domingo, 23 de abril de 2017

SÃO PAULO E SHIRLEY SOMBRA NO PULP FICTION DE CHICO BOTELHO

Promissor, o cineasta brasileiro Francisco Cassiano Botelho Jr. — Chico Botelho — sequer esquentou lugar. A meteórica carreira de realizador resultou em apenas dois longas: Janete (1982) e o esteticamente interessante e falho Cidade oculta (1986). Faleceu em 1991, aos 43 anos. Professor de cinema da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), também dirigiu curtas, escreveu roteiros, foi operador de câmera e diretor de fotografia. Tanto Janete como Cidade oculta revelam atração pelo tema da marginalidade urbana. O primeiro aborda a trajetória de uma garota pobre, empurrada para a prostituição, criminalidade e detenção pelos imperativos imediatos da sobrevivência. O segundo, de concepção mais arrojada, é misto de musical e policial ambientado quase que invariavelmente nas áreas marginais de São Paulo. O roteiro, repleto de improvisações, mira a violência e arbitrariedade da polícia em relações espúrias com o tráfico de drogas, extermínio de indesejáveis e ambientes esfumaçados das casas noturnas. Nestas, brilha a escolada trambiqueira e dançarina Shirley Sombra (Carla Camurati), sobrevivente anti-heróica, conhecedora dos segredos para se orientar convenientemente entre os perigos à espreita nas vielas e quebradas. Do mesmo traquejo não goza o perdedor Anjo (Arrigo Barnabé), predestinado a ser devorado pela enigmática e sempre mutável noite paulistana. A apreciação a seguir é de 1987.







Cidade oculta

Direção:
Chico Botelho
Produção:
Wagner Carvalho, Walter Rogério, Nikkey Palace
Orion Cinema e Vídeo, Embrafilme
Brasil — 1986
Elenco:
Carla Camuratti, Arrigo Barnabé, Cláudio Mamberti, Celso Saiki, Jô Soares, Jayme Del Cueto, Chiquinho Brandão, Wilson Sampson, Christina Sano, Renata Giglioli, Paulo Barnabé, Goemon, Itamar Assunção, Beth Coelho, Ana Kfoury, Lali Krotoszynk, Manfredo Bahia, Satã, Raimundo Mattos, Uady Filho, M. Antônio Araújo, Michel, Tânia Celidônio, Marcelo Higussi, Fernanda Marmorato, Guilherme Werner, Juarez Estevan, Daniele Cataldi, Fábio Moreira, Tonhão Parlato, Robson Azevedo, Clemente, Ronaldo Passos, Pato Papaterra.



O cineasta Chico Botelho, falecido precocemente em 1991, aos 43 anos



Quatro anos após estrear no longa metragem com Janete (1982), Chico Botelho apresenta o instigante, diferente, curioso e pouco satisfatório Cidade oculta, grande vencedor do Rio-Cine Festival de 1986: acumulou prêmios para melhor filme, direção, música, fotografia, trilha musical e ator coadjuvante (Mamberti). Pode-se afirmar que é obra única na atualmente muito devastada paisagem cinematográfica brasileira. Por aqui, até o momento, nada lhe faz paralelo. Esse aspecto deve ter sensibilizado os jurados do Rio-Cine, ávidos por novidades.


Quando fez Janete, Botelho contou com a estreita colaboração de Arrigo Barnabé e Walter Rogério. O trio considerou a experiência frutífera. Assim, resolveu conjugar esforços em outro trabalho. A partir de um fiapo de ideia sugerido por Barnabé — na noite paulistana, um veículo de transporte se acidenta ao ser atingido por uma pedra —, nasceu o roteiro de Cidade oculta, premiado pela Embrafilme em concurso realizado na capital de São Paulo[1].


A ideia germinal foi mantida. O próprio Arrigo Barnabé interpreta o outsider Anjo, personagem principal da trama e condenado a sete anos de prisão por envolvimento acidental com o tráfico de drogas. Tudo porque, premido pela necessidade, aceitou transportar uma carga não revelada. No trajeto noturno, capota quando um bloco de concreto é arremessado contra o veículo. Ferido e preso nas ferragens, Anjo teme o pior. Aconselha o acompanhante Japa (Saiki), que escapou ileso, a se afastar do local. Depois de testemunhar o roubo de embalagens de cocaína ocultas no carregamento, é preso pelo notório Delegado Nestor Fraga (Mamberti), conhecido como implacável e incorruptível defensor da lei. Porém, transforma-se, à noite, no criminoso Ratão — toxicômano demente, traficante, líder de quadrilha formada por policiais corruptos e exterminadores.


