O
delito Matteotti (Il delitto Matteotti, 1973) honra a
tradição do vigoroso cinema político da Itália ao longo dos anos 60 e 70. O diretor
Florestano Vancini radiografa a tensão e perplexidade que tomaram conta do país
após o sequestro e assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti pelos fascistas.
Diante deste fato e de seus desdobramentos, pergunta: Como Musollini subiu ao
poder? Que métodos utilizou? Quais as respostas da sociedade e dos partidos? A
realização se vale da linguagem semidocumental e do ritmo envolvente do
cinejornalismo para fazer o julgamento moral e político do fascismo. A apreciação a seguir é de 1977. Passou por revisão e ampliação em 1989.
O delito Matteotti
Il delitto Matteotti
Direção:
Florestano Vancini
Produção:
Gino Mordini
Claudia Cinematografica, Dobermann
Films
Itália — 1973
Elenco:
Franco Nero, Vittorio De Sica,
Mario Adorf, Riccardo Cucciola, Gastone Moschin, Damiano Damiani, Umberto
Orsini, Giulio Girola, Manuela Kustermann, Renzo Montagnini, Stefano
Oppedisano, Maurizio Arene, Andrea Aureli, Cesare Barbetti, Pietro Bondi,
Giovanni Brusadori, Manlio Busoni, Andrea Costa, Mico Cundari, Francesco D’Adda,
Aldo De Carellis, Giorgio Dolfin, Max Dorian, Giorgio Favretto, Pietro Gerlini,
Antonio La Raine ,
Carlo Lopresti, Mario Maffei, Giovanna Mainardi, Michele Malaspina, Ezio
Marano, Roberto Marelli, Renzo Martini, Franco Mazzieri, Renato Montalbano,
Franco Moraldi, José Quaglio, Valerio Ruggeli, Gino Santercole, Roberto Santi,
Franco Silva, Gianni Solaro, Gioacchino Soko, Orazio Stracuzzi, Pietro Tordi,
Tullio Valli, Loris Zanchi.
Em junho de 1924,
durante sessão de instalação do novo parlamento italiano, o deputado ao Partido
Socialista Giacomo Matteotti (Nero) faz de improviso vigoroso discurso que
ganha imediata e ampla repercussão. Sob vaias e xingamentos da maioria
fascista, denuncia o terror e a violência impostos pelas brigadas de Benito
Mussolini (Adorf), questiona a lisura das eleições e pede a dissolução do
parlamento em nome da moralidade pública. Cumprimentado pelos correligionários
e aliados ao fim da sessão, Matteotti diz em tom de desabafo: “Prepare meu
enterro”. A fala, provavelmente, passa despercebida ao espectador alheio ao
tema da ascensão do fascismo ao poder. Mas assume caráter premonitório ao
conhecedor da recente história italiana. No dia seguinte ao pronunciamento, um
grupo fascista, agindo com conivência de Mussolini e comandado por Amerigo
Dumini (Orsini), sequestra Matteotti — na rua, à luz do
dia — e o espanca até a morte. O corpo desaparece.
Imagem do verdadeiro Giacomo Matteotti |
À direita, em traje militar, Giulio Girola como o Rei Victor Emanuel III |
O delito
Matteotti se inscreve na boa tradição do cinema político italiano
de tantas e importantes realizações como Sacco e Vanzetti (Sacco
e Vanzetti, 1970), de Giuliano Montaldo; A classe operária vai ao paraíso
(La
classe operaria va in paradiso, 1972) e Investigação sobre um cidadão
acima de qualquer suspeita (Indagine su un cittadino al di sopra di ogni
sospetta, 1970), de Elio Petri; Os companheiros (I
compagni, 1963), de Mario Monicelli; O bandido Giuliano (Salvatore
Giuliano, 1962), Cadáveres ilustres (Cadaveri
eccelenti, 1976) e O caso Mattei (Il caso Mattei, 1971), de
Francesco Rosi. O didatismo e a objetividade da narração, aliados à linguagem
documental, aproximam a realização de Vancini dos filmes de Rosi,
particularmente de O caso Mattei. Apesar de não possuir o rigor e vigor desse
título, O delito Matteotti tem suficiente força para confirmar o
talento de um cineasta de luz própria, que não nega a experiência acumulada no
jornalismo e em cerca de 40 documentários curtos[1]
realizados nos anos 50.
