Por
meio de um “golpe de estado” e com os apoios ideológicos de Lênin e Fidel,
Glauber Rocha estreia no longa metragem e lança as bases do Cinema Novo.
O resultado é Barravento (1961),
um bem realizado exercício formal. O cineasta denuncia a alienação religiosa como
responsável pela sujeição e miséria do povo brasileiro, representado por uma
comunidade de pescadores do litoral baiano.
Barravento
Direção:
Glauber Rocha
Produção:
Rex Schlindler, David Singer
Iglu Filmes
Brasil - 1961
Elenco:
Antônio “Pitanga” Sampaio, Aldo
Teixeira, Luiza Maranhão, Lucy Carvalho, José Teles, Lídio Cirillo dos Santos,
Rosalvo Plínio, Alair Liguori, João Gama, Antônio Carlos dos Santos, Dona Zezé,
Flora Vasconcelos, Jota Luna, Élio Moreno Lima, Francisco dos Santos Brito,
Dona Hilda, Adinora, Arnon, Sabá, Hélio de Olveira, Canjiquinha, moradores da
aldeia de Buraquinho.
Filmado em 1959, Barravento, primeiro
longa-metragem de Glauber Rocha, teve montagem concluída dois anos depois. É o
marco inicial do Cinema Novo. Propõe: 1) nova estética de realização; e, 2) a
ação política para iluminar e resolver os profundos desajustes sociais
brasileiros.
Sua gestação é
interessante e tumultuada. Desde meados dos anos 50, a jovem intelectualidade
baiana estava em estado de plena efervescência. Nesse contexto o filme
veio à luz. Glauber Rocha, nome mais destacado do grupo, realizara, em 1959,
dois curtas-metragens pouco vistos, os experimentais e simbolistas O pátio e A
cruz na praça. Do segundo não restam vestígios. Próximo a Glauber
circulavam Roberto Pires, Braga Neto, Rex Schlindler, Waldemar Lima e Luiz
Paulino dos Santos, expoentes do núcleo responsável pela eclosão do Cinema Novo
em solo baiano. Dos esforços desta turma nasceram três filmes fundadores,
destinados a revelar e a discutir as contradições da sociedade brasileira. Barravento é o primeiro. Os demais, de 1962, são
de Roberto Pires: A grande
feira e Tocaia no asfalto. Foram
todos produzidos pela Iglu Filmes, empresa fundada por um "capitalista
abnegado": Rex Schlindler, associado a Braga Neto e David Singer.
Médico
aposentado, empresário do setor imobiliário e pintor diletante, Schlindler
mantinha estreitas ligações com o mundo das artes em geral. Glauber o conheceu quando realizava O pátio. Em meio a
muitas conversas, levou-o a se interessar por cinema. Schlindler avançou além
do esperado. Fundou a Iglu Filmes e escreveu os argumentos de A grande feira e Tocaia
no asfalto. Passou à realização em 1962, com o curta Festival de arraias.
Repetiu a experiência em Ziriguidum (1963), Fumo no cajueiro (1970) e Bahia por exemplo (feitiço, amor
e candomblé) (1969).
A princípio, Barravento seria realizado por Luiz Paulino dos
Santos, autor do argumento inicial e responsável pelas pesquisas sobre a música
e o candomblé, fundamentais à trama. Suas experiências anteriores no cinema se
circunscrevem à direção dos curtas Um
dia na rampa (1956), com
a colaboração de Glauber Rocha, e Invasão[1].
Fez também a fotografia de O
pátio e auxiliou na
realização de A cruz na
praça.
Luiz Paulino
ficou uma semana à frente de Barravento.
Terminou afastado por uma manobra que Glauber, produtor executivo, considerou
“golpe de estado”[2]. O pivô dos desentendimentos, pelo visto, foi o
comportamento de Sônia Pereira, atriz principal e namorada do diretor. Ela
posava de vedete nas locações, constrangendo os atores e a equipe técnica.
Reclamações chegaram aos produtores, que resolveram dispensá-la. Glauber os
atendeu de pronto. Luiz Paulino protestou e também foi afastado. José Telles de
Magalhães, cogitado para substituí-lo, recusou. Diante da acefalia da
realização, Glauber sugeriu Roberto Santos, Roberto Farias e Roberto Pires. Mas
capitulou diante das propostas para ele mesmo levá-la adiante. Roberto Pires
assumiu a produção executiva.