Anjo (Arrigo Barnabé), ferido em acidente

Anjo (Arrigo Barnabé) e Japa (Celso Saiki)

Cláudio Mamberti como o corrupto delegado de polícia Nestor Fraga, vulgo Ratão


Libertado e desempregado, Anjo encontra abrigo entre as instalações e equipamentos de dragagem do Rio Pinheiros. Passa o tempo revirando o fundo turvo das águas em busca de algo de valor. Numa noite reencontra Japa, que o questiona sobre o acidente e o verdadeiro teor da carga acidentada. Fecha-se em evasivas. Mas passa a revisar as circunstâncias que o levaram à prisão. Começa a investigar por conta própria. Conhece, no cabaré SP-Zero, a enigmática Shirley Sombra (Camurati). A garota, autoconfiante e individualista, parece saber de muita coisa. Na realidade, é uma criminosa travestida de dancing girl.


Carla Camurati como a dançarina e trambiqueira Shirley Sombra


Por meio de Shirley, Anjo acumula e cruza informações. Descobre que caiu em armadilha preparada pelo próprio Ratão. O violento misto de policial e bandido não titubeia diante de ameaças: livra-se delas, de imediato. Mas não goza de tanta autonomia. É controlado por Bozo (Del Cueto), proprietário da SP-Zero. Porém, ciente de que Anjo está cada vez mais perto da verdade, trama para eliminá-lo de vez. Acompanhado dos asseclas, cerca-o num sobrado mantido sob violento tiroteio. Japa morre. Anjo é o próximo a tombar, eliminado pessoalmente pelo policial matador. Shirley chega tarde para ajudá-lo, mas a tempo de eliminar Ratão. A seguir, transforma-se em lenda ao desaparecer na misteriosa noite de São Paulo.


Ao centro, Japa (Celso Saiki) e sua gang

  
Aficionados pelo gênero policial — tanto os filmes quanto a literatura barata (em quadrinhos e bolsilivros) vendida em bancas de jornais — sabem que o argumento de Cidade oculta não é pródigo em novidades. Chico Botelho e parceiros de roteiro são os primeiros a reconhecer a falta de originalidade da trama. Confessam — e a narrativa revela de imediato — que a história recicla influências dos filmes noir, de antigos seriados criminais, das aventuras de Spirit escritas por Will Eisner e até de novelas radiofônicas como as protagonizadas pelo Sombra — aquele que sabe do mal oculto nos corações dos homens. Provavelmente, veio desse personagem o sobrenome de Shirley. Além do mais, ela se revela profunda conhecedora da natureza humana, à semelhança do vingador radiofônico.


Ratão (Cláudio Mamberti) e Shirley Sombra (Carla Camurati)

  
Mas essa história banal é apenas o fio pelo qual Botelho, Barnabé e Walter Rogério revelam algo mais sedutor: a capital paulista fotografada por ângulos inusitados, principalmente à noite. A metrópole — reduto do caos, da desesperança e da vacuidade — é a verdadeira estrela do filme, razão de todo o seu interesse e fascínio. Recriada pelas lentes e luzes expressionistas da fotografia escura e densa de José Roberto Eliezer, São Paulo se apresenta sedutora, misteriosa e ambivalente. É uma estrutura que não se revela totalmente; como se fosse a própria esfinge ameaçadora e impiedosa: devora quem não a decifra, principalmente aqueles que desconhecem os códigos para se orientar por suas regiões mais escuras e intestinas. O romântico Anjo está entre esses perdedores. Tomba por falta de jogo de cintura para encarar a cidade. Essa ambivalência é essencial à sobrevivência de Shirley — espécie de alma gêmea da selva de néon e concreto: publicamente, não se entrega nem se deixa tocar.


Anjo (Arrigo Barnabé) e Shirley Sombra (Carla Camurati)

  
A música enérgica e instigante de Arrigo Barnabé mistura sem o menor pudor gêneros e estilos os mais diversos e díspares. Vão da valsa ao rock, do jazz ao brega, do samba ao soul, sem deixar de lado as contribuições de autores clássicos. Tudo isso reforça a ousadia do visual. Confere sentido aos planos, magnetiza a imagem, traduz o convite que São Paulo oferece para conduzir os incautos ao emaranhado de perdições que a metrópole encerra. Arrigo Barnabé é um talento que, espera-se, deve se firmar. Como compositor criativo há muito disse a que veio. Agora, mostra-se promissor no campo das trilhas de cinema. Contribuiu para o equivocado e horroroso Tensão no Rio (1981), de Gustavo Dahl; Estrela nua (1984), de Ícaro Martins e José Antônio Garcia; Vera (1986), de Sérgio Toledo; e Janete. Suas composições ilustram e comentam as imagens. Não se reduzem a meros acompanhamentos aleatórios, como acontece em muitos casos.


A montagem de Danilo Tadeu é outro trunfo. Faz a história fluir com leveza e agilidade. Os figurinos predominantemente negros de Ana Mara Abreu acrescentam mais pontos ao esforço de produção.


