Vittorio De Sica extrai Duas mulheres (La
ciociara/La paysanne aux pieds nus, 1960) de novela de Alberto Moravia.
É a segunda parceria do cineasta com Sophia Loren. A atriz ganhou o Oscar pelo
papel de Cesira, mulher do povo em movimento na Itália devastada pela guerra
após a queda de Mussolini. Tenta, qual força da natureza, preservar de todas as
formas a inocência e dignidade da filha Rosetta, de 13 anos, em meio à
insanidade do conflito. Estruturado como road
movie, Duas mulheres é um drama intenso. A partir desse título De Sica
conhecerá período de relativa decadência. Retornará à boa forma, mais uma vez,
com o tristemente belo O jardim dos Finzi Contini
(I
giardini dei Finzi Contini, 1971). A apreciação a seguir, de 1975, foi revista e ampliada em 1990.
Duas mulheres
La ciociara/La paysanne aux pieds nus
Direção:
Vittorio De Sica
Produção:
Carlo Ponti
Compagnia Cinematografica
Champion, Les Films Marceau-Cocinor, Société Générale de Cinématographie,
Metro-Goldwyn-Mayer, Sostar
Itália, França — 1960
Elenco:
Sophia Loren, Eleanora Brown, Raf
Vallone, Jean-Paul Belmondo, Renato Salvatori, Emma Baron, Tony Calio, Carolina
Carbonare, Bruna Cealti, Andrea Checchi, Luciana Cortellesi, Mario Frera,
Pupella Maggio, Elsa Mancini, Vincenzo Mussolino, Carlo Ninchi, Luciano Pigozzi,
Antonella Della Porta, Franco Balducci, Curt Lowens, Remo Galavotti, Giuseppina
Ruggeri, Luigi Terribile, Antonio Gastaldi, Carolina Carbonaro e os não
creditados Ettore Mattia e Vincenzo Musolino.
O diretor Vittorio De Sica |
Duas mulheres é a décima quarta
realização de Vittorio De Sica e sua segunda parceria com Sophia Loren. Nesse
filme, a atriz de recursos limitados — na opinião de muitos — e, até então,
estrela de inocentes comédias, atingiu o ápice na arte da representação. Interpreta
Cesira, mulher do povo, totalmente destituída do glamour e artificialismo que a caracterizaram em outras produções.
A personagem — um híbrido das “mães” de Brecht e Gorki — foi moldada a quatro
mãos num roteiro escrito pelo cineasta com seu colaborador habitual, Cesare
Zavattini, a partir da novela La ciociara, de Alberto Moravia.
Cesira é uma força da natureza em movimento na Itália acossada pela guerra.
Como uma fera, dedica todas as forças à proteção da filha Rosetta (Brown), de
13 anos. Em meio ao cenário devastado e violento, repleto de gente ultrajada
física e moralmente, tenta, a todo custo, preservar a dignidade e inocência da
menina.
Para Loren,
Cesira é um divisor de águas. Antes de vivê-la era apenas uma artista, conforme
afirmou. A partir daí se tornou atriz. Nascida Sofia Scicolone, estreou no
cinema ao lado da mãe, fazendo figuração para Quo vadis (Quo
vadis, 1951), de Mervyn Leroy, filmado nos estúdios italianos de Cinecittá.
Nesse período, foi descoberta pelo produtor e futuro marido Carlo Ponti, que a rebatizou de Sophia Lazaro. Sob essa alcunha atuou em realizações pouco importantes.
Prosseguiu nessa seara até emigrar para os Estados Unidos, onde chegou
ostentando o definitivo nome de Sophia Loren, adotado por ela desde que estrelou
A
sereia do Mar Vermelho (Africa sotto il mare, 1953), de
Giovanni Roccardi. Seu primeiro filme americano é Orgulho e paixão (The
pride and the passion, 1957), de Stanley Kramer. Em Hollywood não fugiu
ao destino reservado à maioria das atrizes latinas: é escalada quase sempre
para viver estereótipos da mulher exótica e fogosa, graças à cor morena, ao
corpo curvilíneo de seios fartos, aos lábios proeminentes e carnudos.
Parece que a
melhor interpretação de Loren no cinema americano se deu sob ordens de George
Cukor em Jogadora infernal (Heller in pink tights, 1960[1]).
Vittorio De Sica, que a dirigira no episódio Pizze e credito do longa O ouro de Nápoles (L'Oro
di Napoli, 1954), convidou-a a retornar à Itália para
interpretar Cesira, papel de sua vida[2].
