domingo, 14 de dezembro de 2014

WILLIAM FRIEDKIN HOMENAGEIA O BURLESCO EM SEU TERCEIRO TRABALHO PARA O CINEMA

Notabilizado por Os rapazes da banda (The boys in the band, 1970), Operação França (The French connection, 1971) e O exorcista (The exorcist, 1973), William Friedkin tem em Quando o strip-tease começou (The night they raided Minsky's, 1968) sua terceira oportunidade na direção cinematográfica. A história — ambientada em Manhattan durante os agitados anos 20 — rende homenagens à era de ouro do teatro burlesco. Teria como elemento condutor a figura mítica e referencial de Bert Lahr, o Leão Medroso de O mágico de Oz (The wizzard of Oz, 1939), de Victor Fleming. Entretanto, a morte do ator durante as filmagens impôs radical alteração à proposta inicial. Houve ainda o afastamento do diretor durante a pós-produção, quando a primeira montagem foi considerada desastrosa. A conclusão dos trabalhos ficou sob responsabilidade exclusiva do editor Ralph Rosenblum. A narrativa trata das investidas do fundamentalismo religioso de diversos matizes contra o universo burlesco representado pela casa de espetáculos National Wintergaten ou Minsky. Como elemento complicador há as intenções da jovem amish Rachel Schpitendavel (Britt Ekland). Fugitiva da comunidade de pertencimento e procurada pelo irascível pai Jacob Schpitendavel (Harry Andrews), ela pretende encenar danças baseadas em motivos bíblicos no palco do profano e visado Minsky.






Quando o strip-tease começou
The night they raided Minsky's

Direção:
William Friedkin
Produção:
Norman Lear
Tandem Productions
EUA — 1968
Elenco:
Jason Robards, Britt Ekland, Norman Wisdom, Forrest Tucker, Harry Andrews, Joseph Wiseman, Denholm Elliott, Elliott Gould, Jack Burns, Bert Lahr, Gloria LeRoy, Eddie Lawrence, Dexter Maitland, Lillian Hayman, Richard Libertini, Judith Lowry, Will B. Able, Mike Elias, Frank Shaw, Chanin Hale, Ernestine Barrett, Kelsey Collins, Marilyn D'Honau, Kathryn Doby, Joanna Rush, Dorothea MacFarland, Billie Mahoney, Carolyn Morris, June Eve Story, Helen Wood, Rudy Vallee e os não creditados Mary Boylan, Henry Calvert, Herbie Faye, Stephen Fitzstephens, Trent Gough, Lester Mack, Joe E. Marks, Remo Pisani, Ellen Stretton, Fat Thomas.



O diretor William Friedkin, apontando, durante as filmagens de Os rapazes da banda (The boys in the band, 1970)


Lower East Side, Manhattan, New York, 1925: fervilham os loucos anos 20, mas não por muito tempo. O “dedo da retidão” — representado por Jacob Schpitendavel (Andrews), Vance Fowler (Elliott) e Louis Minsky (Wiseman) — está prestes a encerrar esse período alegre e permissivo da cultura popular dos Estados Unidos, pelo menos no tocante ao teatro burlesco e particularmente ao National Wintergarten de Billy Minsky (Gould, estreando nas telas). Seu pai, Louis Minsky — judeu ortodoxo, moralista e negociante implacável —, é proprietário do imóvel no qual se instala a casa de espetáculos. Pretende tomá-lo devido aos alugueis em atraso. Vance Fowler — puritano típico, ponta de lança de algo parecido a uma liga da moral e dos bons costumes —, é presença constante na plateia do lugar. Anota e julga tudo o que é apresentado, sempre atento aos vícios e desvios de conduta. Aguarda o menor deslize para solicitar intervenção policial e lacrar o local. Jacob Schpitendavel — fundamentalista da seita Amish — chega a New York procedente de Smoketown, Pensilvânia. Vem em busca da filha recalcitrante, a jovem inocente e angelical Rachel Elizabeth Schpitendavel (Ekland). Ela fugiu dos rigores da comunidade religiosa. Pensa encontrar no National Wintergarten oportunidade à encenação de danças baseadas em passagens bíblicas.




Acima e abaixo: a inocente e puritana Rachel  Elizabeth Schiptendavel (Britt Ekland) chega ao pecaminoso Lower East Side, em Manhattan


As primeiras cenas de Quando o strip-tease começou apresentam Manhattan nos anos 20 — um mix de imagens autênticas e recriadas pela produção. Sob capa de tom francamente nostálgico se alternam o preto-e-branco e cores na exibição das ruas fervilhantes da metrópole, tomadas por feirantes, fluxo intenso de automóveis, multidão apressada e malabaristas. A esse frenesi urbano chega a deslumbrada Rachel. Na comunidade Amish nem luz elétrica conhecia. Certamente, tinha a Bíblia como única leitura permitida.