Porém, se há, de um lado, as excelências da fotografia, da música, da montagem e dos figurinos, sobram, de outro, as deficiências provocadas pelo roteiro tolo e interpretações frágeis — exceções para Carla Camurati, tão desenvolta sob a irrequieta cabeleira negra; e Cláudio Mamberti, valorizador de qualquer papel. Arrigo Barnabé como ator é lastimável. Por causa dos descompassos entre os elementos cinestéticos, Cidade oculta tem unidade quebrada ou é apenas uma suntuosa embalagem plástica desprovida de conteúdo à altura e desenvolvimento convincente. Então, não se deve estranhar se em muitos momentos tudo se parece com um interminável clip como os exibidos pelo Fantástico da Rede Globo de Televisão.


Chiquinho Brandão, como uma mistura de mágico e ventríloquo, apresenta e comenta a história.


Shirley Sombra (Carla Camurati) e Riperti (Jô Soares), receptador de produtos roubados 


Curiosa é a forma como Jô Soares conseguiu o papel de Riperti, receptador de produtos roubados — uma pequena ponta, na verdade. Ao saber que o filme buscaria inspiração nos quadrinhos de Will Eisner — um dos seus autores preferidos —, entrou em contato com a produção e implorou pela participação.


A nota dissonante vem da censura — dama de triste memória, incansável morta-viva que tanto nos assombra. Ordenou o corte da cena na qual Ratão se injeta de cocaína. A supressão acontece momentos antes de Shirley ser conduzida à presença do personagem, depois de aprisionada na loja do receptador. Felizmente, a sequência se apresenta completa na cópia em vídeo.


Anjo (Arrigo Barnabé)


Argumento e roteiro: Chico Botelho, Arrigo Barnabé, Walter Rogério, com a colaboração de Luiz Gê. Produção executiva: Wagner Carvalho. Fotografia (cores) e câmera: José Roberto Eliezer. Triha musical e direção musical: Arrigo Barnabé. Maquiagem: Maria antônia Lombardi. Continuidade: Inês Villares. Assistentes de câmera: Lito Menezes da Rocha, Cláudia Davino. Iluminação do show de Shirley Sombra: Sérgio Lima. Assistente de cenografia e figurinos: Renato de Moraes. Consultor de figurinos: José Carlos Ribeiro. Coordenação de produção: Durval Ferreira. Canção título: Arrigo Barnabé, Eduardo Gudim, Roberto Riberti. Produção associada: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, Arrigo Barnabé, Wagner Carvalho, Walter Rogério, Nikkey Ltda. Produção de elenco e assistente de direção: Maria Madalena Ionescu. Coreografia: Rosane Maia. Direção de produção: Ivan Novais. Produção de campo: Patrícia do Amaral. Som direto: Walter Rogério. Montagem: Danilo Tadeu. Cenografia e figurinos: Ana Mara Abreu. Intérpretes das canções: Tetê Espíndola, Ney Matogrosso, Vânia Bastos, Paulo Barnabé. Tempo de exibição: 75 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1987)


[1] Além de Cidade oculta, mais nove roteiros foram premiados no certame. No total, havia 120 peças inscritas.

4 comentários:

  1. Hola Eugenio.
    Aunque entiendo que la película evaluada te dejé una pobre impresión, te agradezco mucho reseñas del cine brasileño en general pues a España llega muy poca cosa a no ser en Festivales de Cine o en las filmotecas.
    Creo que lo mejor de la película que comentas es la ambientación y el conocimiento de la ciudad de Sao Paulo, así como los aspectos técnicos, fotografía, música, etc.
    En cambio unas pobres interpretaciones más un mejorable guión despiertan dudas de por qué fue premiada está película.
    Muy interesante tu análisis, y agradecimientos por aprender de otro tipo de cine contigo.
    Un fuerte abrazo.

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    1. El cine brasileño vive de ciclos, Miguel. La premiación aconteció en un momento particularmente rico de nuestra cinematografia, cuando nuevos valores estaban surgiendo, así como otros temas, más afinados con la contemporaneidade de aquel particular momento. Era una especie de renascimento. Esto, creo, influenció los jurados del Río-Cine, festival en el cual la película fue premiada. Creo que fue a causa de eso. A pesar de la película ser falla, había la gana de la novedad, de la creatividad y de apuntarse otro caminos.

      Grande abrazo y saludos, Miguel.

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  2. Gostei muito e junto com outros sobre essa trágica realidade social da vida nas cidades, creio ser uma excelente indicação para aulas sobre o tema. Usarei, claro que com sua permissão!

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    1. Querida Lérida!

      É claro que pode utilizar. Se for por causa da permissão, está mais que concedida. Beijos e abraços.

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