domingo, 23 de setembro de 2018

REVELAÇÕES MARCIANAS ABALAM O MUNDO E DERRUBAM A UNIÃO SOVIÉTICA

Manter um posicionamento crítico e independente nos Estados Unidos, durante os anos 50, não deveria ser fácil. Durou pouco a euforia democrática que tomou conta do país, em pleno desenvolvimento econômico, ao fim da Segunda Guerra Mundial. A extrema direita, sempre atenta, logo se reorganizou impulsionada pelo começo da guerra fria. Ganhou força com a “caça às bruxas” bancada pelo Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas. A paranoia se instalou com o FBI de John Edgar Hoover buscando inimigos internos: progressistas e comunistas declarados, geralmente dispersos no meio artístico-cultural. O cristianismo fundamentalista, francamente belicoso, revitalizou-se. Logo os Estados Unidos estariam envolvidos na contenção ao expansionismo vermelho com a Guerra da Coreia. Enquanto isso, os cidadãos comuns temiam ataques da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nessa época, marcada por pavores e perseguições, a produção fílmica de ficção científica entrou em franco desenvolvimento. As contradições ideológicas entre Leste e Oeste eram transferidas para o espaço sideral. O vermelho planeta Marte incendiava o imaginário. Em 1952, o desenhista de produção Harry Horner estreou na direção com uma das mais bombásticas, inacreditáveis e apelativas realizações: Marte, o planeta vermelho (Red planet Mars). É produção ‘B’, hoje relegada à obscuridade e desenvolvida com competência nos planos formais. Dispensa viagens espaciais e alienígenas monstruosos. Toda a ação se passa na Terra. A trama envolve os esforços dos cientistas Chris Cronyn (Peter Graves) e Linda (Andrea King) para investigar o místico planeta por potentes ondas de rádio. As descobertas, em princípio, abalam os pilares da economia capitalista ocidental. Logo, novas e mirabolantes revelações provocam o renascimento do fervor religioso em escala global. O efeito imediato de tudo isso será a destruição do regime soviético e o descrédito de qualquer vestígio do ‘comunismo ateu’. Só vendo para crer! Marte, o planeta vermelho deixa o espectador boquiaberto e gera risos involuntários.







Marte, o planeta vermelho

Red planet Mars

Direção:
Harry Horner
Produção:
Donald Hyde, Anthony Veiller
Melaby Pictures Corporation
EUA — 1952
Elenco:
Peter Graves, Andrea King, Herbert Berghof, Walter Sande, Marvin Miller, Willis Bouchey, Morris Ankrum, Orley Lindgren, Bayard Veiller e os não creditados Ben Astar, Vince Barnett, Robert Carson, James Conaty, Wade Crosby, Claude Dunkin, Charles Evans, Franklyn Farnum, Sam Flint, Sam Harris, Ed Hinton, Tom Keene, Bill Kennedy, Colin Kenny, Henry Kulky, Grace Leonard, Dayton Lummis, George Magrill, Lewis Martin, Frank Mills, Leo Mostovoy, House Peters Jr., Joe Ploski, Gene Roth, Bert Stevens, Robert Stevenson, Brick Sullivan, John Topa.



O cenógrafo e diretor Harry Horner



O tcheco Heinrich Horner, renomeado para Harry Horner em Hollywood, firmou reputação como cenógrafo. Honrou a função ao longo de 37 anos, até encerrar a carreira em 1980. É responsável pelos desenhos de produção de Fatalidade (A double life, 1947), de George Cukor; Tarde demais (The heiress, 1949), de William Wyler; O mundo é o culpado (Outrage, 1950), de Ida Lupino; Nascida ontem (Born yesterday, 1950), de George Cukor; Por amor também se mata (He ran all the way, 1951), de John Berry; Vidas separadas (Separate tables, 1958), de Delbert Mann; Desafio à corrupção (The hustler, 1961), de Robert Rossen; e, entre outros, A noite dos desesperados (They shoot horses, don’t they?, 1969), de Sydney Pollack. Na direção cinematográfica é responsável pelos pouco vistos Escravo de si mesmo (Beware, my lovely, 1952); Vicki (1953); New face (1954), codirigido por John Beal; A noite conspira com a morte (A life in the balance, 1955), codirigido por Rafael Portillo; Blefando com a morte (Man from Del Rio, 1956); e Orgia sangrenta (The wild party, 1956). Porém, dentre os títulos que assinou o mais notório é a inacreditável ficção científica confessional Marte, o planeta vermelho.


Certamente, é realização sem paralelo na história do cinema; ousadia das mais completas. Aos olhos de hoje resiste como descarada apelação. O resultado, constrangedor, arranca risos involuntários — principalmente pelos tons de seriedade e reverência que a embalam. Nos planos formais não há queixas: é competentemente executada. Dispensa viagens espaciais e seres alienígenas. Os efeitos especiais são básicos. O planeta vermelho é somente um corpo distante alcançado por potentes ondas de rádio transmitidas dos EUA. Estas geram comunicações e descobrimentos no mínimo inquietantes.


