Desigual, mas bem humorado e descontraído, Como
era gostoso o meu francês (1970), de Nelson Pereira dos Santos, mira os
complexos relacionamentos entre europeus e índios no Brasil quinhentista. É a
materialização de um projeto que o diretor vinha acalentando desde o começo dos
anos 60. Apoiado em minuciosas e bem elaboradas pesquisas históricas,
etnográficas e linguísticas, o filme é uma alegoria que põe em causa as dicotomias
colonizador/colonizado e desenvolvimento/subdesenvolvimento, tão presentes no
discurso político-social do momento da realização. Entender essas contradições
e superá-las em prol de quem resiste à dominação estrangeira é o que interessa
a Nélson Pereira dos Santos. A apreciação original é de 1974. Foi revista e
ampliada em 1978.
Como era gostoso o
meu francês
Direção:
Nelson Pereira dos Santos
Produção:
Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos
Barreto, K. M. Eckstein, César Thedim
LCB Produções Cinematográficas,
Condor Filmes, Difilm
Brasil — 1970
Elenco:
Ana Maria Magalhães, Arduino
Colasanti, Eduardo Imbassahy Filho, Manfredo Colasanti, José Kleber, Gabriel
Arcanjo, Luiz Carlos Lacerda de Freitas, Janira Santiago, Ana Maria Miranda,
José Soares, Josué Amaral Batista, Maria de Sousa Lima, Jorge Rodrigues da
Silva, Erley J. Freitas, Marlete Ribeiro Barbosa, Ilde Miranda da Silva, Lídia
Maia Santos, Rose de Carvalho, Heloísa de Carvalho, Gildete dos Santos, Ana
Batista, Ital Natur, Wilson Manli, Hélio Fernando.
O diretor Nelson Pereira dos Santos |
Trata-se de
projeto antigo de Nelson Pereira dos Santos: realizar um filme ambientado nas
costas brasileiras durante os primeiros anos do "descobrimento", centrado
nas complexas relações dos indígenas com o colonizador. Estes são representados
por protestantes franceses (huguenotes) e católicos portugueses no bojo do
conflito desencadeado com a edificação, na Baía da Guanabara, do projeto da
França Antártica. Entre franceses e portugueses estão os Tamoios, aliados dos primeiros.
Localizam-se nos
primeiros anos da década de 60 as origens mais remotas de Como era gostoso o meu francês.
Durante os trabalhos de pré-produção de Vidas secas (1963), Nelson entrou em
contato com tribos do Nordeste. Impressionou-se com a degradação física e
cultural em que se encontravam. Começou a se questionar sobre as causas de tanta
indigência. As ideias estavam amadurecidas em 1970. Após cinco anos de longo e
rigoroso planejamento — que demandou minuciosas e bem elaboradas pesquisas
históricas e etnográficas em fontes como Civilização tupinambá, de Alfred Metraux;
Viagem
ao Brasil, de Hans Staden; Tupinambá, de Jean de Lery; A
organização social dos Tupinambás, de Florestan Fernandes e, desse
mesmo autor, A função social da guerra na sociedade Tupinambá — o diretor
concentrou equipe, atores e cerca de 500 figurantes em Parati, iniciando as
filmagens a partir de argumento e roteiro de sua autoria.
O francês (Arduino Colassanti) aprisionado pelos Tamoios |
O rigor na
reconstituição do passado exigiu atenção a detalhes sumamente importantes, como
os diálogos. Afinal, a ação de Como era gostoso o meu francês
transcorre em momento no qual o português era minimamente falado no território
brasileiro. O contrário se dava com o idioma tupi. O cineasta Humberto Mauro,
estudioso da língua indígena, cuidou dessa parte. Em outro polo, linguistas
franceses reconstituíram o francês do período. Basicamente, o filme é todo
falado em tupi, com a consequente utilização de legendas. O tratamento
cenográfico, a cargo de Regys Monteiro, buscou o máximo de fidelidade aos
resultados da pesquisa etnográfica de Luiz Carlos Ripper. As tabas foram edificadas
segundo modelos originais. Tomaram-se idênticos cuidados acerca do guarda-roupa
europeu.
O personagem do
título (Arduino Colasanti), membro da expedição de Villegaignon, é banido do
grupo sob a acusação de desvio de conduta no trato com os nativos. Em seguida, é
aprisionado por Tamoios ao ser confundido com português. Aguarda-o idêntico
destino de Dom Pero Fernandes Sardinha — bispo lusitano
capturado pelos Caetés após sobreviver a naufrágio nas proximidades da costa: ser
devorado em banquete ritual. Não era por simples prazer que algumas tribos
praticavam a antropofagia. O ato possuía significado regenerador e assimilador.
Permitia, segundo a crença, a incorporação das melhores qualidades do inimigo,
como coragem e conhecimento. Enquanto aguarda o fim, o francês se apaixona pela
índia viúva Seboipepe (Magalhães), encarregada de guardá-lo. Em interesse
próprio, ministra à tribo vários ensinamentos, principalmente no campo da
guerra.
