domingo, 11 de junho de 2017

AS AVENTURAS DE ANDREI TARKOVSKY PELO ENIGMÁTICO, BELO E SINGULAR PAÍS DO ESPELHO

Alguns filmes são pródigos em conduzir as plateias por indescritíveis jornadas sensoriais. Vê-los somente uma vez jamais será o bastante. É o caso, segundo meus critérios, de Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962), de David Lean; 2001: uma odisseia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick; Um rosto na noite (Le notti biachi, 1957), de Luchino Visconti; Limite (1931), de Mário Peixoto; Terra em transe (1967), de Glauber Rocha; As 4 faces do medo (Kaidan, 1964), de Masaki Kobayashi; Rastros de ódio (The searchers, 1956), de John Ford; Solaris (Solyaris, 1972), de Andrei Tarkovsky; e, desse mesmo diretor, O espelho (Zerkalo, 1974). São realizações que elevam. Deixam o espectador humanamente engrandecido e, paradoxalmente, nunca completamente saciado. Sentirá a compreensível compulsão de revisitá-las periodicamente, indefinidamente, sempre como se fosse a primeira vez. Algo de novo permanentemente se revelará, transformando-as em experiências intermináveis. Já perdi a conta de quantos turnos reservei à redescoberta de O espelho, desde 1992, quando do primeiro encontro com este radical mergulho do cinema na subjetividade. Absorvê-lo no sentido meramente racional é impossível. Diante das imagens oníricas obtidas pela direção de fotografia de Georgii Rerberg o melhor, mesmo, é se deixar levar, e guardar a certeza de voltar a elas em atendimento aos inexplicáveis anseios disto que chamamos de alma. É um dos filmes mais carregados de afetos e referência pessoais. Tais características, felizmente, não valem somente para o cineasta. Atingem profundamente o âmago dos espectadores dispostos a acompanhar uma urgente e irrecusável prestação de contas pelas vias da rememoração. Se há muita religiosidade no cinema, O espelho é uma das melhores oportunidades a um religare. A apreciação a seguir é de 1992.






O espelho
Zerkalo

Direção:
Andrei Tarkovsky
Produção:
Erik Waisberg
Mosfilm
URSS — 1974
Elenco:
Margarita Terekhova, Ignat Daniksev, Larisa Tarkovskaya, Anatny Solonitzin, Nikolai Grinko, Alla Demidova, Tamara Ogoradnikova, Yuriy Nazarov, Oleg Yankovsky, Filipp Yankovsky, Yuri Sventisov, Tamara Reshetnikova, Innokentiy Smoktunovskiy, Arseniy Tarkovskiy, E. Del Bosque, Ángel Gutiérrez, Tatiana Del Bosque, Teresa Del Bosque, L. Correcer, Diego García, Teresa Rames e os não creditados Olga Kizilova, Aleksandr Misharin.



O cineasta Andrei Tarkovsky
Abaixo, na preparação da cena de levitação da personagem interpretada por Margarita Terekhova em O espelho



Agostinho de Hipona — o santo — escreveu provavelmente em Confissões: "A verdadeira vida é a memória". Não há, aqui, o propósito de recuperar o sentido literal desse dizer. Tem-se apenas a intenção de frisar como perfeitamente se ajustam a este enigmático e belíssimo O espelho, o mais pessoal e difícil trabalho de Andrei Tarkovsky. Provavelmente, é a mais bem acabada e radical experiência de mergulho do cinema na subjetividade. É a sétima realização do cineasta. Sucede a Solaris (Solyaris, 1972). Teve parto dos mais complicados devido aos pendores dos burocratas da Goskino — a estatal de cinema da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), responsável pela aprovação dos projetos que resultariam em filmes —, sempre obediente aos estreitos limites da objetividade do Realismo Socialista. Diante de tão rígidos cânones, O espelho é, no mínimo, desconcertante. Para começar, não conta uma história no sentido tradicional, à qual a maioria dos espectadores foi (mal) habituada. Quase tudo o que se vê está mergulhado em simbolismo e carece de profundo trabalho de interpretação — um permanente esforço de extração de significados. Não é filme para plateias simplesmente amestradas ao consumo passivo de imagens.