A partir de então, torna-se a atriz preferida do realizador, para quem
protagonizará outros sete filmes: o episódio A rifa (La riffa) de Boccacio 70 (Boccacio 70, 1962),
realização conjunta de Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Federico Fellini e Mario
Monicelli[3];
O
condenado de Altona (I sequestrati di altona, 1962), Ontem,
hoje e amanhã (Ieri, oggi e domani, 1963), Matrimônio
à italiana (Matrimonio all'italiana, 1964), Os girassóis da Rússia (I
girassoli, 1970) e Viagem proibida (Il
viaggio, 1974).
A força de Loren
como Cesira quebrou a informalidade de uma regra de ouro da Academia de Artes e
Ciências Cinematográficas de Hollywood: nunca premiar intérpretes de língua não
inglesa em produções realizadas fora do eixo EUA-Grã Bretanha. Indicada ao Oscar
de Melhor Atriz, a italiana era o azarão numa disputa que reunia as
cotadíssimas Audrey Hepburn (Bonequinha de Luxo/Breakfast
at Tiffany's, de Blake Edwards), Piper Laurie (Desafio à corrupção/The
hustler, de Robert Rossen), Geraldine Page (O anjo de pedra/Summer
and smoke, de Peter Glenville); e Natalie Wood (Clamor do sexo/Splendour
in the grass, de Elia Kazan).
Convencida do
evidente favoritismo das concorrentes, Loren sequer compareceu à premiação.
Nomeou Greer Garson para representá-la e partiu para a Itália. Na noite fatal,
porém, não conseguiu dormir, por nervosismo. Passou o tempo fazendo companhia
ao repórter fotográfico Pier Luigi, escalado para lhe registrar a expressão em
caso de vitória. Nesse tempo, a entrega do Oscar era apenas uma festa de
auditório, distante do rádio e da televisão. Ao amanhecer, recebeu telefonema
de Cary Grant, informando-a da premiação.
Pode-se dizer que
Duas
mulheres encerra a experiência de Vittorio De Sica no Neorrealismo,
movimento do qual é praticamente fundador, como confirma Vítimas da tormenta (Sciuscià,
1945), sobre o drama da infância abandonada. Com a adaptação da obra de Moravia
termina também a fase de grande criatividade do cineasta, truncada apenas pela
realização de um dramalhão desavergonhado, feito de encomenda, no qual
trabalhou fora do contexto italiano: Quando a mulher erra (Stazione
termini, 1954), parceria com a Columbia Pictures e veículo tardio para aferição do talento dramático de Jennifer Jones. Logo De Sica retornou às
origens com o sensível e pouco conhecido O teto (Il teto, 1956), sobre a
crise de moradia para os pobres da periferia romana. A seguir, ficou cinco anos
afastado da direção. Retomou com Duas mulheres, produção de Carlo
Ponti, a esta altura marido de Sophia Loren.
Depois de Duas
mulheres pode-se de fato falar da decadência de Vittorio De Sica.
Premido pela necessidade e testemunhando a crescente aversão da produção cinematográfica aos temas humanistas de sua predileção, o diretor deixa-se devorar
pelo sistema. Ainda encontrará oportunidade para imprimar a marca em Matrimônio
à italiana e Ontem, hoje e amanhã. No mais,
perdeu-se em equívocos como O condenado de Altona, O
fino da vigarice (Caccia alla volpe, 1966), Sete
vezes mulher (Women times seven, 1967), Um
lugar para os amantes (Gli amanti, 1968) e o excessivamente
meloso — mas incensado pelo grande público — Os girassóis da Rússia.
Apenas mais uma vez realizará uma obra de porte: O jardim dos Finzi Contini
(I
giardini dei Finzi Contini, 1971).
Sophia Loren interpreta Cesira; Eleonra Brown vive Rosetta: mãe e filha na Itália devastada pela guerra |
"Não existe no mundo lugar onde se possa estar seguro" Não adianta fugir, mas a fuga é a única opção que resta |
Duas mulheres tem por cenário
a Itália de 1943. É um período de incertezas. Os fascistas perdem o controle da
situação com a chegada das tropas aliadas. Aproveitando esse contexto, De Sica
desenvolve um estudo cujo tema geral é a preocupação com o Homem e seu destino.
O humanismo cristão do diretor domina a cena. O filme denuncia o absurdo da
guerra e as atrocidades daí resultantes. Aborda o drama de pessoas simples, que
sofrem com mais intensidade os horrores de um conflito cujas razões não conseguem
compreender. A perplexidade — decorrente da
falta de esperança, violência, pauperização, crise de confiança no próximo e de
uma vida reduzida unicamente à segurança do corpo — é a palavra
chave de Duas mulheres. Está estampada em Michelle (Belmondo), pacifista
sensível cujo discurso, paradoxalmente, torna-se anacrônico e sem sentido.
