortunadamente
o cineasta não completa a década de 50. Morre em 1956, aos 58 anos, vitimado
pela leucemia. Deixa filmografia de aproximadamente 100 títulos, desde Ai ni
yomigaeru (1922) a Osaka monogatari (1957). Entre seus
temas está a constante preocupação com a condição do Homem. É humanista
sensível e consciencioso. Mas dirige à oprimida mulher japonesa — não importa
de qual época e estrato social — a mais carinhosa das atenções. Retrata-a
sempre como a mais sublime das criaturas, afogada num mundo essencialmente
masculino, povoado de vozes fortes, ríspidas e gritadas — típicas de quem
comanda —, onde ganham sentido ações e tradições guerreiras. Ao
feminino resta reduzido e silencioso espaço de expressão, contraposto aos signos
másculos por meio dos códigos do sofrimento, do amor e do sacrifício. Não se
trata de idealização de Mizoguchi. É o dado concreto de uma realidade
vivenciada de perto, ainda criança, que o marca para toda a vida. Viu Suzu,
irmã mais velha, vendida pelo pai a uma casa de gueixas — costume do Japão
“profundo” que perdurou há até bem pouco tempo. Essa experiência familiar Mizoguchi
sempre recriou em seus filmes, de uma forma ou outra: as mulheres, sujeitas ao
despotismo masculino, são escravas, mendigas, prostitutas ou simplesmente
senhoras. Em todas Mizoguchi vislumbra Suzu, responsável por sua criação após a
morte da mãe.
Provavelmente é
em Oharu,
a vida de uma cortesã que Mizoguchi expõe de forma mais aguda a
situação da mulher na sociedade japonesa. Oharu, vendida pelo pai à
prostituição, torna-se cortesã e enfrenta vida de muitas tribulações. Ao
envelhecer, é abandonada pobre e enferma. Vagueia às tontas, esmolando e
buscando o filho que teve com um antigo senhor.
Apesar da temática
masculina, o universo feminino não deixa de ocupar lugar de destaque em O
intendente Sansho. As mulheres — e suas atitudes
de sacrifício — são responsáveis pela regeneração de
Zushio (Kato, na juventude; Hanayagi, adulto), personagem central. O roteiro — baseado em romance de Ogai
More, um dos mais renomados escritores da Era Meiji — desenvolve história
ambientada no Japão medieval, ao fim do conturbado período Heian, no século XI.
Fuji Yashiro, primeiro roteirista, foi extremamente fiel ao original. Mas
Mizoguchi não gostou da adaptação, na qual crianças eram personagens centrais. Queria
a história protagonizada por adultos. Yoshikata Yoda assumiu a tarefa de
adequar o roteiro aos padrões exigidos. Porém, manteve de Yashiro as cenas
iniciais até o salto narrativo de dez anos. Daí em diante, com Zushio e sua
irmã Anju (Enami, quanto jovem; Kagawa, adulta), o roteiro é totalmente de Yoda. Além de adaptar o
romance, foi instruído por Mizoguchi a pesquisar a função social e econômica da
escravidão no período histórico retratado[5].
Zushio e Anju são filhos de Masauji Taira (Shimizu), bom e justo governador
provincial. Por reconhecer a dignidade e humanidade de camponeses e escravos,
cai em desgraça perante a nobreza. É deposto e exilado. Numa era de convulsão
social, dominada pelo banditismo e tráfico de homens, Masauji Taira sempre manteve
a fé no humanismo. Pouco antes dos trágicos acontecimentos que reordenaram a
vida da família, dizia ao filho: “Homem sem caridade não é homem. Seja caridoso
com todos. Os homens são iguais, todos merecem a felicidade”.
A instabilidade
política e militar obriga Taira a uma operação arriscada: enviar a mulher
Tamaki (Tanaka) e os filhos, acompanhados apenas da governanta Ubutake
(Naniwa), a uma jornada a pé, por regiões perigosas, até a mais segura Yashiro.
Terminam aprisionados por mercadores de escravos. Separados da mãe, Zushio e
Anju são levados a Tango e vendidos ao Intendente Sansho (Shindo), Ministro da
Dieta e maioral da localidade, cruel senhor de terras e homens. Tamaki é
conduzida à ilha de Sado e obrigada à vida de cortesã. Ubutake, que a
acompanhava no mesmo barco, prefere o suicídio e se atira na correnteza.
Ubutake (Chieko Naniwa), o jovem Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka) e a jovem Anju (Keiko Enami) |
O jovem Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka), a jovem Anju (Keiko Enami) e Ubutake (Chieko Naniwa) |
Reduzidos a escórias,
Anju e Zushio têm os nomes trocados para Shinobu e Mutso. Arrastam-se ao longo
de 10 anos numa vida de pura obrigação. Esse tempo provocou a desumanização de
Zushio. Tanto sofrimento acarretou no esquecimento dos ensinamentos paternos. Tornou-se
um escravo endurecido, que goza da confiança de Sansho na vigilância e castigo
dos companheiros de infortúnio.
