Aos 22 anos, a atriz britânica Ida
Lupino estreia no cast da Warner
Brothers como a fútil, interesseira e fatal Lana Carlsen. É a fria assassina do
marido Ed (Alan Hale) em Dentro da noite (They
drive by night, 1940), de Raoul Walsh. Responsabilizada pelo crime, chega
ao tribunal em avançado estado de decomposição mental. Confessa o delito ao
qual oferece antológica justificativa: “As portas me levaram a fazê-lo!”.
Reparos podem ser feitos ao desempenho da atriz nos instantes finais. Graças ao
conjunto, porém, foi escalada como cabeça do elenco no próximo e magnífico
filme de Walsh: Seu último refúgio (High sierra, 1941). É a produção que
catapultou Humphrey Bogart definitivamente ao estrelato. Até então, era um
promissor coadjuvante. No papel de Paul Fabrini, é o quarto nome do cast de Dentro da noite. O roteiro
de Jerry Wald e Richard Macaulay quase foi recusado por Mark Hellinger —
produtor executivo da Warner. Só entrou em filmagem por pressão da esposa
Gladys Glad. Orçado em 400 mil dólares, rendeu dez vezes esse valor. A trama é
baseada na novela The long haul, de A. I. Bezzerides, e no filme Barreira
(Bordertown,
1935), de Archie L. Mayo. Dentro da noite é, inicialmente,
duro, terno, amargo e ríspido drama de estrada sobre as dificuldades sociais,
físicas e econômicas dos caminhoneiros estadunidenses durante a Grande
Depressão. Porém, evolui para um tenso e curioso melodrama de colorações próximas
ao noir. Raoul Walsh dirige com a objetividade
de sempre. A exposição direta é sincera no afeto endereçado aos personagens,
principalmente na primeira parte quando predomina abordagem de forte sensibilidade
social. No papel principal está George Raft como o pragmático Joe Fabrini,
irmão de Paul. Ann Sheridan, Alan Hale e Gale Page têm participações
significativas. Segue apreciação de 1992.
Dentro da noite
They drive by night
Direção:
Raoul Walsh
Produção:
Warner Brothers-First National
Picture
EUA — 1940
Elenco:
George Raft, Ida Lupino, Ann
Sheridan, Humphrey Bogart, Gale Page, Alan Hale, Roscoe Karns, George Tobias,
John Litel e os não creditados Eddie Acuff, William Bendix, Marie Blake, Chet
Brandenburg, Eddy Chandler, Richard Clayton, Joyce Compton, Alan Davis, Joe
Devlin, Demetris Emanuel, Frank Faylen, Eddie Fetherston, Pat Flaherty, Bess
Flowers, Brenda Fowler, Sol Gorss, Jesse Graves, Mack Gray, William Haade,
Charles Halton, John Hamilton, Phyllis Hamilton, Carl Harbaugh, George Haywood,
Oscar 'Dutch' Hendrian, Howard C. Hickman, Al Hill, J. Anthony Hughes, Paul
Hurst, Claire James, Michael Jeffers, Dorothea Kent, Mike Lally, Vera Lewis,
George Lloyd, Wilfred Lucas, Frank Mayo, Matt McHugh, Edmund Mortimer, Jack
Mower, Henry O'Neill, Pedro Regas, John Ridgely, Ralph Sanford, Cliff Saum,
Harry Semels, Charles Sherlock, Charles Sullivan, Don Turner, Dorothy Vaughan,
Max Wagner, Billy Wayne, Dick Wessel, Frank Wilcox, Norman Willis, Charles C.
Wilson, Tom Wilson, Jack Wise, Lillian Yarbo.
![]() |
O diretor Raoul Walsh |
Se não sofresse inesperado
desvio narrativo — passa de um drama de estrada, centrado na dura e instável
vida de caminhoneiros estadunidenses durante a Grande Depressão, para a condição
de melodrama alimentado por crime passional —, Dentro da noite teria
tudo para se alinhar a clássicos como Na rota do inferno (Hell
drivers, 1957), de Stanley Backer; Mercado de ladrões (Thieves'
highway, 1977), de Jules Dassin; e O salário do medo (Le
salaire de la peur, 1953), de Henri-Georges Clouzot. Nesses títulos,
homens desesperados, instáveis social e economicamente, arriscam-se por
estradas perigosas em luta contra o relógio e na boleia de caminhões inseguros.
Seja como for, a esquecida e subestimada realização de Raoul Walsh é digna de atenção.