Os Tamoios e o prisioneiro
são mutuamente afetados pelo convívio. Compartilham línguas, valores e costumes.
Mas a relação desigual está sempre presente. O francês representa uma
civilização tecnologicamente superior. Porém, os fios do seu destino são
manejados pelos supostamente inferiores. Ele é devorado ao final. No entanto, o
significado do cerimonial antropofágico, em Nelson Pereira dos Santos,
transcende a leitura antropológica. Adquire evidente conotação política: a
emancipação do nativo do incômodo convívio com o invasor estrangeiro.
Ao enfocar a vida
no Brasil recentemente "descoberto", Nelson Pereira dos Santos elabora
interpretação muito pessoal de aspectos da nossa história. Vai ao passado pouco
conhecido, quase mítico, para fazer uma leitura do presente segundo o viés
explicativo que tenta compreender o país, na época da realização, pela dicotomia
desenvolvimento/subdesenvolvimento. Como era gostoso o meu francês se
engaja no esforço de recuperação da cultura dominada, de ontem e hoje,
valendo-se da alegoria do embate do índio com o colonizador. É um filme sobre a
resistência nacional à dominação estrangeira. Por outro lado, a interpretação
pessoal da história também advém da dificuldade para reconstruir, com o máximo
de fidelidade, o passado muito remoto, apesar de todos os esforços empregados
na pesquisa de relatos e documentos.
Apesar de toda a dificuldade para a reconstituição do Brasil dos primórdios com o máximo de fidelidade, empregaram-se todos os esforços a partir da pesquisa de relatos e documentos os mais diversos |
Dificuldades mais
concretas, comuns a quase todos que fazem cinema no Brasil, Nelson sentiu no
bolso. Apesar do esquema de superprodução que envolveu as filmagens e do polpudo
adiantamento — para os padrões nacionais — concedido pela Condor Filmes, o
diretor teve que se desfazer do terreno no qual pretendia construir a casa da
família para arcar com os custos finais do empreendimento.
A narrativa é desigual
— apesar de controlada — mas sempre instigante, bem humorada e descontraída. As
imagens estão envolvidas por uma rústica beleza plástica, para a qual muito
contribuíram a câmera e a iluminação de Dib Lutfi. Os atores, constantemente
nus — com exceção dos intérpretes dos europeus —, estão à vontade. Para isso
foi essencial o clima de desinibição que cercou a produção. As roupas foram abolidas
nas locações, convertidas em comunidades ao natural mesmo quando câmeras e
refletores estavam desligados. Porém, nem tudo foi tranquilo e idílico. A
polícia, alertada por vizinhos desconfiados com "aquela sacanagem toda", prendeu equipe e atores por atentado
coletivo ao pudor e aos bons costumes. Muitas explicações foram necessárias até
a situação se normalizar.
Com o filme concluído,
vieram os problemas com a censura interna e externa. No Brasil, houve primeiro
a ameaça de total interdição, devido ao excesso de nudez frontal. Nelson,
tarimbado nos problemas com a censura desde Rio 40 graus (1955), argumentou
com didatismo e paciência que os nativos não usavam roupas. As justificativas
foram aceitas, em parte. A Divisão de Censura da Polícia Federal resolveu proibir
Como
era gosto o meu francês em todo o território nacional e liberá-lo para
o exterior. Por sorte houve mudanças da direção do órgão e, para espanto geral,
veio a liberação com certificado de "Censura Livre".
Externamente, o
filme quase foi barrado pelos membros da Seleção Oficial da Quinzena dos
Realizadores do Festival de Cannes, pelos mesmos incríveis problemas enfrentados
no Brasil: nudez dos atores — isso na França de Brigitte Bardot e das praias de
nudismo. Tal fato demonstra que estupidez e ignorância estão, em muitos casos,
igualmente distribuídas nos dois lados do oceano e da Linha do Equador. Após liberação
em Cannes, Como era gostoso o meu Francês participou dos Festivais de
Berlim e Londres. Neste, abriu oficialmente a competição. No Festival de
Brasília ganhou o Troféu Carmen Santos e o prêmio de Melhor Filme do Júri
Popular. Nélson foi consagrado Melhor Diretor pela comissão encarregada de atribuir
os prêmios Air France de Cinema.
Na apreciação da
imprensa, veio a malhação da dita crítica especializada. Houve a honrosa
exceção de um José Carlos Monteiro, de O Globo — que incluiu Como
era gostoso o meu francês entre as melhores realizações do cinema
brasileiro. Já o paulista Rubens Ewald Filho, de O Estado de São Paulo, ficou
a perguntar "Qual era a de Nelson Pereira dos Santos?", para classificar
o filme como "curtição sob o sol de Parati", arrematando que o mesmo
nada representava; que apenas fora feito para proporcionar a seus participantes
o prazer de andar pelado.