Anju, por sua
vez, não perdeu a inocência e as lembranças. Traz viva a imagem da mãe.
Apega-se aos cantos e às lições que aprendeu. Ouve de escrava recém-chegada de
Sado uma canção familiar. Fica sabendo que era entoada pela cortesã Nakagimi, cujo
tendão foi cortado por tentar escapar de seu senhor.
Anju tenta,
inutilmente, convencer Zushio de que a mãe ainda vive. Ao acompanhar o irmão — escalado
para abandonar nas montanhas uma escrava moribunda, repetem inconscientemente
um gesto do passado e que fora interrompido pelo canto chamativo da mãe. Novamente
ouvem a mesma canção, modulada em muitas variações. A misteriosa voz devolve a
Zushio a humanidade perdida. Contando com a confiança do guarda e ajuda da
irmã, foge. Leva consigo a escrava quase morta. Abrigam-se num templo
budista.
Os adultos Zushio (Yoshiaki Hanayagi) e Anju (Kyôko Kagawa) ante uma escrava à beira da morte |
Anju, chamada a
explicar o paradeiro do irmão, escapa para retardar os perseguidores. Sem
chances de sucesso e temendo o pior, caminha decidida rumo às águas em remanso
de um rio e desaparece lentamente — uma cena que é, certamente, das mais belas
do cinema.
Autoimolação de Anju (Kyôko Kagawa) |
Desconhecendo o sacrifício
da irmã, Zushio busca o governador local em Kyoto, levando-lhe carta de
apresentação assinada pelos sacerdotes budistas. Vencidas as dificuldades, é recebido
e consegue provar suas origens nobres. Termina nomeado para a governadoria de
Tango, sede do poder de Sansho. Antes de assumir o posto, visita o túmulo do
pai, transformado em centro de romaria por camponeses e despossuídos. Baseado
no exemplo paterno, toma a radical medida de abolir a escravidão nos seus domínios.
Ao ir à propriedade de Sansho, para verificar o cumprimento da ordem, é
informado da morte de Anju. Renuncia e parte para Sado, em busca da mãe. Após
percorrer os prostíbulos, encontra-a cega e alquebrada numa praia de
pescadores.
O intendente Sansho (Shindo) e Zushio (Hanayagi) |
Em sua
delimitação O intendente Sansho aborda a história e a cultura japonesas.
Devassa mitos e códigos em torno dos quais o país se estruturou e adquiriu
especificidade entre as demais formações sociais. Porém, Mizoguchi vai além. O
filme é um tratado sobre a fragilidade da existência. Mira personagens
submetidos a situações que escapam ao seu controle, sejam naturais ou humanas. Enquanto
constrói a saga de sofrimento de Zushio, Anju e Tamaki, o diretor parece
perguntar: como lutar por justiça e, ao mesmo tempo, preservar valores que dizem
respeito à honra e integridade moral quando a instabilidade provoca a
dissolução de tudo aquilo em que se acredita? Haverá respostas definitivas a
esses problemas? Desencantado, Mizoguchi parece dizer que não. No entanto, acentua:
a missão mais nobre do Homem é buscar alternativas que, adequadas a cada contexto,
regenerem o quadro social e solapem os enclaves dominados por poderosos como
Sansho. Este é mais que um simples personagem. É a próprio representação do Mal
que desencadeia a subversão dos seres e do mundo. Somente a ação regeneradora, às
vezes ao preço do próprio sacrifício, gera o movimento que emancipa os
prisioneiros da circularidade ou fixidez. Provavelmente, esse é o significado a
extrair dos imensos e imóveis círculos de pedra, tão firmemente fixados ao chão, tão cravados em sua aparência de eternidade.
A escravizada Anjou (Kyôko Kagawa) |
Apesar de
respirar uma atmosfera de tragédia, a concepção plástica de O
intendente Sansho é belíssima. Parte disso deve ser creditado a Kazuo
Niyagawa, fotógrafo de quase todos os filmes de Mizoguchi. Sua luz, ajustada à
lenta elaboração dos elementos visuais e sonoros, confere às imagens um toque
de mistério, próximo do realismo fantástico. Momentos assim o espectador
percebe no prólogo; na jornada de Tamaki e seus filhos, principalmente quando
encobertos pelas flores dos campo; com Zushio e Anju ouvindo a canção materna,
após tanto tempo, como se fosse entoada por entidade fantasmagórica; ou mirando
a superfície mansa das águas onde Anju se deixa afundar.
Ubutake (Chieko Naniwa), o jovem Zushio (Masahiko Kato), Tamaki (Kinuyo Tanaka) e a jovem Anju (Keiko Enami) |
A concepção
narrativa de O intendente Sansho fala, acima de tudo, aos sentidos.