No entanto,
parece que Sônia Pereira não passou de pretexto. Teria partido do próprio
Glauber a decisão de tirar o filme das mãos de Luiz Paulino dos Santos. A causa
da insatisfação: o roteiro, pouco crítico no tratamento da religião, ponto
central da discussão proposta pelo filme. Já de acordo com o registro de Rachel
Gerber, Glauber deu o “golpe de estado” para o cinema baiano decolar[3] e, principalmente, por não concordar
com o eixo central da trama, uma história de amor narrada ao estilo dos
dramalhões mexicanos: uma branca apaixonada por um negro, retirada por este da
comunidade em que vivia, é abandonada na cidade e obrigada à prostituição.
Passado um tempo, volta redimida ao grupo de origem[4].
É de Glauber o testemunho: “Assumi a responsabilidade de fazer o filme e me vi
diante de um roteiro absurdo com o qual não concordava. Refiz o roteiro e tive
que enfrentar a equipe que me enfrentava como usurpador”[5].
Sob nova direção,
com a presença negra, solar e saudosa de Luiza Maranhão no lugar de Sônia
Pereira, Barravento passa a contar uma história de
pescadores do litoral baiano, prisioneiros, a um só tempo, da crença religiosa
- que os condena ao misticismo, ao fatalismo e à passividade - e da exploração
do empresário, proprietário da rede que utilizam. A intenção do diretor é
clara. Denunciar a religião como fator de atraso, segundo a imagem que a concebe
como simples “ópio do povo”. As primeiras imagens exibem um letreiro abordando
as condições de vida da comunidade e enfatizando os prejuízos sociais,
políticos e econômicos decorrentes da alienação religiosa. A seguir, explica
dialeticamente o título: “Barravento é o momento da violência, quando as coisas
da terra e do mar se transformam, quando no amor e no social ocorrem súbitas
mudanças”.
Luiza Maranhão vive Cota |
De lírico que
era, Barravento se tornou veemente peça de acusação a
partir da reorientação dada por Glauber Rocha. Transformou-se num
“filme-manifesto”, repercutindo teses políticas da esquerda brasileira do
período em que foi realizado. Nas entrelinhas é possível perceber o discurso
isebiano[6], versão Álvaro Vieira Pinto, sobre a
necessidade de se gestar uma “consciência nacional” para o país, passível de
ser traduzida em vontade popular transformadora. Também estão presentes as
formulações dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes
(CPC-UNE) sobre as possibilidades emancipadoras da cultura popular, desde que
submetida ao crivo da crítica à ideologia que lhe oculta o caráter alienante.
Isto explica um dos paradoxos de Barravento,
tão impregnado e fascinado pelo misticismo do candomblé ao mesmo tempo em que
lhe lança o olhar crítico da denúncia. De um ponto de vista a religião é
considerada responsável pelo atraso e pobreza das massas. De outro, é observada
como uma tradição pontuada de rituais belíssimos, que devem ser preservados,
mesmo à custa da desvitalização.
Barravento critica a alienação religiosa em nome de
uma ação política que conduza o povo ao encontro da revolução e, por
conseguinte, da libertação. É o nascimento do Cinema Novo, cujas sementes foram
plantadas por Alex Viany (Agulha no palheiro, 1952) e Nelson
Pereira dos Santos (Rio 40 graus, 1955; Rio Zona Norte, 1957).
Denuncia a fome e a exploração presentes no cotidiano de vastos setores da
população brasileira. Mas faz isso propondo também uma nova maneira de fazer
cinema, capaz de emancipar a cinematografia brasileira da vontade de ser aquilo
que não é e não pode ser, segundo Glauber Rocha: arte, segundo a concepção
européia; glamour e artificialismo, na visão hollywoodiana. A miséria física
brasileira é a causa da nossa miséria intelectual e artística, afirma o
diretor. Logo, o cinema no Brasil deve ser realizado levando em conta essas
limitações e possibilidades. Em Barravento Glauber estabelece o rascunho de ideias como
“uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” e do manifesto publicado em 1965 com
o título de A estética da fome:
“Confesso que a cada dia que marchava para a colônia (dos pescadores, locação
do filme) descobria a política. Foi um encontro orgânico, vivencial, verdadeiro
(...) e vi que a crise do cinema é associada e consequente da crise geral de
fome que nos envolve. Por isso, em tese, o filme não pode ser arte, tem que ser
manifesto (...). Somente um clima de paz pode gerar a poesia pura que muitos
homens estabelecidos procuram. (...) Aquele convívio com os pescadores (...)
abriu um horizonte novo na minha vida (...) e digo humildemente que poderia
fazer de Barravento um poema de mar, coqueiros, auroras e
exotismos. E de amor. Mas fiz deliberadamente uma fotografia de miséria”[7].