Acima, ao centro e abaixo: O francês (Arduino Colassanti) e Seboipepe (Ana Maria Magalhães) nos rituais que antecedem ao banquete final |
Os críticos estadunidenses
— geralmente mais moralistas e puritanos — foram mais sensíveis que Ewald
Filho. Roger Greenspun, do The New York Times, ofereceu
comentário no qual empatava com a visão pretendida pelo diretor: compreendeu o
filme como uma meditação sobre o passado e o futuro do Brasil. Mesmo
considerando — acertadamente, ao meu ver — a narrativa desigual, elogiou todo o
trabalho de reconstituição e, no conjunto, enquadrou a obra ao espírito do "cinema
clássico".
Como era gostoso
o meu Francês desencadeou uma onda de filmes relacionados à questão
indígena: A lenda de Ubirajara (1975), de André Luiz de Oliveira; Uirá,
um índio à procura de Deus (1972), de Gustavo Dahl; Ajuricaba,
o rebelde da Amazônia (1977), de Oswaldo Caldeira etc. A realização de
Nelson Pereira dos Santos fez boa carreira junto ao público, se bem que o
interesse deste se justificava pelos mesmos motivos que geraram as polêmicas
com a censura: a nudez dos atores.
O francês (Arduíno Colassanti) ou "A comida que pula" |
Quanto aos mais,
o realizador se queixou da "postura colonizada" dos espectadores em
geral. Segundo ele, compreenderam o filme pela ótica do simplismo maniqueísta,
que divide o mundo entre bandidos e mocinhos. Percorreram caminho contrário ao
pretendido pela realização. Não se identificaram com os índios e lamentaram o
destino do francês. Em se tratando do grande público, Nelson Pereira dos
Santos, meio que ingenuamente, pareceu esperar demais no tocante ao juízo
crítico.
Argumento e Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Diálogos: Humberto Mauro. Direção
de fotografia (Eastmancolor) e câmera: Dib Lutfi. Cenografia: Regys Monteiro, Luiz Carlos Ripper. Pesquisa etnográfica e histórica: Luiz
Carlos Ripper. Assistente de cenografia:
Marco Antônio Mello, Nilde Goebel. Montagem:
Carlos Alberto Camuyrano. Assistente de
montagem: Jayme Soares Justo. Som:
Nélson Ribeiro. Efeitos sonoros:
Geraldo José, Walter Goulart, Antônio César. Música e intérprete: José Rodrix. Assistentes de direção: Luiz Carlos Lacerda de Freitas, Carlos
Alberto Camuyrano. Assistente de câmera: Ronaldo Nunes. Continuidade: Raimundo Bandeira de
Mello. Vestuário: Mara Chaves. Maquiagem: Janira Santiago, José
Soares, René Boechat, Nilde Goebel, Hélio Fernando, Diva Correia da Silva, Josué
Amaral Batista. Fotografia de cena:
Rogério Noel. Eletricistas: Sandoval
Dórea, Jorge Rodrigues da Silva, Ruy Medeiros. Letreiros: Waldir Surtan. Equipe
de produção: Carlos Alberto Diniz, Antônio Mendes Soares, Raimundo B. de
Mello, Nelson Pereira dos Santos Filho, Pedro Jaconi Quirino, Mário Soares
Filho, Francisco Vieira Nunes. Gerente
de produção: Marques Irânio. Assistente
de gerente de produção: Carlos Alberto Diniz. Assistente de produção: Pedro Aurélio Gentil. Narrador: Célio Moreira. Tempo
de exibição: 84 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974; revisto e ampliado
em 1978)
Cada vez ,época ,que revejo este filme eu gosto mais .
ResponderExcluirExcelente post
*Salve, Eugênio! Que bom poder ler você e apreciar seu texto sobre o filme de meu saudoso amigo Nelson Pereira dos Santos!O incrível, Eugênio, foi quando nós, os sobreviventes de 'Como Era Gostoso o Meu Francês', nos encontramos na ABC para nossa ultima homenagem ao amigo: parecia que nós jamais tínhamos nos afastado uns dos outros, embora tantos e tantos anos haviam se passado desde os 'tempos de Paraty', 'a ultima cidade dos trópicos', como não se cansava de dizer o saudoso José Kleber,e do 'Valha-couto', o imponente sobrado colonial em que nos reuníamos e alguns de nós moramos durante bom tempo (eu, 'Bigode', Nelsinho, e muit@s outr@s colegas, amigos e amigas, como Manfredo etc.). Bem, obrigado por essa oportunidade de rememorar aqueles bosn tempos, meu amigo. Abraços e até breve (espero!). MMello.*
ResponderExcluirEugênio, na cena em que o Francês está sentado na rede e Seboipepe está oferecendo comida, depois que eu fixei no chão os estacas para armar a rede, pedi a Arduíno para fazer um teste; mas ele, marrento, não queria de jeito nenhum fazer o que eu estava pedindo! Mas se aquele troço despencasse enquanto Dib rodava a cena? A responsabilidade seria minha! E com que cara eu ficaria ali na frente de Regys e Nelson?!? Aninha teve que interferir e dizer para ele que eu tinha razão etc. etc. Só assim meu saudoso companheiro daqueles tempos aquiesceu!Abraços. MMello.
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