Como opera a memória, ainda mais ao processar todo um conjunto de lembranças de uma história de longo curso, submetida à urgência da prestação de contas com a experiência vivida? Certamente, não haverá ordenação objetiva das rememorações, capaz de recuperar a integridade de eventos, sonhos, anseios, relações, emoções e dramas experimentados segundo o ritmo cronológico da vida. Não há associação entre memória e ordenamento objetivo. Reminiscências puxam outras, totalmente diferentes. Recordações são recuperadas e reordenadas segundo circunstâncias as mais diversas, sem sentido ou coerência, por maior que seja o esforço mental para lhes atribuir lógica e consistência da parte de quem rememora. Uma dada memória não existe em campo próprio, particular e íntegro. Conecta-se a outros percursos existenciais, sujeita-se a fantasias, omissões, confusões, atordoamentos, enfim, a toda sorte de impactos. O que parecia claro em uma época pode ser envolvido na mais completa obscuridade em outra; ou camuflado por tons cinzentos favoráveis às miragens e invenções.


Como atribuir sentido a um turbilhão de recordações? Pode-se inferir que, de início, Tarkovsky tenha concebido a memória como um todo complexo e coerente, mas tão frágil como o vidro de um espelho, pronto a se romper em múltiplos fragmentos de tamanhos variados e lançados a distâncias diversas. Alguns cacos serão diminutos, outros, microscópicos. Não será possível processá-los; talvez nem sejam encontrados. O que sobra da fragmentação são blocos de tamanhos diferenciados, uma dispersão de lembranças espatifadas, incompletas, vazias e não lineares. Quanto mais avançado em idade é alguém que recorda, mais frágil, pode-se geralmente dizer, será o trabalho de atribuir sentido às lembranças, de organizar os blocos rompidos. Assim se apresenta O espelho. É um filme estruturado na forma de pequenos conjuntos narrativos, esparsos, cada qual contendo fragmentos de tempo que desorganizam o continuum entre passado, presente e futuro. Nenhuma dessas estações se assoma objetiva em sua totalidade. Ou assim são até certo ponto, pois a imaginação — com capacidades para fantasiar, idealizar e confundir — transforma-as em dados plenamente subjetivos, produtos de emoções, paixões, racionalizações e afetividades.


Não é à toa que O espelho, ainda em projeto, embaralhou as cabeças dos burocratas da Goskino, prisioneiros da lógica objetiva e linear. Tinham diante de si as intenções de um filme que só poderia encontrar plena forma de comunicação se as imagens se expressassem como o mais metafórico dos poemas, com os fragmentos de lembranças trabalhados quais versos de uma epopeia da subjetividade. Além desse entrave, Tarkovsky se defrontou consigo mesmo. Ao que se sabe, a partir do próprio cineasta, desde 1964 afloraram as primeiras concepções de O espelho. A partir daí, em parceria com Aleksandr Misharin, se entregou à elaboração do roteiro sujeito a diversas variações. Até a concretização da obra, em 1975, ele se debruçou inúmeras vezes sobre o material filmado. O corte final, satisfatório, só foi obtido na trigésima segunda edição.


O espelho é pleno de afeto e referências pessoais. Percorre, acima de tudo, as memórias do cineasta. Porém, não é apenas o indivíduo Tarkovsky — como instância fechada nela mesma — que alimenta o filme. A história política e social russo-soviética está presente, não apenas internamente. Imagens de arquivo recuperam momentos do envolvimento do país com a Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial e Revolução Chinesa. Também há uma infinidade de alusões às artes europeias em geral, nos campos da literatura, música e pintura. A música tem importância fundamental no acompanhamento do lento e reflexivo fluxo de imagens, nas quais parecem se dissolver os acordes de Pergolesi, Purcel e Bach, sem esquecer a pontuação de Eduard Artemiev, composta originalmente para o filme.