Naína (Lucy de Carvalho) no ritual religioso do candomblé |
Ao denunciar a
aguda exploração que vitima o brasileiro, Glauber também expõe as características
étnicas dessa gente, negra em sua maioria, descendente de africanos
escravizados, novamente marginalizados quando a economia colonial se
reorganizou segundo padrões capitalistas. A libertação do povo é, acima de
tudo, a emancipação do negro, acentua o diretor. Quanto a isso, Glauber
vaticinava: do sentimento negro, o “maior do mundo”, nasce a vibração que
extasia o brasileiro no carnaval e no futebol, “duas manifestações perigosas
para os industriais da fome. Porque a mesma fúria pode explodir nas ruas. E,
sem dúvida, marchamos para esta festa. O que primeiro precisamos tentar é dar
ao negro consciência desta miséria e talvez acentuá-la o mais possível, como se
acua um gato num beco. Foi assim que Fidel agiu com os camponeses cubanos. O
tumor explodiu. A tese da covardia, da fraqueza e do servilismo dos pobres
brasileiros está certíssima. Precisamos torná-los cientes do que são”[8]. Traduzindo: só a inteligência esclarecida e
comprometida com a mudança tem condições de romper com a alienação e conduzir a
massa, transformada em povo, ao esforço de libertação. Ela, por si só, diante
das agruras da vida que leva, não possui autonomia para tanto. Compreensão mais
leninista da questão social é impossível.
Há que tornar o
explorado consciente da exploração de que é vitima; romper com sua condição
alienada. Portanto, seguindo Lênin, a vítima não tem como se emancipar por
conta própria. A consciência emancipadora deve vir de fora e sedimentar o
terreno para o levante, nem que para isso tenha que se acentuar a situação de
miséria. A dialética deixa de ser projeto do processo histórico para se tornar
exercício organizador da vontade. Em Barravento,
é Firmino (Sampaio, atual Antônio Pitanga) que desempenhará esse papel. Nascido
e criado na comunidade de pescadores, tomou o rumo da cidade. Enquanto cavava a
vida, muitas vezes nas atividades do submundo, envolveu-se com a
intelectualidade orgânica de esquerda, adquirindo nova percepção da realidade e
do mundo. O filme começa com o personagem atravessando as pedras e a areia da
praia, retornando, depois de muito tempo, ao convívio com os seus. Não faz esse
movimento por livre e espontânea vontade. Procura, conforme revela a Cota
(Maranhão), um abrigo seguro ao cerco policial que se fecha sobre ele, agora
que foi classificado com um termo “novo”, cujo significado desconhece:
“elemento subversivo”.
Firmino (Antônio Sampaio, atual Antônio Pitanga), classificado pela polícia com um termo novo, cujos significados desconhece: "elemento subversivo". |
A primeira coisa
que se nota na relação de Firmino com a comunidade, tão logo se refaz o
contato, é o estranhamento. O espectador percebe isso de imediato. O homem que
volta às origens, paradoxalmente, não mais pertence ao lugar. A roupa é o
primeiro elemento diferenciador: terno e chapéu brancos, contrastando
nitidamente com a quase nudez dos pescadores, vestidos apenas de calção na
conclusão de uma operação de arrastão. A linguagem termina por acentuar as
diferenças: Firmino discursa enquanto fala, tem domínio da palavra, ao passo
que seus antigos companheiros articulam frases curtas ou monossílabos. A
exceção é Aruã (Teixeira), que logo reage à expansividade e alegria do recém
chegado: “Deixa esse cara, pessoal. Firmino tá com a vida dele ganha. Não tá
vendo pela roupa?”