Vancini fez
assistência de direção para Mario Soldati (A mulher do rio/La donna del fiume, 1955)
e Valerio Zurlini (Verão violento/Estate violenta, 1959)[2]
antes de se lançar na realização de longas e fazer furor com A
noite do massacre (La lunga notte del 43, 1960). A
partir daí construiu uma carreira que os críticos consideram irregular, apesar
de consistente. Quando a necessidade obrigou, ocultou-se sob o pseudônimo de
Stan Vance[3]
para fazer Os longos dias de vingança (I lunghi giorni della vendetta,
1965), um spaghetti western. De sua
filmografia chegaram aos cinemas do Brasil Vidas ardentes (La calda vita, 1963), Enquanto
durou o nosso amor (La stagioni del nostro amore, 1966),
O
sádico de alma negra (L’isola, 1968), Violência: o quinto poder
(La
violenza: quinto potere, 1971), além de A noite do massacre, Os
longos dias de vingança e O delito Matteotti. Depois deste
filme, nenhuma outra realização de Vancini deu entrada no cada vez mais
restrito mercado exibidor brasileiro.
Mario Adorf no papel de Benito Mussolini |
O desaparecimento de
Matteotti mobiliza a imprensa e a oposição. As autoridades, apesar de
pressionadas, protelam as investigações. Populares que
testemunharam o sequestro são desacreditados e ameaçados. O local do
sequestro se transforma em ponto de peregrinação. O tempo passa; nenhum
sinal do deputado. Toma forma a certeza do assassinato político. O clamor da
opinião pública deixa os fascistas em xeque. Nessa situação, Mussolini substitui
auxiliares na cúpula do poder, diretamente envolvidos no delito, e ordena a
exposição de Dumini como boi-de-piranha. O juiz independente Mauro Del Giudice
(De Sica), auxiliado pelo colega Umberto Tancredi (Montagnini), faz avançar as
investigações, apesar de sofrer várias pressões. Os socialistas representados
por Filippo Turatti (Moschin) e Giovanni Amendola (Damiani) entram em acordo
com o Partido Popular (católico) — futuro Partido
Democrata Cristão, de Dom Luigi Sturzo — e propõem a
abstenção das atividades legislativas como forma de pressionar o parlamento e
isolar os fascistas. Apelam inutilmente ao Rei Vittorio Emanuel III (Girola),
um impotente cada vez mais dependente do Duce. Em geral, costuram acordos de cúpula,
alheios à sociedade civil. O Partido Comunista, fundado em 1922 e liderado por
Antonio Gramsci (Cucciola), denuncia o isolacionismo das agremiações e propõe
aliança com trabalhadores e sindicatos não atrelados ao fascismo como forma de
organizar grupos permanentes de pressão.
Riccardo Cucciola interpreta Antonio Gramsci |
Secretamente,
Mussolini aproveita o momento de perplexidade e diminuição da atividade
parlamentar. Apoiado pelo Rei, consegue mais poder e prepara um golpe de Estado
que culminará com o fechamento da Câmara, a prisão e o banimento de líderes
oposicionistas. Dois meses depois do desaparecimento o corpo de Matteotti é
encontrado. Mas o Senado, conivente com as orientações do Duce, assume o
comando das investigações, anulando Del Giudice e Tancredi. A sociedade,
deixada à margem pelos partidos, recolhe-se ao imobilismo — como previra
Gramsci —, deixando o cenário livre às investidas mais ousadas e violentas das
brigadas fascistas. Bancas de jornais são incendiadas, o jornalista e poeta
liberal Piero Gobetti (Oppedisano) é espancado diante de populares que assistem
a tudo sem reagir.
O delito
Matteotti radiografa o tenso ambiente político italiano entre julho
de 1924 a janeiro do ano seguinte. Apesar do título, Vancini não está
particularmente interessado no desaparecimento e assassinato do deputado
socialista. Esse fato, ao diretor, serve de pretexto ao desenvolvimento de um
projeto de maior amplitude, que parte da tentativa de oferecer resposta aos
seguintes problemas: como Mussolini obteve o total domínio do poder? Que
métodos utilizou? Quais as respostas da sociedade e dos partidos? Vancini
realizou um filme-tese, uma obra engajada, que se propõe a um julgamento moral
e político do fascismo. A exposição dos fatos termina com o levantamento
cronológico indicativo dos destinos dos personagens envolvidos no drama:
Turatti cai na clandestinidade em 1926 e falece em Paris seis anos depois; Gobetti
morre em 1926 em consequência de agressões sofridas; Gramsci falece em 1937,
aos 46 anos, condenado a 20 de prisão. Dom Luigi Sturzo parte para o exílio
londrino em 1924, só retornando em 1946 para fundar o Partido Democrata
Cristão. Emboscado e espancado pelos fascistas em 1926, Giovanni Amendola sucumbe
em Paris. Com o afastamento de Del Giudice e Tancredi, os assassinos de
Matteotti são julgados por juízes coniventes com o fascismo e libertados.