Se há uma finalidade plenamente racional, com sentido cartesiano, em O espelho, é a de revelar a matéria básica que compõe a humanidade e da qual se separou em função dos ordenamentos e processos que impuseram a vitória do imediatismo e da instrumentalização. Logo no começo, envolvidos na grandiosidade verde de um cenário natural, a mãe Maroussia — uma das personagens interpretadas por Margarita Terekhova — está sentada sobre uma cerca, entregue à desinteressada contemplação ou envolvida nos próprios pensamentos. O médico vivido por Anatoliy Solonitsyn, de passagem, solicita informações. Aproxima-se, como se estivesse animado pela elementar disposição de estar em contato com outra pessoa e confabular. Buscando sintonia com Maroussia, adianta: "Não estamos confiando na natureza e em nós, esquecemos o tempo de parar e pensar". As pessoas, tão apressadas, perdem contato com o que realmente importa: o instante da reflexão e absorção da realidade circundante. Dispor desse tempo é essencial para não nos tornarmos escravos de fluxos organizados à nossa revelia. Nesse desatino, perde-se o que é essencial. O espelho é um esforço de domar o tempo fugidio, de refletir sobre ele, a nossa condição e os significados.


Margarita Terekhova como Maroussia

Maroussia (Margarita Terekhova) e o médico (Anatoliy Solonitsyn)


A realização transcende os acontecimentos em tela e atinge de cheio os espectadores. Diante das reflexões tão pessoais dos personagens, o público é convidado a elaborar as suas próprias, a congelar o tempo e reexaminar trajetórias vividas: refazer o presente alimentado pelo passado e a partir daí ensaiar projeções a uma realidade somente idealizada, feita de futuro. Viver plenamente, segundo o filme, envolve imaginar, especular e refletir sobre as três dimensões temporais. Não para menos, graças a esses verbos, o nome da realização é O espelho. O espelho, utensílio, forma imagens pelas quais esquadrinhamos, elucubramos, retratamos, reproduzimos, representamos, espelhamos, revelamos, projetamos, aparecemos e transparecemos. O título é um ensaio pelo qual o cineasta paralisa diversos recortes temporais para rever, reexaminar, pesar e ponderar sobre as influências dos mais diferentes e marcantes eventos, e os significados que ficaram gravados na memória.


Concluída a montagem, os problemas com a burocracia soviética perduraram. A duras penas houve liberação para exibição limitada no próprio território da URSS. A participação no Festival de Cannes foi bloqueada. Felizmente, o Brasil não foi atingido. Aqui O espelho cumpriu carreira, graças principalmente ao VHS.


Em cena estão reminiscências do próprio Tarkovsky. A realização é, na justa medida, autobiográfica. Inicia-se nos anos 30 e se prolonga, com idas e vindas, até meados da década de 70. O cineasta assume a identidade de Aleksei desde os cinco anos de idade. Nessa etapa, é vivido por Filipp Yankovskiy, e na pré-adolescência por Ignat Daniltsev. Porém, são as rememorações e delírios de Aleksei adulto — manifestadas basicamente pela voz de Innokentiy Smoktunovskiy —, doente e à beira da morte, que formam o escoadouro de imagens de O espelho. O personagem, poeta, luta para fazer o balanço da vida e, no limite, averiguar se o viver valeu a pena. A fragilidade provocada pela doença dificulta a prestação de contas. Incapaz de produzir uma sequência coerente dos eventos essenciais de seu percurso, Aleksei procura, do jeito que pode, se lembrar ao máximo do que possível for. É uma missão urgente, a cobrar o sacrifício de critérios racionais. Emana da rememoração um amálgama de imagens dissociadas acerca de dados eventos, às vezes entrelaçadas a outras, na tentativa de reconstruir experiências da infância à adolescência, da vida conjugal, dos problemas do amor, da amargura e, por fim, da solidão. Em meio a tudo sobram flashes da história maior à qual o indivíduo está ligado, percorrida sobre o sempre visível pano de fundo de uma natureza viva, envolvente e permanente.