Apesar de tudo,
Firmino sente necessidade de se enturmar. Não consegue. Mas enquanto tenta,
procura incutir novas ideias nas cabeças de sua gente, pois a primeira coisa
que descobre é que, apesar de tanto tempo de ausência, nada mudou por ali. A
pesca se faz do mesmo jeito. Pior de tudo é a repartição do produto: o Patrão
(dono da rede que nunca é mostrado), explorador que mora fora, fica com quase 90%
do pescado. Como se não bastasse, a rede está velha, quebradiça, e não há como
trocá-la, pois isso custa caro e poderia comprometer os lucros da empresa.
Firmino tenta reverter a situação, mobilizando os pescadores. Acredita que
problemas humanos merecem soluções igualmente humanas. Procura subverter a
imutabilidade da ordem ou, em termos revolucionários, levar a comunidade ao
encontro da História. Mas sua palavra se choca com a força das tradições,
principalmente com as crenças religiosas básicas da comunidade. Elas estão
sedimentadas no carisma da liderança do Mestre (Lídio dos Santos). Dependendo
dele, nada muda, pois as soluções aos problemas terrenos devem ser dadas pelos
deuses, principalmente por Iemanjá. A Rainha do Mar protege os pescadores, principalmente
Aruã, símbolo da síntese decorrente da contradição entre as soluções terrenas
propostas por Firmino e o imobilismo da liderança do “Mestre”.
Os protegidos dos deuses: Naína (Lucy Carvalho) e Aruã (Aldo Teixeira) |
Apesar de não
simpatizar com Firmino, muito menos por suas ideias, Aruã quer mudanças,
mas não tem forças para lutar contra o Mestre, pai adotivo que o recolheu,
menino ainda, abandonado nas ruas da cidade. Além do mais, colocou-o sob a
guarda de Iemanjá. Diante disso, a comunidade acredita que enquanto Aruã contar
com as graças da Rainha, os homens terão sorte na pescaria e o fantasma da fome
permanecerá afastado de seus casebres. Mais que isso seria ilícito pedir, o que
só acentua o conformismo.
Firmino tenta
levantar a comunidade de várias maneiras. Da primeira vez apela à sua
capacidade linguística. Desenvolve o discurso da denúncia, expõe a situação de
exploração. Contra a religião que gera a passividade e o fatalismo, impõe a
força da palavra, do grito e do diálogo, construções humanas e históricas
transformadas em manifesto contra o candomblé, os mitos tradicionais e a
alienação. Mas nenhum ouvido o acolhe. Prega no vazio, sem conseguir traduzir
seus signos em ação política. Decorre desse fracasso a decisão de desmoralizar
Aruã, em quem reconhece capacidade de liderança em estado latente, mas impedida
pelo Mestre de vir à luz. É necessário desacreditar Aruã frente à comunidade,
para libertá-lo da passividade e trazer à tona o líder adormecido. Destruída a
credibilidade do protegido da Rainha pela profanação de seu estado santificado,
ele adquiriria liberdade para, em outra fase do processo, reconquistar e
conduzir o povo embalado por outro tipo de crença, mais eficaz, baseada na ação
concreta.
Não deixa de ser
paradoxal (como é o próprio filme) que a primeira tentativa de Firmino para
recompor a trilha de Aruã seja apelar para a religião que tanto critica. Mas
nada consegue com o despacho encomendado. Decide, por fim, segundo seus
próprios dizeres, “levantar um barravento à ponta de faca”. Corta a rede que
custou aos pescadores tanto trabalho para remendar. Mais tarde, justifica-se
perante Cota: “Foi por isso que cortei a rede. A barriga precisa doer mesmo.
Quando tiver uma ferida bem grande todo mundo grita de vez. Pra mim Princesa
Isabel é ilusão”.
Firmino (Antônio Sampaio) tenta libertar a comunidade do conformismo à religião |
Com o principal
instrumento de trabalho inutilizado e recolhido a mando do Patrão, resta aos
pescadores o retorno aos antigos métodos de trabalho. A produtividade baixará.
Mas Aruã ainda é protegido de Iemanjá. Essa crença é motivo para a comunidade
se sentir segura. É quando Firmino força a cumplicidade de Cota para
desprestigiar Aruã de vez. Ela seduz o rapaz, desacreditando o pacto que dele
exigia permanente estado de castidade. No dia seguinte, Aruã falha na tentativa
de salvar dois companheiros que se lançaram ao mar durante uma tempestade. Firmino
o acusa, revelando a todos a profanação da noite anterior. Aruã perde o
respeito dos companheiros. Sem lugar na aldeia, parte para a cidade em busca de
trabalho, o mesmo lugar onde Firmino teve a cabeça transformada. Promete a
Naína (Carvalho) voltar um dia, trazendo, além de dinheiro para a compra de
nova rede, a esperança de novos tempos para a comunidade. A seqüência final
mostra a partida de Aruã, cruzando o mesmo caminho que Firmino fizera ao
chegar, no começo do filme.
