Eduardo Coutinho (1933-2014) |
Eduardo de
Oliveira Coutinho queria ser advogado, mas o jornalismo, teatro e cinema lhe
atravessaram o caminho. Na segunda metade dos anos 50 venceu concurso sobre
Charles Chaplin. Com o dinheiro do prêmio se estabeleceu em Paris. Em 1957,
matriculado no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), estudou
direção e montagem.
Na volta ao
Brasil, três anos depois, incorporou-se ao CPC da UNE (Centro Popular de
Cultura da União Nacional dos Estudantes). Em princípio esteve ligado aos
grupos de teatro. Mas logo se aliou aos jovens realizadores do Cinema Novo,
principalmente Leon Hirszman, Marcos Farias e Joaquim Pedro de Andrade — envolvidos
na realização do episódico Cinco vezes
favela (1962), do qual se tornou gerente de produção. Acompanhou as
caravanas da UNE Volante pelos sertões do Nordeste brasileiro e conheceu
Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira — líder de trabalhadores rurais
assassinado no município de Sapé, Pernambuco, em 1962, devido às mobilizações e
reivindicações em prol da reforma agrária por conta das Ligas Camponesas de
Francisco Julião.
Elizabeth Teixeira, viúva do líder João Pedro Teixeira, com os filhos |
O acontecimento
atraiu o interesse de Coutinho, ao qual planejou um filme estruturado como
ficção de fundo histórico. As filmagens de Cabra marcado para morrer foram interrompidas pelo golpe de
Estado de 1964 e consequente implantação da ditadura militar de 21 anos no
Brasil. Os atores eram personagens reais que, de uma forma ou outra,
vivenciarem os eventos. Dentre eles estava Elizabeth Teixeira — visada por
policias e proprietários fundiários. Ela e a família tomaram a decisão de
desaparecer, por segurança, após o golpe. Cada membro do grupo tomou paradeiro
diferente e incerto. O material filmado foi dado como perdido após a prisão do
diretor e membros da equipe por suspeita de subversão.
Cena da realização interrompida de Cabra marcado para morrer |
Em 1981, passados 17 anos, o país respirava os ares da abertura política
sob o mandato do General João Batista Figueiredo. Uma boa notícia animou Eduardo
Coutinho. As imagens de Cabra marcado
para morrer apareceram. Foram escondidas por um membro da equipe. O
projeto, retomado, foi amplamente modificado. A realização passou a reconstituir,
em forma de documentário, os eventos que lhe deram origem, e assumiu o
compromisso de localizar os envolvidos nas filmagens — nunca mais vistos desde que
foram abruptamente encerradas. O novo Cabra
marcado para morrer conseguiu, após muita pesquisa, reencontrar Elizabeth
Teixeira e filhos. Graças ao filme a família foi reunida. A realização atualiza a
história das lutas dos trabalhadores rurais no Brasil, defende a necessidade
imperiosa da reforma agrária, denuncia a concentração fundiária fortemente
ampliada durante o regime militar e a constante insegurança em que viviam e
ainda vivem as lideranças sindicais no campo. Concluído em 1984, chegou ao
circuito exibidor também nesse ano.
Depois da
interrupção das filmagens da primeira versão de Cabra Marcado para Morrer,
Coutinho se aventurou no cinema de ficção. Dirigiu O pátio, segmento do
episódico ABC do amor (1966) e O homem que comprou o mundo (1968).
Continuou a ligação com Leon Hirszman, para quem escreveu os roteiros de A
falecida (1965) — uma das melhores adaptações de Nelson Rodrigues — e Garota
de Ipanema (1967). A atividade de roteirista prosseguiu na década
seguinte: Os condenados (1973), de Zelito Viana, Lição de amor (1975), de
Eduardo Escorel, e Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto. Na direção, enveredou pela paródia com Faustão (1971), no qual transpõe
Falstaff — personagem de algumas peças de Shakespeare, imortalizado no cinema
por Orson Welles em Falstaff - O toque da meia noite (Campanadas a medianoche,
1965) — para o universo do cangaço. Prossegue no jornalismo. Faz revisão e
crítica de cinema para o Jornal do Brasil. A partir de 1975,
integrado às equipes de reportagem da TV Globo, produz e dirige episódios para
o programa Globo Repórter. É quando consolida a vocação de documentarista.
Cartaz do definitivo Cabra marcado para morrer com imagem de Elizabeth Teixeira |
O trabalho
na TV Globo avança até a retomada de Cabra
Marcado para morrer. A carreira vitoriosa do documentário, artística e
financeira, encoraja Coutinho a tentar a vida apenas como cineasta. Uma aposta
arriscada, perdida para as crônicas instabilidades da realização
cinematográfica no Brasil. Acaba prestando serviços — como diretor e autor de
roteiros — para diversas organizações no campo do audiovisual. Realizou série
para o Centro de Criação da Imagem Popular, centrada nos temas da Educação e
Cidadania; voltou à TV, no caso à Rede Manchete, para roteirizar a série Noventa anos de cinema: uma aventura brasileira,
dirigida por Eduardo Escorel e Roberto Feith, e Caminhos da sobrevivência, sobre São Paulo e a poluição.