Roteirizada por Jerry Wald e Richard Macaulay a partir da novela The
long haul, de A. I. Bezzerides, é valorizada por diálogos rápidos, enfáticos
e autênticos.
Dentro da noite é “naturalmente”
talhado para uma companhia vocacionada aos temas sociais e a um diretor de
abordagem direta qual Walsh. Apesar disso, quase não entrou em produção. Segundo
a seção de trivialidades do Internet
Movie Database (IMDb)[1],
sua existência deve ser creditada a Gladys Glad, esposa de Mark Hellinger —
produtor executivo da Warner. Ela gostou da história e convenceu o pouco
crédulo marido a transformá-la em filme. Com orçamento estimado em irrisórios
400 mil dólares, surpreendeu ao arrecadar dez vezes esse valor. De quebra, permitiu
à jovem atriz britânica e futura diretora Ida Lupino, de 22 anos — atuava no
cinema desde 1931, aos 13 —, ingressar no cast
da companhia para viver a fatal Lana Carlsen em processo de descontrole psicológico — um desempenho que dividiu opiniões. No ano seguinte, como a pobre
e sofrida Marie — mais uma vez sob as ordens de Raoul Walsh —, estará no topo
do elenco do magnífico Seu último refúgio (High
sierra). Neste filme, o quarto lugar do cast de Dentro da noite, Humphrey Bogart, irromperá como Roy Earl — ponto
de partida a uma vitoriosa e marcante carreira de ator principal.
![]() |
Ida Lupino e Humphrey Bogart em foto promocional para Dentro da noite |
Os espectadores
habituados às tramas da Warner durante a década de 30 logo identificarão os
precedentes do crime passional cometido por Lana. Localizam-se em Barreira
(Bordertown,
1935), de Archie L. Mayo, protagonizado por Bette Davis, Paul Mumi e Eugene
Palette. Estes antecipam respectivamente, com seus personagens, os papéis de
Ida Lupino, George Raft e Alan Hale na realização de Walsh. O clube noturno
gerenciado por Charlie Roark (Palette) com o apoio jurídico de Johnny Ramirez
(Muni) se transforma na empresa de transportes de carga de Ed Carlsen (Hale).
Lana Carlsen e Joe Fabrini (Raft) basicamente refazem Marie Roark (Davis) e Johnny
Ramirez vistos no filme de Mayo. A arma do crime — uma porta automática de
garagem em conjunção ao escapamento de monóxido de carbono — é idêntica em
ambos os títulos. Lana termina paulatinamente louca, tal qual Marie.
“São sempre
duros” ou “É preciso ser louco para se tornar caminhoneiro” afirmam, consecutivamente,
o frentista do posto de gasolina e a garçonete Cassie Hartley (Sheridan). Esses
testemunhos fundamentais definem alguns personagens de Dentro da noite. A falta
de dinheiro lhes é permanente; os fretes nem sempre rendem o combinado; as
dívidas se acumulam junto com as pressões de agiotas e proprietários de transportadoras.
Os condutores são obrigados a tudo na luta por ganhos extras — esperança para quitar
débitos e sustentar famílias. Por estradas perigosas aceleram para cumprir
prazos e conseguir novos fretes. Em casa, não esquentam cama. Turbinam os
sentidos com doses excessivas de café. Os veículos não passam por manutenções
periódicas e adequadas. A estreita solidariedade entre os companheiros pode dar
lugar a acirradas disputas e desavenças por cargas e privilégios nas
plataformas de estações e mercados. Tudo é válido pela melhor remuneração.
Acidentes são frequentes. Perdem-se vidas e veículos. As mortes exigem rápido
esquecimento, pois só assim é possível suportar o fluxo desumano nas rodovias.
![]() |
O caminhão dos irmãos Fabrini: Joe (George Raft) e Paul (Humphrey Bogart) |
![]() |
Na boleia: Paul (Humphrey Bogart), Cassie Hartley (Ann Sheridan) e Joe (George Raft) |
Os irmãos Fabrini
— Joe (Raft) e Paul (Bogart) — penam para permanecer na atividade de
caminhoneiros. Conseguiram a duras penas a propriedade de um veículo. Não
dependem de patrões. O primeiro é mais competitivo, ambicioso e independente.
Dificuldade alguma o abate. O outro, casado, anseia por vida mais estável e
segura. Está cansado dos excessos do trabalho no qual permanece por lealdade ao
mano. Ressente-se dos longos períodos afastado de casa e da companhia da sempre
preocupada esposa Pearl (Page). Ela gostaria de vê-lo trabalhando em horários
regulares, em algo que permitisse inclusive ganhos reduzidos desde que certos e
constantes.