Raymond Paine (Jason Robards) e a amish fugitiva, Rachel Elizabeth Schiptendavel (Britt Ekland)


A abertura de Quando o strip-tease começou está entre as melhores coisas do filme. É deliciosamente delicada e envolvente, mesmo aos espectadores que pouco sabem de New York e seus significados. Pouco antes, a voz de Rudy Vallee apresentava, em poucas palavras, o básico da trama: o caso de uma garota muito religiosa que, acidentalmente, teria inventado o strip-tease. A intervenção de Vallee — característica do cinema da época — introduz o espectador no tom bem-humorado da história. Ao cinema de hoje, tal comentário soaria totalmente inoportuno, principalmente às plateias facilmente irritáveis com dicas adiantando desdobramentos narrativos e o feito a cargo da personagem de Ekland. Tanto zelo não passa de bobagem, pois em que pese a importância da narrativa, maior valor reside na forma de traduzi-la cinematograficamente. Residem aí as maiores fragilidades do filme. Por outro lado, a comédia de William Friedkin parece se ressentir — vista 44 anos depois de realizada — do mesmo mal que afetou outros exemplares do gênero vindos à luz nos anos 60 da centúria passada, como A corrida do século (The great race, 1964), de Blake Edwards; Um convidado bem trapalhão (The party, 1968), também de Edwards; Deu a louca no mundo (It’s a mad, mad, mad, mad world, 1963), de Stanley Kramer; e Cassino Royale (Cassino Royale, 1967), de Val Guest et al.: o envelhecimento do humor, que soa cansado e pouco espontâneo aos olhos e ouvidos de hoje. Uma pena!


Além de sofrer com os efeitos capitais do tempo, a produção enfrentou outras adversidades, antes e depois da realização. William Friedkin perdeu a mão, a ponto de praticamente se inviabilizar frente ao projeto. Concluiu as filmagens e participou da primeira montagem — considerada desastrosa — de Quando o strip-tease começou. É o terceiro título de sua filmografia, na qual despontam os sucessos de Os rapazes da banda (The boys in the band, 1970) — proibido no Brasil durante a ditadura militar —, Operação França (The French connection, 1971) — premiado com o Oscar de melhor filme — e O exorcista (The exorcist, 1973). Segue a Good times (1967) e Feliz aniversário (The birthday party, 1968).


Com a defecção de Friedkin, o produtor Norman Lear confiou a conclusão dos trabalhos inteiramente ao montador Ralph Rosenblum, que se dedicou à tarefa por mais de um ano. Teve que lidar com a imprevisibilidade da morte, durante as filmagens, de Bert Lahr, o Leão Medroso de O mágico de Oz (The wizzard of Oz, 1939), de Victor Fleming. Além de interpretar o Professor Spats, velho e aposentado ator do burlesco — ao qual apresentaria e introduziria Rachel Schpitendavel —, a presença de Lahr oferecia importantes referências afetivas, históricas e simbólicas ao filme. Lahr atuou no burlesco em seu período áureo. O roteiro de Arnold Schulman, Sidney Michaels e Norman Lear lhe reservou espaço generoso de participação, inclusive a formação de autêntica parceria à moda burlesca, nos momentos finais, com o inglês Norman Wisdom, intérprete de Chick Williams. Wisdom é um dos maiores nomes do burlesco britânico. O duo que formaria com Lahr pretendia clara e bem merecida reverência a um tipo de encenação que marcou toda uma era e foi escola para Charles Chaplin, Harold Lloyd, Buster Keaton, Stan Laurel, Oliver Hardy, Harry Langdon etc. Infelizmente, Lahr ficou reduzido ao mínimo.


O professor Spats (Bert Lahr) seria o elemento condutor da história, mas o ator faleceu durante as filmagens


Rachel e suas danças baseadas em motivos bíblicos parecem ser a última esperança do National Wintergarten ou Minsky. O teatro está prestes a sucumbir frente às pressões do proprietário do imóvel e investidas nada ortodoxas do gângster Trim Houlihan (Tucker). Este, além de credor de Billy, também se locupleta com as atrizes da casa. Mais preocupante, porém, é a cruzada moralista desferida por Fowler. Resolvem desacreditá-lo, a partir de plano do extrovertido Raymond Paine (Robards) — uma das principais estrelas do Minsky e parceiro do tímido e ingênuo Chick Williams. Rachel será anunciada como próxima atração, na pele da fabulosa e ousada Madame Fifi, dançarina que “enlouqueceu Paris”. Mas quando os policiais arregimentados por Fowler fizerem o raid ao teatro, para fechá-lo definitivamente, encontrariam somente a casta e inocente garota em entediante cena bíblica. Pronto! Fowler terminaria desmoralizado e o Minsky seria salvo, provavelmente.