Nesse
período de incertezas realizou documentários curtos e médios que passaram
praticamente despercebidos. Destacam-se: Santa
Marta - Duas semanas no morro (1987), Volta Redonda - memorial da greve (1989), Boca de lixo (1993), Mulheres no front (1996) e Romeiros do Padre Cícero (1994) —
encomendado pelo canal alemão ZDF Arte e apontado como insatisfatório pelo próprio
realizador.
Em 1997 a
TV Educativa (TVE) interrompeu antes do início a série Identidades Brasileiras, para a qual Coutinho executaria o
trabalho de pesquisa. Porém, nem tudo foi perdido. Surgiu daí a ideia de um
documentário sobre a religiosidade do brasileiro ou as diversas formas da relação
popular com o sagrado. Santo forte,
lançado em 1999 com apoio da Rio Filmes — presidida à época pelo jornalista e
crítico José Carlos Avellar —, é um dos trabalhos mais inspirados e
emocionantes do cineasta.
Cartaz de Santo forte - o renascimento de Eduardo Coutinho |
Santo forte é a oportunidade de novo renascimento. A partir daí
Coutinho consegue se estabelecer com certa regularidade na realização. Contribui
para isso o apoio da Vídeo Filmes dos irmãos e cineastas João e Walter Moreira
Salles. Desde então realizou ao menos sete documentários de renome, com boa repercussão,
dentre os quais Babilônia 2000 (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004) e As canções (2011). É premiado em diversas
mostras e festivais; volta a ganhar o reconhecimento da crítica, como nos tempos
de Cabra marcado para morrer.
Em fevereiro de 2014, aos 80 anos, Coutinho foi assassinado em casa, pelo filho
esquizofrênico. Na ocasião, finalizava documentário montado a partir de
entrevistas com adolescentes matriculados em escolas públicas do Rio de
Janeiro. O projeto foi concluído pelo colega, amigo e produtor João Moreira
Salles. Ganhou o título de Últimas
conversas e teve lançamento em 2015. Um ano antes de falecer, Coutinho recebeu
homenagens da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Festa Literária
Internacional em Paraty (FLIP). É justamente reconhecido como o maior
documentarista do cinema brasileiro.
Eduardo Coutinho durantes as filmagens de Babilônia 2000 |
FILMOGRAFIA
E PRÊMIOS
1. O pacto,
segmento para o episódico El ABC do
amor (1966, 95 minutos). Rodolfo Kuhn e Hélvio Souto dirigiram,
respectivamente, os segmentos Noche
terrible e Mundo mágico.
2. O homem
que comprou o mundo (1968, 90 minutos).
3. Faustão
(1970, 103 minutos).
4. Cabra
marcado para morrer (1984, 119 minutos). Recebeu o prêmio da FIPRESCI (Fédération Internationale de la Presse
Cinematográfica) no Fórum Novo Cinema do Festival de Berlim (1985). Nos mesmos
ano, fórum e festival mereceu o prêmio da Interfilm. Premiado com o Delfim de
Ouro no Festival Internacional do Filme de Troia (1985).
5. Santa
Marta - Duas semanas no morro (1987, 50 minutos).
6. Volta
Redonda, o memorial da greve (1989, 40 minutos), codirigido por Sérgio
Goldemberg.
7. O fio da
memória (1991, 115 minutos). Premiado em caráter honorário com a Margarida
de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), 1991.
8. A lei e
a vida (1992, 34 minutos).
9. Boca de
lixo (1993, 50 minutos). Recebeu o prêmio Margarida de Prata da CNBB (1994).
10. Os romeiros
de Padre Cícero (1994, 35 minutos).
11. Seis histórias
(1995, 27 minutos).
12. Mulheres
no front (1996, 35 minutos).
13. Santo
forte (1999, 80 minutos). Recebeu os troféus Candango de Melhor Filme e
Melhor Roteiro no Festival de Brasília (1999). Fez jus ao Prêmio Especial do Júri
e foi indicado ao Kikito de Ouro como Melhor Filme no Festival de Gramado
(1999). Laureado como Melhor Filme pelo Serviço Social do Comércio (SESC),
1999. Recebeu a Margarida de Prata da CNBB, 1999, e o Troféu da Associação
Paulista de Críticos de Arte (APCA) como Melhor Filme, 2000.
14. Babilônia
2000 (1999, 80 minutos). Recebeu o Grande Prêmio Cinema Brasil de
Melhor Documentário, 1999, quando também foi indicado na categoria de Melhor
Direção. Mereceu o Troféu Passista de Melhor Fotografia em Documentário de
Longa Metragem no Festival de Recife (2001) e o prêmio da APCA de Melhor Documentário
(2002).