Joe, mais velho,
é o líder da dupla. É convencido a agir por conta própria e com maior independência.
Assim, os irmãos não se prendem à exclusividade de contratos ou encomendas.
Passam a adquirir os carregamentos diretamente com os fornecedores e a comercializá-los
com os atacadistas. Estavam para se firmar no negócio quando acontece o
esperado e grave acidente. Paul adormece ao volante e lança o caminhão fora da
estrada. Perde um braço. O veículo fica irrecuperável. Joe escapa ileso. A
falência atinge os Fabrini. Pearl, aliviada, terá um marido aleijado mas
presente. A partir daí a orientação narrativa de Dentro da noite é
radicalmente alterada. O drama social centrado nas dificuldades de uma
categoria profissional envereda pelo melodrama de inspiração quase noir.
![]() |
Uma pausa na estrada: Joe (George Raft), Cassie Hartley (Ann Sheridan) e Paul (Humphrey Bogart) |
Paul amarga a difícil
adaptação à condição de inválido. Joe começa a trabalhar como gerente na transportadora
do amigo, boa praça e ex-caminhoneiro Ed Carlsen Este, apesar de
financeiramente realizado, não perdeu os hábitos adquiridos no contato com a
categoria de origem — motivo de permanente constrangimento para a fútil, consumista,
interesseira, possessiva e insatisfeita esposa Lana. Ela se atira sobre Joe na
esperança de reaquecer um relacionamento antigo. No entanto, o leal personagem
interpretado por George Raft bloqueia qualquer aproximação. Está apaixonado por
Cassie e com matrimônio marcado.
![]() |
Negociando a carga: Joe (George Raft), à esquerda, e, ao centro, Paul (Humphrey Bogart) |
Emocionalmente
descontrolada mas firme em seus propósitos de conquista, Lana assassina Ed. Aos
olhos da polícia a morte foi acidental. Desimpedida, a jovem viúva eleva Joe à
condição de sócio da transportadora com carta branca para gerenciar todos os
negócios. Porém, tem os escusos planos abalados ao conhecer Cassie. Enfurecida,
frustrada e corroída pelo ciúme, admite o assassinato para Joe e os motivos que
a levaram a cometê-lo. Entrega-se à polícia e confessa que agiu pressionada
pelo sócio. Presos, aguardam o julgamento. Nesse meio tempo a loucura começa a
consumi-la. Está amedrontada e acuada pela culpa quando é chamada para depor. Transtornada,
assume com exclusividade a autoria do assassinato e que o cometeu por livre
vontade. Os motivos alegados se tornaram antológicos: as portas automáticas da
garagem que trancaram Ed em meio ao mortal escapamento do veículo — “As portas
me levaram a fazê-lo!”, afirma com os olhos esbugalhados. O julgamento é
suspenso para o exame de sanidade mental da acusada. A junta médica logo confirma:
está irremediavelmente louca.
![]() |
Cassie Hartley (Ann Sheridan), Lana Carlsen (Ida Lupino) e Joe Fabrini (George Raft) |
Diretor sensível
aos dramas de pessoas comuns e em pugna com as injustiças perpetradas pelo sistema
impessoal sempre impune, Walsh fornece atenção detalhada aos meandros da
atividade do transporte rodoviário de carga. Humaniza o setor ao descrevê-lo de
forma terna e amarga. Sente-se claramente a sina de Paul. Casado e apaixonado
pela esposa, não pode, entretanto, beneficiar-se das promessas oferecidas pela
estabilidade do lar. A insegurança econômica sequer permite ao casal o luxo de
pensar em filhos, motivo da sentida frustração de Pearl. A crítica social é
enriquecida pelo nervosismo decorrente do fluxo rodoviário com seus perigos e
fatalidades. A morte de Harry MacNamara (Litel) e o acidente que inutiliza Paul
são momentos tensos e dramaticamente bem aproveitados. Pode-se criticar a
rapidez da narrativa. Mas é dessa característica que advém o impacto de Dentro
da noite, ao menos em sua primeira metade. Na estrada e em suas
dependências a vida é uma aventura no ritmo de uma louca e perigosa montanha-russa
com engrenagens azeitadas por diálogos salgados e diretos, sem a necessidade de
explicações e repetições. Os significados são prontamente apreendidos pelos aguçados
sentidos de homens com nervos à flor da pele e orientados apenas pelo instinto
de sobrevivência, conforme a lei da selva em vigor no tempo da Grande
Depressão.