Barravento não demorou a render frutos, pelo menos
no exterior. Apresentado no Festival de Karlovy Vary (Techecoslováquia), em
1962, ganhou o prêmio Opera Prima (“criação revelada numa obra de estréia”). No
mesmo ano foi apresentado no Festival de Sestri Levanti, Itália. Em 1963 foi selecionado
para o VII Festival de Cinema de Londres e marcou presença entre os 10 filmes
escolhidos para o I Festival de Cinema de Nova York, inaugurando o Lincoln
Center for the Performing Arts. Teve lançamento no Rio de Janeiro, em 1964, com
exagerada mensagem publicitária que o anunciava como filme de “violência, sexo,
suspense e fetichismo”, ostentando a “beleza satânica de uma mulher - Luiza
Maranhão - no mais excitante nu do cinema”.
Uma análise
convencional sobre a composição cinematográfica de Barravento conclui que é um filme claudicante.
Mas isso pouco importa, principalmente em se tratando de obra que lança outro
tipo de cinema, radicalmente diferente de quase tudo o que se via até então.
Novos não são apenas os temas e conteúdos abordados. A forma também é nova.
Provavelmente, é o filme brasileiro que mais aplicou as lições da dialética
eisensteiniana[9] na
elaboração dos planos que evidenciam oposições (físicas e humanas) e sínteses.
Quanto a isso, é belíssimo, principalmente quando Glauber elabora
tomadas que recompõem o conjunto homem-céu-terra-mar: o arrastão inicial, a
chegada de Firmino, os pescadores conduzindo a rede para a reforma, o enterro
de João. Entretanto, muito da concepção plástica do filme deve ser creditada ao
fotógrafo Tony Rabatony, profissional egresso dos quadros da falida Companhia
Cinematográfica Vera Cruz. Considerado excessivamente acadêmico, ficou sem
lugar nas realizações seguintes do Cinema Novo. Rabatony, em Barravento, deixou a luz
estourar, para ampliar os efeitos da claridade solar e quente do litoral.
Na discussão
proposta o filme também é pioneiro. Pela primeira vez uma peça do cinema
brasileiro trata da luta de classes, expondo agudamente algumas das nossas
mazelas estruturais. É um belo filme, apesar de equivocado. Deposita excessiva
ênfase na questão da liderança e esvazia a ação do povo de qualquer sentido
revolucionário. Faz uma leitura pobre e generalizante da cultura, desprezando
olimpicamente as mais elementares contribuições da Antropologia e da Sociologia
da Religião.
Barravento conta com a participação
especial de Dona Hilda nas cenas de candomblé orientadas por Hélio de Oliveira.
Nas sequências de samba de roda e capoeira tomam parte Dona Zezé, Adinora,
Arnon e Sabá. É o primeiro filme dos atores Luiza Maranhão e Lídio Cirillo dos
Santos. Este, com o nome de Lídio Silva, interpretará Sebastião, o líder
messiânico no filme seguinte de Glauber Rocha: Deus e o diabo na
terra do sol.
Glauber Rocha na câmera de Barravento |
Roteiro e
diálogos: Glauber Rocha, José Teles de Magalhães. Argumento: Glauber
Rocha. Argumento inicial: Luiz Paulino dos Santos. Fotografia
(preto-e-branco): Tony Rabatoni. Música: Washington
Bruno da Silva (samba de roda e capoeira), Batatinha (samba). Continuidade: Marina
Magalhães. Montagem: Nelson Pereira dos Santos. Cenografia: Hélio
Lima. Som: Hélio Barrozo Neto, Oscar Santana, Atlântida. Ruídos: Geraldo
José. Corte do negativo: Paula Gracel. Produção
executiva: Roberto Pires, Edmundo Albuquerque. Diretor de
produção: José Teles de Magalhães. Assistentes de direção: Álvaro
Guimarães, Waldemar Lima. Operador de câmera: Luiz Carlos
Barreto. Laboratório de imagem: Líder Cinematográfica. Assistente
de fotografia: Waldemar Lima. Fotografia de cena: Élio
Moreno Lima. Maquinistas: Plínio, Miltinho. Letreiros: Calasans
Neto. Apresentação: Rex Schlindler, Braga Neto. Tempo
de exibição: 80 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 1978; revisto e atualizado em 1997)
[1] Não foi
possível precisar a data da realização.