15. Porrada
(2000, 5 minutos).
16. Edifício
Master (2002, 110 minutos). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de
Melhor Documentário, Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original (2002). Premiado
com o Kikito de Ouro de Melhor Documentário Longo no Festival de Gramado (2002).
Mereceu a Menção Especial como Melhor Documentário no Festival de Havana
(2003). Laureado com a Margarida de Prata da CNBB (2002). Recebeu o Troféu APCA
de Melhor Documentário (2002). Venceu o Prêmio da Crítica como Melhor
Documentário no Festival Internacional do Filme de São Paulo (2002).
Cena de Edifício Master |
17. Peões
(2004, 85 minutos). Venceu o Troféu Candango de Melhor Filme e o Prêmio da
Crítica no Festival de Brasília (2004). Recebeu o Troféu APCA de Melhor Filme
(2005).
Cartaz de Peões |
18. O Fim e
o Princípio (2005, 110 minutos). Premiado pela Associação de
Correspondentes da Imprensa Estrangeira no Brasil (ACIE) como Melhor Documentário
(2006). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Diretor e Melhor
Documentário (2005). Laureado pelo Júri como Melhor Direção de Documentário pelo
Prêmio Contigo de Cinema (2006). Recebeu o Prêmio Humanitário no Festival
Internacional do Filme de São Paulo (2005).
Momento de O fim e o princípio |
19. Jogo da
cena (2007, 100 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor
Documentário e foi indicado pela Melhor Direção (2008). Indicado ao Grande
Prêmio Cinema Brasil por Melhor Roteiro Original (2008). Laureado com o Alhambra
de Ouro no Festival Cines del Sur de Granada (2008). Premiado pelo Júri do
Prêmio Contigo de Cinema por Melhor Direção de Documentário (2007). Premiado
pelo SESC nas categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor (2008).
Eduardo Coutinho entrevista a atriz Marília Pêra em Jogo de cena |
20. Moscou
(2009, 78 minutos). Recebeu o Prêmio da Critica como Melhor Documentário no
Festival de Paulínia (2009). Indicado pelo Júri como Melhor Direção de
Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2009).
Momento de Moscou |
21. Um dia
na vida (2010, 94 minutos).
22. As
canções (2011, 90 minutos). Recebeu o Prêmio da ACIE como Melhor
Documentário (2011). Indicado ao Grande Prêmio Cinema Brasil de Melhor Direção e
Melhor Documentário (2011). Indicado pelo Júri na categoria de Melhor Direção
em Documentário ao Prêmio Contigo de Cinema (2011). Mereceu o Prêmio Première
Brazil de Melhor Documentário e Prêmio do Público no Festival Internacional do
Filme do Rio de Janeiro (2011). Venceu o Prêmio do SESC como Melhor Documentário
(2012).
Cartaz de As canções |
23. Últimas
conversas (2015, 85 minutos), finalizado por João Moreira Salles.
Eduardo Coutinho durante as filmagens de Peões |
(José Eugenio Guimarães, 2015)
Qué bien nos lo cuentas, amigo. Muy interesante. Gracias por compartírnoslo.
ResponderExcluirAbrazos
Gracias por el aprecio, José Valle Valdés, porque Eduardo Coutinho es importante, un cineasta que no merece ser olvidado.
ExcluirAbraços.
Eugenio,
ResponderExcluirNão conheço profundamente o trabalho do Coutinho e, por não gostar de Cabra Marcado Para Morrer, assim como por ouvir elogios demais a fita, sinto-me na obrigação de rever com mais atenção e mais vontade este filme. Não é possível que somente eu não ame tanto esta fita. Irei por lá novamente.
Por um outro lado, se eu não conhecesse 2 formidáveis trabalhos deste documentarista/diretor eu não teria conhecido um pouco mais outros lados da vida humana.
E o Coutinho conseguiu me mostrar isto em Edificio Master/02 e em As Canções/11.
São duas joias raras e além de preciosíssima do cinema brasileiro. Fitas que quem não as viu deve sair às carreiras para conhece-las, pois ali se consegue ver, captar e absorver, além de se sensibilizar profundamente, nos muitos instantes de muitas vidas e instantes onde muitos de nós estamos enquadrados fatalmente.
Ser dono destas duas criações pode se fazer uma medição do que mais pode existir de perfeito e aproveitável de sua obra, razão pela qual caminho sempre de olhos atentos ao que se passa na TV, para o caso de não perder nada feito por este grande homem do cinema.
.
Edifício Master e As Canções não são dois filmes simples e sim dois preciosos achados dentro deste universo tão variável.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirJá que gostou tanto dos preciosos EDIFÍCIO MASTER e AS CANÇÕES, procure ver, obrigatoriamente, SANTO FORTE. É um dos mais felizes e sinceros trabalhos que um cineasta poderia ter realizado. Veja-o, o quanto antes. Não ira se arrepender.
Abraços.