Transparece por inteiro nas falas e ações de Cesira, que deseja tão somente
sobreviver e resguardar a filha, sem tempo sequer para se preocupar com a sorte
do próximo. Assim, diante do corpo do ciclista metralhado, largado à beira da
estrada, ela diz: "não podemos fazer nada", palavras que se tornam
recorrentes ao longo da história. Outros exemplos de perplexidade: o assalto
que Cesira promove à despensa da casa onde busca comida; e os instantes que
antecedem a um bombardeio, quando constata, ao lado de Michelle, que "não
existe no mundo lugar onde se possa estar seguro". Daí se conclui que não
adianta fugir. A guerra está em toda parte. Mas a fuga é a única opção que
resta.
Cesira (Sophia Loren) e Michelle (Jean-Paul Belmondo) |
Duas mulheres tem a estrutura
de um road movie. O que se vê, quase
sempre, são pessoas em movimento, tomando a estrada, principalmente Cesira e filha.
A mãe — viúva jovem e bonita; também madura, impulsiva, enérgica, ignorante e
boquirrota —, abandona Roma após uma sucessão de ataques aéreos. Confia os
negócios ao amigo Giovanni (Vallone) e embarca para Santa Eufemia, comunidade
rural encravada das montanhas do sul, sua terra natal, onde pensa encontrar paz
e segurança. A partida é o começo de uma viagem de reconhecimento e descoberta.
Por onde passam, Cesira e Rosetta tomam ciência da onipresença do conflito.
Morte e miséria estão diante dos olhos. Encontram gente acuada, faminta,
desesperada e só. Deparam-se, por toda parte, com decomposição, horror,
angústia e incertezas.
Santa Eufemia
será somente parada provisória. Aí, em condições precárias, Cesira encontra parentes
e amigos acuados. O local está na rota de bombardeiros, de soldados aliados
rumo ao teatro de operações, de desertores fascistas e nazistas. Estes forçam
Michelle a lhes servir de guia pelas montanhas. Depois o matam, gratuitamente.
A gratuidade é a marca da guerra. Provoca a desvalorização dos códigos básicos
que norteiam a existência, estampados nas regras mais elementares de convívio e
conduta, além de anular afetos e sentimentos. Amor se torna palavra sem
sentido, como Cesira muito bem confirma. Carente, prefere se resguardar no
interior da dura barreira que arma em torno de si a se extravasar numa atitude
de entrega. O que resta a preservar? Apenas os fundamentos mais elementares da sobrevivência.
No meio de tanta animalização, De Sica extrai uma cena arrepiante: Cesira e
Michele vão ao povoado em busca de alimentos. Deparam-se com uma mulher aos prantos
e sem rumo, a quem perguntam onde encontrar comida. Ela simplesmente desnuda o
seio e responde: "podem ficar como esse peito, se quiserem. Não preciso
mais dele. Os alemães mataram meu bebê". A guerra sacrifica a inocência. O
encontro com a mãe desesperada é o prelúdio do drama maior ainda por vir.
Sem segurança em Santa Eufemia ,
Cesira decide voltar para Roma, com a filha. Estão novamente na estrada, a pé,
malas à cabeça, frágeis e expostas a todos os flagelos. Cesira tem pressa.
Rosetta — que experimenta o horror de ser criança na guerra — ainda não sabe
(da mesma forma a mãe) o que aconteceu a Michelle e se preocupa com o
paradeiro do amigo. Sobrevém a sequência de maior impacto: durante o descanso numa
igreja abandonada e em ruínas, mãe e filha são violentadas por soldados
marroquinos aliados dos fascistas. A sequência confere sentido ao título do
filme. Brutalizada, Rosetta deixa de ser criança para se tornar mulher da pior
forma. Antes, na estrada, havia uma mulher e uma garotinha. Agora são duas
mulheres, sofridas, perdidas em meio à guerra diante da qual nenhuma inocência
resiste. Nessa sequência, sem carregar nas tintas, procurando ser o mais
comedido possível, De Sica retira imagens fortes, que chocam pela sensação de
vazio, pelo som lancinante do grito de desespero não ouvido, pela crueza da
experiência pela qual passam as personagens. Aí está sintetizado todo o drama
narrado pelo cineasta: terra arrasada e ocupada (a mãe), população vilipendiada
(a filha), ausência de crença amalgamadora (a igreja destruída).
Traumatizada pela
experiência, Rosetta se levanta com a expressão fechada em mutismo carregado.
Sob o olhar estupefato e desesperado da mãe, põe-se a andar, às tontas.
Novamente na estrada, Cesira obriga um comboio do exército americano a parar.
Lança imprecações contra os soldados, mas não é entendida. Por fim, rumam para
a vila de Florindo (Salvatori), motorista que lhes oferece carona. Sem saber dos
últimos acontecimentos, diz: "as meninas crescem depressa". A câmera
se fecha num primeiro plano sobre o rosto sofrido de Cesira.