Quando a
narrativa libera o melodrama, o desempenho de Ida Lupina domina a cena.
Infelizmente, a sequência do tribunal é falha. Apesar do caráter antológico da fala
“As portas me levaram a fazê-lo!”, a atuação soa falsa de tão exagerada. Porém,
a atriz brilha nos demais momentos com uma interpretação intensa e carregada. Transmite
fogo pelo olhar decidido e calculista. Atinge o ápice na contínua e exemplar
sequência do assassinato. O momento é enriquecido pelo poder descritivo da câmera
ao acompanhar o tenso e lento movimento da personagem após abandonar o marido
desacordado no carro em funcionamento até alcançar o sensor que permite o
fechamento automático das portas da garagem. A câmera, em tomadas simples, mira
os olhos da assassina num jogo silencioso que lhe transmite claramente as
intenções. É a melhor parte do filme.
![]() |
Lana Carlsen (Ida Lupino) e Joe Fabrini (George Raft) |
Em Dentro
da noite, George Raft e Humphrey Bogart atuam juntos pela segunda e
última vez. A primeira foi em Homens marcados (Invisible
stripes, 1939), de Lloyd Bacon. Joe e Paul são intensos em função das
peculiaridades das vidas que levam. Porém, os atores não fornecem atuações
particularmente memoráveis. Raft transmite segurança apesar de previsível.
Bogart ao menos pôde se diferenciar, pois ao seu personagem é permitida uma
vida doméstica incompleta, razão de frustrações e amarguras.
Ann Sheridan está
bem como Cassie, a garçonete franca e honesta na tentativa de preservar a
dignidade em situações economicamente complicadas. Por isso, ganha a simpatia,
o respeito e o amor de Joe.
Habituado aos
personagens característicos, Alan Hale oferece uma performance expansiva,
simpática e acolhedora como novo-rico Ed Carlsen — sempre preso às origens
proletárias.
![]() |
Joe Fabrini (George Raft) e Cassie Hartley (Ann Sheridan) comemoram o noivado |
Por fim, cabe
ressaltar a presença sincera da geralmente pouco notada e comum Gale Page. É
uma atriz sem atrativos extras, quase sempre relegada aos papéis menores nas
produções “B”. Como a solitária e carente dona de casa Pearl, sempre preocupada
com a sorte do marido Paul pelas estradas, consegue um desempenho de plena veracidade.
Produção executiva: Hal B. Wallis. Roteiro: Jerry Wald, Richard Macaulay, baseados na novela The
long haul, de A. I. Bezzerides. Direção
de fotografia (preto e branco): Arthur Edeson. Produção associada: Mark Hellinger. Música: Adolph Deutsch. Montagem:
Thomas Richards, Robert Burks (não creditado), Don Siegel (não creditado). Direção de arte: John Hughes. Figurinos: Milo Anderson. Maquiagem: Perc Westmore. Executivo responsável pela produção:
Jack L. Warner. Assistente de direção:
Elmer Decker (não creditado). Som:
Oliver S. Garretson. Efeitos especiais:
Byron Haskin, Hans F. Koenekamp. Dublês
(não creditado): Ed Brandenburg, Harvey Parry, Buster Wiles (p/ George
Raft). Fotografia de cena: George
Hurrell Sr. (não creditado). Joias:
Eugene Joseff (não creditado). Direção
musical: Leo F. Forbstein. Orquestração
(não creditada): Hugo Friedhofer, Arthur Lange, Jerome Moross. Direção de diálogos: Hugh MacMullen. Sistema de mixagem de som: RCA Sound
System. Tempo de exibição: 95
minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1992)
[1] Cf. DENTRO da noite. < http://www.imdb.com/title/tt0033149/trivia?ref_=tt_ql_2>
Acessado em 10 maio 1992.
Hola Eugenio, la fotografía con la leyenda de "Ida Lupino e Humphrey Bogart em foto promocional para Dentro da noite" es magnifica, muchas gracias por incluirla dentro de fantástico análisis de la película. Solo por ver a la joven Ida Lupino y a Bogart encumbrandose al estrellato ya merece la pena ver la película y leer tu escrito.
ResponderExcluirMuy interesante la trama entre el melodrama, el cine negro, y ese cine de carretera que siempre despierta mi interés independientemente de la calidad del film que podrá gustar más o menos.
Abrazos y saludos desde España.