Raymond Payne (Jason Robards) e Chick Williams (Norman Wisdom)


Williams ensina a Rachel a coreografia básica do burlesco. No entanto, apaixona-se por ela. Mas quem leva a melhor é o pouco escrupuloso Paine com suas segundas intenções. Seguem-se as reviravoltas cômicas e o momento em que Rachel é encontrada pelo irascível pai. Paine também fracassa na tentativa de seduzi-la. De equívoco em equívoco a teimosa jovem cai nas garras de Houlihan e não cumpre a promessa feita ao velho Jacob Schpitendavel, de voltar para Smoketown.



Elliott Gould como Billy Minsky


Chega a noite da apresentação de Madame Fifi. Fowler e os policiais estão a postos. A plateia espera, inquieta. Os personagens principais aguardam suas deixas nos bastidores. Contrariada por Minsky, Paine e o pai — que tentam impedi-la de entrar em cena, inclusive contando-lhe a verdade sobre a francesa da dança que “enlouqueceu Paris” —, Rachel comparece diante do público alvoroçado. De início intimidada, mas também incentivada pela multidão, a jovem amish executa os passos básicos do burlesco e agita os quadris. Cada vez mais encorajada e lançando olhares desafiadores aos que a observam da coxia, acentua sua representação bíblica — que não deve estar muito distante da encenação parisiense de uma Madame Fifi supostamente real e de passagens picantes recriadas pela imaginação na leitura de determinados textos de o Livro dos Livros. Rachel tira uma luva! A outra! O lenço! Exibe as pernas sob o vestido longo recortado! O público delira! De repente, para choque dela e de todos, os seios são revelados, acidentalmente. Escândalo! É o momento aguardado por Fowler! A polícia intervém! Tumulto! O filme termina com detenção generalizada. Mas não é o final. Ou é apenas para uma fase do burlesco. As imagens derradeiras exibem pés sobre o tablado. São, supostamente, do Professor Spats. Suas mãos se abaixam. Recolhem um borrifador de água e o depositam no degrau de uma escada portátil. Escada e borrifador! São elementos essenciais do burlesco clássico, abandonados no palco após o tumulto. Parecem simbolizar uma era de inocência que chega ao fim, dando lugar ao novo tempo anunciado pelo ato ousado de Rachel Schpitendavel como Madame Fifi.


A dupla Raymond Paine (Jason Robards) e Chick Williams (Norman Wisdom)


 Rachel Elizabeth Schiptendavel (Britt Ekland) banca Madame Fifi

  
Apesar de homenagear a era de ouro do burlesco nos Estados Unidos, apoiando-se em narrativa também impregnada de burlesco, nem tudo funciona a contento em Quando o strip-tease começou. As coisas parecem fora de lugar. Visivelmente faltaram à produção elementos básicos que confeririam autenticidade e equilíbrio à narrativa. Pode ser, também, que o tom de comédia burlesca já não funcionasse mais com o filme visto tantos anos após a estreia. Ou, então, o andamento de fato se ressentiu com a morte de Bert Lahr e exclusão de sua parceria com Norman Wisdom. A sueca Brit Ekland extravasa simpatia e se mostra à vontade na sua representação de ingênua maliciosa. Algumas cenas e sequências isoladas são muito boas no fornecimento de material cômico: Chick Williams de mangueira em punho, lançando água sobre Raymond Paine, como a lhe apagar o fogo no momento em que fazia a corte a Rachel; a cama de Paine se abaixando automaticamente — parecendo um sinal de Deus para Rachel — e subindo rapidamente no instante em que o pai dela bate à porta; e o diálogo mais que revelador entre os fundamentalistas Schpitendavel e Minsky, quando este diz ao outro: “Apenas um Deus capaz de tolerar a mim poderia tolerar você”.