Cesira (Sophia Loren) |
Rosetta, em
estado catatônico, afasta-se da mãe. Sem nada dizer, abandona-a, à noite, na
hospedaria providenciada por Florindo, e vai a uma festa. Quando toma
conhecimento do fato, a transtornada Cesira exclama: “mas o que aconteceu a
ela? Que fiz de errado?”. Nesse instante toma conhecimento do assassinato de
Michelle. Com essa notícia recebe Rosetta, ao amanhecer. A morte do amigo retira
a menina do transe, devolvendo-a à mãe. O filme termina em aberto, com as duas abraçadas
e aos prantos. A câmera se afasta lentamente, congelando-as frágeis e sós,
banhadas num resto de luz, fechadas no centro de um quadro emoldurado pela
escuridão. Quem poderá fazer algo por elas?
A atuação de
Sophia Loren também lhe valeu a Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival de
Cannes de 1961.
Cesira (Sophia Loren) e Rosetta (Eleonora Brown) |
Algumas
curiosidades sobre Duas mulheres: 1) o papel de Cesira estava reservado a Anna
Magnani. Sophia Loren interpretaria Rosetta. Entretanto, Magnani recusou por um
motivo aparentemente descabido: como mãe, não poderia ter uma filha mais alta.
Senão, teria que olhar para cima o tempo todo. Loren, animada pela
possibilidade de atuar com Anna Magnani, tentou convencê-la a voltar atrás,
inutilmente. 2) O Oscar original recebido por Sophia Loren foi levado por
ladrões que acreditavam estar na posse de uma peça de ouro maciço. Por 60
dólares ela o substituiu junto à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
3) Numa conversa com Rosetta, Cesira se refere a Michelle como “subversivo”.
Diante da curiosidade da filha, assim define o termo: "é alguém com bom
coração, mas que não gosta de trabalhar".
Roteiro e adaptação: Vittorio De Sica, Cesare
Zavattini, com base na novela La ciociara, de Alberto Moravia. Música: Armando Trovaioli. Direção de fotografia (preto-e-branco):
Gábor Pogány. Desenho de produção:
Gastone Medin. Decoração e figurinos:
Elio Constanzi. Montagem: Adriana
Novelli. Maquiagem: Giuseppe
Annunziatà, Gerente de produção: Mario
Bianchi. Supervisão de produção: Lucio
Bompani, Gianni Cecchin. Gerente de
unidade de produção: Jone Tuzi. Assistente
de direção: Luisa Alessandri. Segundos
assistentes de direção: Giovanni Fago, Checco Rissone. Assistente de decoração: Emilio D'Andria. Gerente do departamento de arte: Italo Tomassi (não creditado). Efeitos especiais sonoros: Philippe
Arthuys. Técnico de som: Giovanni
Rossi. Efeitos especiais: M.
Urbisaglia. Arte matte: Joseph
Natanson. Operador de câmera: Mario
Capriotti. Fotografia de cena: Pierluigi
Praturlon. Assistente de câmera: Silvio
Fraschetti (não creditado). Assistente
de figurinos: Giulia Mafai. Relações
públicas: Margherita Autuori, Enrico Lucherini, Matteo Spinola. Continuidade: Ines Bruschi. Secretaria de produção: Alfredo
Melidoni. Consultoria de planejamento:
Armondo Linus Acosta (não creditado). Publicação
musical: Artisti Tecnici Associati. Publicação
das canções: Edizioni Bixio S.A.M. Publicação
do libreto: Edizioni Bompiani. Tempo
de exibição: 100 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado
em 1990)
[1] Cf. ALBAGLI, Fernando. Tudo sobre o Oscar. Rio
de Janeiro: EBAL, 1988. p. 281.
[2] Segundo informação de Emanuel Levy, não confirmada
por outras fontes, George Cukor seria, a princípio, o diretor de La
ciociara. Cf. LEVY, Emanuel. Os bastidores do Oscar. São Paulo:
Trajetória Cultural, 1990. p. 110.
[3] Il lavoro,
Le tentazioni del dottor Antonio e Renzo e Luciana, respectivamente
dirigidos por Visconti, Fellini e Monicelli, formam originalmente os demais
episódios de Boccacio 70. O último foi eliminado da montagem final pelos
produtores Carlo Ponti e Antonio Cervi. Cf. STRICH, Christian e
KEEL, Anna (edits.). Fellini por Fellini. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 152.
Ótima escolha de filme para seus comentários .
ResponderExcluirExcelente ler depois de assistir o filme .Muitas cenas passaram despercebidas .
Tenho que assistir novamente .
Obrigado