Aprisiona a atenção de quem o vê pelo uso sucessivo de lentos planos-sequência e
quadros aparentemente estáticos, de longa duração. Não fossem algumas tomadas
em câmera fixa, o filme dispensaria tranquilamente a montagem. Nas realizações
de Mizoguchi as cenas e sequências adquirem formato quase definitivo no
decorrer das filmagens. Por muito pouco não prescindiriam das atividades
típicas desenvolvidas nas salas de corte.
Roteiro: Fuji Yahiro, Yoshikata Yoda, com base em romance
de Ogai Mori, por sua vez inspirado no conto popular Anju e Zushio. Direção de fotografia (preto-e-branco):
Kazuo Miyagawa. Iluminação: Kenichi
Okamoto. Direção de arte: Kisaku
Ito. Desenho de produção: Yoshikasu
Fujiwara. Figurinos: Hosei Ueno. Música: Fumio Hayasaka. Montagem: Mitsuji Miyata. Tempo de exibição: 126 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1993)
[1] Dividiu o prêmio com Depois do vendaval (The
quiet man), de John Ford; e Europa 51 (Europa 51), de Roberto
Rosselini.
[2] Neste ano o Festival de Veneza não distribuiu o
prêmio máximo, o Leão de Ouro de São Marcos.
[3] Dividiu o prêmio com Teresa Raquin (Thérèse
Raquin), de Marcel Carné; Moulin Rouge (Moulin Rouge), de John
Huston; e Os boas vidas (I vitelloni), de Federico Fellini.
[4] O intendente Sansho repartiu o
prêmio com Na estrada da vida (La strada), de Federico Fellini; Os
sete samurais (Shichinin no samurai), de Akira
Kurosawa; e Sindicato de ladrões (On the waterfront), de Elia Kazan.
Todos os filmes de Mizoguchi agraciados em Veneza foram realizados nos anos em
que participaram do festival. O mesmo vale para os títulos com os quais dividiu
prêmios.
[5] NAGIB, Lúcia (org.). Mestre Mizoguchi: uma
lição de cinema. São Paulo: Navegar, 1990. p. 223-224.
O único filme de Mizoguchi que cheguei a ver foi "Os amantes crucificados", no qual, curiosamente, a morte degradante e lenta na cruz aparece como o único meio pelo qual podem, paradoxalmente, os personagens-título vencer o contexto de humilhações em que vivem. Creio que o enredo era mais ou menos este (há mais de vinte anos que vi este filme): no Japão do século XVII, mulher, casada com um homem que se mostra extremamente avarento com a casa, enquanto esbanja com cortesãs e tiraniza os que estão sob seu comando, tenta, sem sucesso, fugir da cidade em que vive, auxiliada por um fabricante de painéis, e ambos acabam se apaixonando. O marido consegue apanhá-los e, como a pena para o adultério era a crucifixão, resolve chantageá-los. Após algum tempo de intenso sofrimento, eles se entregam às autoridades que, além de os condenarem à morte pela crucifixão, depois de desfilarem pelas ruas da cidade sobre o lombo de um elefante, determinam o banimento do marido, uma vez que se omitira em seu dever de honra de os denunciar. O paradoxo do enobrecimento pela degradação, a duplicidade de pesos e medidas, o dever de denunciar imposto à própria vítima foram coisas que me chamaram a atenção no contexto dramático. Além da bela fotografia em preto-e-branco.
ResponderExcluirNão é um filme fácil de ver, "Os amantes crucificados". Sofri bastante quando o assisti. Apesar de ser um grande filme, é exasperante. Por outro lado, tenho dificuldades para suportar qualquer produção que aborde temas relacionados à crucificação, ainda mais quando explicitamente mostrada. Tanto que não tive peito para assistir "A paixão de Cristo", de Mel Gibson.
ExcluirFilmes Tristes e que nos deixam mesmo com o coração dilacerado. Eu sinto na pele a fragilidade da mulher como ele expõe . Adorei a sua matéria que descreve perfeitamente que ele foi o primeiro maior diretor feminista. Foi ele que revelou a posição feminina na sociedade japonesa como humilhante e oprimida, e demonstrou que elas podem ser capazes de maior nobreza entre os sexos. Gostaria e ter mais tempo para ver todos os filmes dele que estão sendo lançados e baixados.
ResponderExcluirObrigado por mais esta participação, siby13. A carreira de Mizoguchi começou em 1923 e se encerrou em 1956, quando faleceu. Realizou cerca de 100 filmes. Muitos de seus títulos estão entre os mais importantes já realizados. Alguns estão disponíveis para download.
ExcluirAbraços.
Hola querido Eugenio, pocas obras pueden cubrir tantos aspectos como es el caso de este filme que nos presentas, nunca he visto la película, pero por tu reseña veo una maravillosa obra de arte donde el principal protagonista es la condición humana, una gran sensibilidad del Director que retrata circunstancias que ya no deberían de existir, pero aún existen...Estupendo querido, gracias por tan dedicado y laborioso trabajo, sigo enamorada de la sección de fotografías de tu blog, felicidades, besos, abrazos y aplausos desde mi palco...!!!
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