[2] GERBER, Rachel. Glauber Rocha: uma obra pessoal. In: GERBER, Rachel et al. Glauber Rocha. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977. p. 26.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Alusivo ao ISEB – Instituto Superior
de Estudos Brasileiros.
[7] ROCHA,
Glauber apud GERBER, Rachel. Glauber Rocha: uma
obra pessoal. In: GERBER, Rachel et al. Op.
cit. Parênteses de José Eugenio Guimarães.
[8] ROCHA, Glauber. Experiência Barravento: confissões
sem moldura. Diário de
Notícias. Salvador, 25-26/dez.1960.
[9] Referência a Sergei M. Eisenstein, cineasta russo,
realizador de O Encouraçado
Potemkin (Bronenosets
Potymkin, 1925), Outubro (Oktyabre, 1927), Alexander Nevsky (Aleksandr Nevskii,
1938) e Ivã, o terrível (Ivan Grozny, 1944-1945).
Produzir... dirigir... botar a mâo na câmera e filmar como se fosse uma questao de vida ou morte. E não era ? Cinema visceral. Glauber é um desassossegado. Pergunta pelo Brasil dos brasileiros, pergunta pela brasilidade de um país que vive a cópia como se fosse o original. Ritmos, sons, atabaques, falas populares, o poder, a cidade, a aldeia de pescadores, o sol inclemente no estouro da luz, a gente quase vê o vento. Sinestesia. A pesquisa como parte integrante do filme. Nâo se esconder a oficina. Glauber é um artesão da forma. Conteùdo revolucionário com forma revolucionária. Entendeu Maiakovski perfeitamente bem. Oswald é antropofágico de mala e cuia. Salve Oswald de Andrade ! Cinema de autor sim, com recibo marcado. Não esse cinema bossal que enchem os cinemarks e moviecoms com cheiro azedo de pipoca e baldes de refri. Cinema de autor é o que estamos precisando. Again. Por que não? Mais uma vez, volto ao belo texto do cineasta russo Tarkovski:
ResponderExcluir" O CINEMA É A ÚNICA FORMA DE ARTE EM QUE O AUTOR PODE SE CONSIDERAR COMO O CRIADOR DE UMA REALIDADE NAO CONVENCIONAL, LITERALMENTE, O CRIADOR DE SEU PRÓPRIO MUNDO. NO CINEMA, A TENDÊNCIA INATA DO HOMEM PARA A AUTO-AFIRMAÇÂO ENCONTRA UM DOS SEUS MEIOS DE REALIZAÇÃO MAIS COMPLEXOS E DIRETOS. UM FILME É UMA REALIDADE EMOCIONAL, E É ASSIM QUE A PLATÉIA O RECEBE - COMO UMA SEGUNDA REALIDADE".
Luis Estrela de Matos
Pois é, Luís...
ExcluirComo sinto falta do Glauber e de toda a sua visceralidade, de sua vocação incendiária e iconoclasta. Nem precisávamos concordar com as argumentações dele... Ele, saudavelmente, produzia uma provocação, chamando todo mundo às falas. Não havia calmaria com ele perto. A citação que você apresenta, do Tarkovski, cabe direitinho no Glauber. Gozado! Às vezes gosto de pensar que ele nos observa pela intermediação de Solaris. Refiro-me ao filme do Tarkovski, evidentemente!!!!!! O outro, realizado pelo Soderbergh... Tradução? Traição? Banalização?
Abraços.
Eugênio, concordo com você. Sua análise do filme é profunda e sábia. Glauber iria rir muito dos comentários paralelos.
ResponderExcluirAbraço,
Julio César de Miranda
Olá, Júlio!
ExcluirObrigado! Gostaria de saber o que Glauber pensaria do que escrevi. Se vivo, o que estaria filmando? Aliás, estaria filmando? Ainda haveria espaço para ele em meio a tanta pasmaceira?