Os abnegados cientistas Chris Cronyn (Peter Graves) e Linda Cronyn (Andrea King)

Franz Calder (Herbert Berghof) passa de cientista nazista a colaborador dos russos


Poucos filmes de ficção científica tiveram intenções políticas mais explícitas que Marte, o planeta vermelho. Chega ao cúmulo de instrumentalizar personagens legitimados pela religião e lança mão, acintosamente, de passagens bíblicas. A paranoia anticomunista alimentada pelo começo da guerra fria, as atividades do Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas, a Guerra da Coreia e o temor de um ataque da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) prepararam o cenário para o desencadeamento de uma espécie de tempestade perfeita nos Estados Unidos. Em meio a tudo isso desabrochava o fundamentalismo religioso: o cristianismo belicoso servia como ponta de lança na ofensiva direcionada contra russos e o “comunismo ateu”. Nesse contexto, Harry Horner estreou na direção.


Em um observatório na Califórnia, o astrônomo Mitchell (Lewis Martin) apresenta ao jovem casal cientista Chris Cronyn (Peter Graves) e Linda (Andrea King) recentes e instigantes imagens de Marte. Os famosos canais se apresentam claramente, inclusive as geleiras polares que os abastecem de água — provavelmente para irrigação de cultivos. Impressionado, Chris resolve intensificar as comunicações por ondas de rádio com o planeta. A esposa, sempre preocupada com os indesejáveis efeitos colaterais das descobertas científicas, mostra-se excessivamente cautelosa. Sinais aos marcianos são enviados por potente transmissor à base de válvula de hidrogênio. Trata-se de invenção confiscada dos alemães derrotados pelas forças aliadas ao fim da Segunda Grande Guerra. O inventor da peça é o criminoso nazista Franz Calder (Berghof). Aprisionado pelos russos, com eles colabora a contragosto. Está instalado em rústica estação secreta improvisada nos Andes, junto ao monumento do Cristo Redentor erguido na fronteira do Chile com a Argentina. Também tenta comunicação com o planeta vermelho, infrutiferamente. Afinal, não teve condições materiais para refazer a válvula de hidrogênio. Entretanto, capta todas as transmissões dos Cronyn.


 Chris Cronyn (Peter Graves) e Linda Cronyn (Andrea King) são recebidos pelo astrônomo Mitchell (Lewis Martin)

 Chris Cronyn (Peter Graves), Linda Cronyn (Andrea King) e Mitchell (Lewis Martin) examinam imagens dos canais de Marte


Tudo sugere que Marte recebeu as mensagens e as respondeu. O problema é interpretá-las. Para auxiliar na tarefa, o governo dos EUA põe à disposição dos Cronyn o Almirante Carey (Sande) — expert em decodificação. Porém, a solução surge de onde menos se esperava: o atento e perspicaz Stewart (Lindgren), filho mais velho do casal, sugere a utilização do número irracional PI como suporte para as transmissões e recepções. TUDO PARECE TÃO FÁCIL!!! Pronto! Questão resolvida! Os dois mundos podem se falar com perfeita e segura base de compreensão.


Os marcianos logo aliviam as primeiras curiosidades terrestres: vivem em média 300 anos; eliminaram doenças; dispensam minérios e combustíveis fósseis para obtenção de energia; lançam mão de práticas agrícolas altamente produtivas e com baixa exigência de solo. As assombrosas novidades abalam a estrutura da terrena economia capitalista. As ações nas bolsas de valores despencam; mineiros e petroleiros entram em greve; bancos, hospitais, transportadoras, firmas de comunicação, serviços energéticos e empreendimentos farmacêuticos abrem falência. É como se Marte, tão distante, pudesse se aproveitar — de uma hora para outra — das vantagens comparativas possibilitadas por um inexistente comércio interplanetário para fazer lucrativas transações com a Terra. Nosso planeta, coitado, ficaria reduzido à desconfortável posição de mero consumidor de produtos e serviços marcianos. Apesar do absurdo, eis o que acontece: os governos ocidentais perdem a iniciativa e quedam paralisados. Só conseguem responsabilizar os Cronyn pelo caos econômico e financeiro. Enquanto isso, os russos estão satisfeitos e animados. Pode ter chegado o momento de desferir a tão esperada ofensiva comunista geral.