Piero Gobetti (Stefano Oppedisano) depois de espancado em público pelos fascistas |
Vancini adota a
linguagem semidocumental e o ritmo envolvente do cine-jornalismo para construir
O
delito Matteotti. A câmera flagra os objetos e os rostos dos
personagens, filmados quase sempre à altura dos olhos. A rápida exposição dos
assuntos tem pontuação musical à altura, condizente com a tensa fluidez das
imagens. Detalhes e marcações são destacados pela frequente recorrência ao uso
do fotograma fixo. O relato é parcial. Vancini não deixa dúvidas quanto às suas
preferências e simpatias. Mas evita o simplismo maniqueísta. Se a câmera trata
Gramsci com carinho, recusa, por outro lado, o fácil e surrado recurso de reduzir
Mussolini a um bufão de fancaria, que carrega nos gestos, poses e expressões.
Muito ao contrário: apesar da brutalidade dos seus métodos, Mussolini é
retratado como o sagaz arquiteto de um bem pensado projeto de tomada do poder,
que soube interpretar os sinais emitidos pela sociedade italiana e se mover num
cipoal de contradições que, naquele preciso momento histórico, foram-lhe
favoráveis. Se posteriormente ele não revelou igual virtu nem idêntica capacidade de controle da Fortuna, isso é outra história.
O delito
Matteotti é, acima de tudo, um filme de diálogos, proeza difícil de
ser lograda a contento quando há vários personagens importantes em cena. Mas as falas são
objetivas. Os personagens se expressam sem firulas e, assim, revelam-se
inteiros ao espectador. Por isso as filmagens optaram pelo recurso do primeiro
plano. A tela está quase sempre tomada pelo rosto de quem fala, por sua vez
posicionado diante de um fundo invariavelmente desfocado. É uma forma de
direcionar a atenção do espectador para o discurso e para quem o pronuncia. É
dessa forma que Matteotti é apresentando. Assim também vemos Del Giudice,
Gramsci e Mussolini. São personagens sobriamente bem traçados, sob a
responsabilidade de um elenco de primeiríssima qualidade, com destaques para
Mario Adorf, Ricardo Cucciola e Vittorio De Sica. Franco Nero, tão acostumado à
rudeza e laconismo dos spaghetti westerns,
passa confiança e sinceridade. Está surpreendentemente bem como Matteotti.
Roteiro e argumento: Lucio M. Battistrada, Florestano Vancini. Fotografia (Eastmancolor): Dario Di
Palma. Cenografia: Umberto Turco. Figurinos: Silvana Pantani. Supervisão de trucagens: Rino Carboni. Montagem: Nino Baragli. Música: Egisto Macchi. Operador de câmera: Blasco Giurato. Chefe de trucagens: Manlio Rocchetti. Penteados: Renata Magnanti. Diretor colaborador: Mario Maffei. Ajudante de câmera: Franco Longo. Inspetor de produção: Sergio Bollino. Secretário de produção: Giuliano
Giurgola. Direção de produção:
Marcello Papaleo. Assistentes de câmera:
Giovanni Martelli, Silvano Tessicine. Fotografia
de cena: Roberto Nicosia Vinci. Ajudante
de figurinos: Andretta Ferrero. Ajudante
de trucagens: Feliziano Ciriaco. Ajudantes
de cenografia: Enzo Medoe, Ezio Di Monte, Ely Peirote. Som: Raul Montesanti. Secretário
de montagem: Ninni Ricinato. Inspetor
de produção: Ruggero Cappelli. Assistente
de montagem: Rossana Maiori. Sincronização:
Fono-Roma. Mixagem: Venanzio
Biragli. Efeitos sonoros: Studio
Marinelli. Tempo de exibição: 118
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1977; revisto e ampliado em 1989)
[1] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas.
2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 526-527.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.
poxa, andei procurando esse filme para baixar ou mesmo assistir pelo you tube e nada!
ResponderExcluirCid, o diretor Florestano Vancini é figurinha difícil no Brasil. Pouca coisa dele foi lançada comercialmente entre nós. Uma das exceções é este O DELITO MATTEOTTI, que tive a sorte de ver em cinema. Também o vi em VHS. Tanto na tela grande como na fita, o estado das cópias era lastimável. Pelo visto ainda não foi lançado em DVD ou BR.
ExcluirMas, veja este link: http://www.dailymotion.com/video/x1x2da6_il-delitto-matteotti-con-franco-nero-gastone-moschin-e-vittorio-de-sica_shortfilms
Abraços.