Roteiro: Arnold Schulman, Sidney Michaels, Norman Lear, baseados no livro When the shooting’s done the cutting begins de Rowland Barber. Produção associada: George Justin. Música: Charles Strouse. Direção de fotografia (cores): Andrew Laszlo. Montagem: Ralph Rosenblum, Pablo Ferro (não creditado). Casting: Marion Dougherty, Bernie Styles (extras). Desenho de produção: Jean Eckart, William Eckart. Direção de arte: John Robert Lloyd. Decoração: John Godfrey. Figurinos: Anna Hill Johnstone. Maquiagem: Irving Buchman. Penteados: Robert Grimaldi. Gerente de produção: Jim Di Gangi. Direção de segunda unidade, títulos de abertura e consultoria de efeitos visuais: Pablo Ferro. Assistente de direção: Burtt Harris. Segundo assistente de direção: J. Alan Hopkins. Camareiro: Richard Adee. Chefe de arte cênica: Edward Garzero. Contrarregra: Donald Holtzman. Construção de sets: Edward Swanson, Walter Way. Edição de som: Jack Fitzstephens. Produção de mixagem de som: Dennis L. Maitland. Regravação de mixagem de som: Richard Vorisek. Assistente de edição de som: Richard P. Cirincione (não creditado). Assistente de câmera: Vincent Gerardo. Operador de câmera: Richard C. Kratina. Ferramenteiro: Michael Mahony. Eletricista: William Meyerhoff. Fotografia de cena: Josh Weiner. Segundo assistente de câmera: Ron Zarilla. Guarda-roupa: George Newman, Florence Transfield. Assistente de montagem: Michael Breddan. Direção musical e orquestração: Philip J. Lang. Coreografia: Danny Daniels, Richard DeBenedictis. Assistentes para o produtor: William Giorgio, Jane Hoyt Thompson (não creditada). Continuidade: Marguerite James Powell. Secretaria de produção: Shirley Marcus. Consultor-técnico: Morton Minsky. Assistente de coreógrafo: Anne Wallace. Companhia de figurinos: Eaves Costume Company. Fornecimento de material para efeitos ópticos: The Optical House N.Y.C. Tempo de exibição: 99 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2012)

6 comentários:

  1. Eugenio,

    Conheço muito de nome o bom diretor. Porém, apenas uma fita assisti dele, que foi O Exorcista/73.

    Deste modo sinto-me incapacitado de me estender em palavras outras sobre o cineasta, embora não possa excluir que O Exorcista é um excelente filme e com uma direção muito acima da média.

    Embora tenha assistido a: A Corrida do Século/64, Deu a Louca no Mundo/63 e Cassino Royale/67, que são todos da década de 1960, jamais conheci o filme da postagem Os Rapazes da Banda/68, do William e do qual nunca tive conhecimento do titulo.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Olá, Jurandir Lima;

      Apesar de todos os percalços que atingiram o diretor e o filme, vale a pena conhecer - pelo menos é o que acho - QUANDO O STRIP-TEASE COMEÇOU. Não sei se ainda está na programação do Telecine Cult. Mesmo frustrado em suas intenções, é uma razoável comédia referencial. Não sei a quantas anda a carreira de William Friedikin nos dias que correm. Nunca mais vi coisa alguma de sua lavra. Mas parece que é um valor que se perdeu. Lamentável!

      Abraços.

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  2. Muitíssimo bom seu blog meu estimado amigo,gostei das análises,sintese e história de cada filme. Um excelente espaço cultural, fonte de pesquisa e entretenimento. Sucesso em seu belo trabalho cinematográfico. Eu tenho o meu blog http://www.analisegora.com/ é um blog de assuntos variados ou gerais faço um convite a visitar. Boa tarde e muitas glórias,abraços.

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    1. Muitíssimo obrigado, Cicero! É um blog de desenho simples, sem cores pesadas e sem muitos pontos de dispersão. É um espaço no qual dou vazão às muitas apreciações de filmes que escrevi ao longo de uma já longa existência curtida na cinefilia. Há textos dos mais diversos anos, a partir de 1974, quando comecei a me lançar no terreno da análise de filmes. Estava, então, com 18 anos. E o "negócio" continua. Também me tornei seguidor do seu blog. Forte abraços.

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  3. Una entrada muy completa,no todo es glamour en el Séptimo arte...Gracias por mostrarnos lo que hay detrás de la pantalla ME GUSTA tu blog,tu trabajo,todo ¡Gracias corazón,te espero para la siguiente entrada...!!!

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    1. Muchas gracias por la presencia y por el comentario más que animador, Maria Del Socorro Duarte. Son cosas así que nos hacen continuar, además, claro, del amor por el cine. La película en juicio no es plenamente bien realizada debido a los problemas con la producción que se acumularon en la fase del montaje. Vuelve y media, algo así acontece en el cine de Estados Unidos. Sin embargo, es una curiosidad cuyo valor se confirma con el tiempo.

      Besos.

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