Almirante Carey (Walter Sande),  Linda Cronyn (Andrea King) e Chris Cronyn (Peter Graves)

  
Afinal, toda a resposta enviada por Marte ao laboratório dos Cronyn decorre de invenção de Calder. Porém, o desafortunado e irascível colaborador dos soviéticos é supostamente varrido do mapa quando a isolada central andina é destruída por avalanche. Ninguém soube do ocorrido. Assim, cessam todas as comunicações. No entanto, a cúpula governamental estadunidense permanece apreensiva com a hecatombe econômica e continua a responsabilizar o casal cientista. Em represália, ordena o encerramento das operações.


Nesse ponto a história encontra o insólito ápice. Marte entra em cena para valer, por frequência radiofônica diferente. As novas transmissões trazem passagens do Sermão da Montanha, de Jesus Cristo. Então, além de cristãos os marcianos ainda se revelam mais superiores: são governados diretamente por Deus. INCRÍVEL!! O Presidente dos EUA (Bouchey) ordena o anúncio da boa nova para todo o mundo. A Voz da América, incansável, provoca um renascimento geral do fervor religioso. Templos são reabertos; cinemas e teatros se convertem em centros de adoração e oração. O povo russo — religiosamente reprimido desde a Revolução de Outubro de 1917 — se levanta contra o poder soviético e o derruba. O comunismo é eliminado. O Patriarca da Igreja Católica Ortodoxa de Moscou toma assento no Kremlyn e liberta todos os países subordinados à Cortina de Ferro.


Na Rússia, o povo recupera símbolos religiosos proscritos e se levanta contra o comunismo


Porém, nem tudo termina como Deus quer. Com o mundo tomado de contentamento pela confirmada existência do Todo Poderoso, o louco e ressentido Franz Calder aparece vivinho e furioso na casa dos Cronyn. Armado, toma Chris e Linda como reféns. Clama por vingança. Exige reparações pelo uso considerado indevido da invenção. Incontrolável, renega Deus e reivindica o heroísmo de Satanás. Para completar, novas comunicações marcianas e divinas chegam ao laboratório. Desesperado, Calder recusa as evidências. Dispara contra o sistema de comunicação e inflama o hidrogênio liberado no recinto. Todos morrem na explosão. O filme termina em clima de solene exaltação celestial. O Almirante Sander assume a guarda dos órfãos Cronyn. Para o mundo, alheio à intervenção de Calder, Chris e Linda pereceram acidentalmente.


Franz Calder (Herbert Berghof) acerta contas com Linda Cronyn (Andrea King) e Chris Cronyn (Peter Graves)

  
Durante toda a exibição a vida doméstica exemplar dos Cronyn é ressaltada. O lar organizado do casal e o carinho dispensado aos filhos remetem à imagem da família exemplar estadunidense em oposição aos desgarrados russos, ocupados apenas com a repressão interna para a manutenção do poder por vias autoritárias. Marte, o planeta vermelho deve ser o filme de ficção científica que mais exalta as supostas qualidades do American way of life.


O mais curioso de toda essa incrível história: o roteiro subverte as intenções da satírica peça Red panet, de John L. Balderston e John Hoare, encenada em 1932. Nesta, o misticismo religioso é alvo de críticas. As comunicações que abalam a Terra partem de um provocador situado nos Andes. O resultado da brincadeira, como no filme, é o revigoramento da fé. Porém, isso não acontece impunemente. Surgem falsos profetas em todo o globo. Aproveitam-se da ingenuidade popular e alimentam o fanatismo. Um dos espertalhões reúne poder para se tornar ditador global, como se fosse ungido pelo próprio Jesus Cristo. Apesar de tudo, a beata Linda Cronyn defende o novo advento. Por isso, explode o laboratório quando a verdade estava para ser revelada, com o objetivo de resguardar a crença — apesar de saber que é fundamentada numa falsidade.


Willis Bouchey, sósia de Dwight David Eisenhower, faz o presidente dos Estados Unidos



Merece atenção o perfil do presidente dos Estados Unidos, interpretado por Willis Bouchey. É praticamente um sósia do fervoroso crente Dwight David Eisenhower, eleito para dois mandatos consecutivos a partir de 1953. Governou o país até 1961.






Roteiro: John L. Balderston, Anthony Veiller, baseados na peça Red Planet, de John L. Balderston e John Hoare. Música: Mahlon Merrick. Direção de fotografia (preto e branco): Joseph F. Biroc. Montagem: Francis D. Lyon. Produção de elenco: Maurice Golden. Direção de arte: Charles D. Hall. Decoração: Murray Waite. Supervisão de maquiagem: Don L. Cash. Supervisão da produção: Joseph Paul. Assistente de direção: Emmett Emerson. Contrarregra: Clem Widrig. Engenheiro de som: Victor B. Appel. Supervisão musical: David Chudnow. Direção musical: Mahlon Merrick. Consultoria técnica em eletrônica: Vern E. Stineman. Assistente de produção: Robert H. Justman (não creditado). Sistema de mixagem de som: RCA Sound System. Tempo de exibição: 87 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2008)