Abraços.
Sem puxasaquismos aqui, o Glauber iria gostar de seu texto, Eugenio Guimaraes. Com certeza. Primeiro pela propriedade , e transparencia, com que voce fala dos assuntos da setima arte. Dos textos que eu ja li aqui em seu blogue o camarada fica com vontade de ver ( ou rever) os filmes. Entao a missao esta cumprida. O texto remetendo ao filme . Estabelece-se dialogo produtivo. Cade isso no jornalismo brasileiro? Onde andam os criticos de cinema deste imenso continente? Vixe ! E melhor eu me calar entao... Ha um jeito sincero e melancolico de dizer as coisas. Esse e o Eugenio.
ExcluirLuis Estrela de Matos
Olá, Luís!
ExcluirNão há mais espaço para crítica no jornalismo brasileiro. Aliás, não há mais espaço para crítica em jornalismo algum. Nem para as notícias, seriamente tratadas, sobra espaço atualmente. Tudo é reduzido ao mais superficial dos tratamentos. Sempre me apavoro diante das reformas que os jornais sofrem nos formatos. Ultimamente, isso vem acontecendo frequentemente. A cada reforma menos espaço sobra para o texto e, logicamente, para a reflexão. Não é culpa dos jornalistas, muito menos dos críticos. Existem muitos bons críticos por aí. Mas, a eles, é concedido menos espaço, cada vez mais.
Tenho saudades do Caderno B do "Jornal do Brasil" dos anos 60 e 70. Nele, Ely Azeredo e José Carlos Avellar brilhavam na crítica. Você nem precisava gostar do que escreviam. Mas dava gosto ver o espaço e o tempo) que tinham para abordar um filme, as argumentações que teciam... Geralmente, uma página inteira era dedicada à exposição de ambos. Um ocupava a parte superior da dobra, o outro a inferior. Era o tempo em que as letras dos jornais eram menores. Hoje, as letras são enormes e as fotografias, que eram economicamente utilizadas e dispostas, também aumentaram de tamanho e se multiplicaram pela página. Esta também ficou ficou menor.
Os jornais, hoje, destinam-se cada vez mais aos açougues e à parte inferior das gaiolas de passarinhos.
Abraços.
Por conta do Barravento "do Eugênio". Fui assistir, com a devida calma, e sozinho, O terra em transe... Jardel Filho, Glauce Rocha, Carvana, José Lewgoy, Paulo Gracindo, Paulo Autran, Francisco Milani, Jofre Soares, A Danusa ( só pode ser a Leão...)... que turma!!! O Glauber surta de verdade e seus surtos realmente parecem ter a marca de uma genialidade. Parque Laje dos anos 60 ! Barra da Tijuca livre dos homens e dos shoppings... As praias desertas de Tom Jobim se fazendo imagem. Glauber delira em alta voltagem. Tudo delira ali. Anti-naturalista, Glauber me pareceu franco-atirador de verdade. Tiros na Esquerda e tiros na Direita. Por demais simbólico? Quero dizer, por demais alegórico? E a vida... o que é? Jardel Filho impagável...Sua força, sua marca... ele imprime na história o estigma do poeta na modernidade. Sem lugar. Há que se saber ver um filme. Estou aprendendo. Até
ResponderExcluirLuis Estrela de Matos
Caro Luís,
Excluir“Terra em transe”, para mim, é o melhor filme do Glauber. Pela primeira vez, no cinema, um realizador teve a lucidez de perceber como esse país é complicado, isso numa época em que muitos pareciam ter a fórmula correta para reparar os nossos males estruturais. Glauber, nos seus surtos, vê uma complexidade que ridiculariza das facilidades e esquematismos das fórmulas de ocasião. Ele não é um franco atirador. Muito ao contrário. Ele apenas se integra, como artista criador de imagens, à realidade de um país que parece produto de um delírio. É essa pulsação que o filme transmite... “Terra em transe” é a alegoria de um país de possibilidades, onde muito há a fazer, a ponto de qualquer tentativa de construção se tornar, mesmo, uma impossibilidade. Diante disso, fica-se atônito, perdido, como o personagem de Paulo Martins.
Abraços
A religião levando ao imobilismo.
ResponderExcluirMisticismo e pobreza.A beleza dos cantos dos pescadores e as mortes no mar! Bahia,Brasil