O jovem Aleksei (Ignat Daniltsev)


A memória acelerada de Aleksei gera uma narrativa complexa. Percorre diversas estações temporais da trajetória de um indivíduo imerso em dado contexto político e social. Considera a atmosfera tensa da URSS no duro período dos expurgos stalinistas e as repercussões decorrentes dos temores aí acumulados no seio da família. A mãe, Maroussia, é funcionária da gráfica estatal e corre riscos de cometer erros que poderiam ser fatais. Os anos de forte privação material vividos pelo país durante a Segunda Guerra Mundial, quando o grosso da população se organizou como podia para sobreviver, são igualmente considerados: Maroussia complementa os rendimentos domésticos no pequeno e ambulante comércio de bijuterias; aos filhos faltam calçados; as vestes estão rotas.


Maroussia (Margarita Terekhova) corre para a gráfica na qual trabalha

Maroussia (Margarita Terekhova) e Aleksei (Ignat Daniltsev) nos duros anos da Segunda Grande Guerra


Não importa em qual tempo se localize a narrativa, as imagens são sempre perpassadas por um clima de mistério, como se fossem captadas diretamente de um sonho traduzido em forma de suave poesia impregnada por sensações de nostalgia, melancolia, abandono e carinho.


Também se percebe o esforço a um só tempo físico e mental de Aleksei para dar forma às divagações, como uma criança balbuciante no ardente desejo de pronunciar corretamente as palavras. Essa dificuldade do narrador é problematizada por Tarkovsky logo no começo. Imagens em preto e branco apresentam o atendimento de uma fonoaudióloga a um jovem com dificuldades para falar. A profissional, por meio da hipnose, auxilia-o a organizar pensamentos e sons para, enfim, compreender e se fazer compreendido. O paciente — qual Aleksei em corrida contra o relógio — também tenta recuperar o período que passou impedido de canalizar ideias e sensações com outros. Ainda está inseguro e confuso. De início, após a cura, nem tudo para ele e interlocutores soará claro. Mas o processo avançará rumo à paulatina e coerente compreensão de significados. De certo modo, o mesmo acontece a Aleksei, porém, em sentido oposto. O narrador busca no passado as muitas linhas de uma história prestes a encerrar. O rapaz curado pela fonoaudióloga ainda escreverá a sua. Portanto, um espelho de possibilidades abertas o aguarda. Aleksei, da mesmo maneira, está diante da própria realidade espelhada. Porém, em seu caso particular, tenta o ordenamento do que ficou para trás, também com coerência. A lógica que preside a construção de O espelho é de outra ordem: emocional e poética; livre e errática. Exemplo transparente disso é o pássaro prisioneiro e moribundo visto em uma mesa de cabeceira. Milagrosamente renasce ao ser posto em liberdade, condição que o obriga a recuperar, do jeito que puder, o dom perdido de voar.


O espelho, pausado e contemplativo, também expande as fronteiras do real. Aliás, melhor seria dizer que faz pouco caso da realidade como instância objetiva, de ordem geral, a partir da clara opção de reinterpretá-la como anseio de uma subjetividade delirante, sonhadora, nostálgica e imaginativa. O real, entendido como tempo linear, é alterado aleatoriamente ou ao bel prazer do cineasta imerso na consciência de Aleksei. O substrato natural — matas, rios, chuvas, chamas — é transformado numa espécie de morada do encantado, um ente de direito próprio, suprarreal. Chuva e vento, sempre presentes, ganham vida — algo sem paralelo em todo o cinema.


Maroussia (Margarita Terekhova) diante do celeiro em chamas


O andamento narrativo é propositalmente lento. Os planos são longos. Os movimentos intraplanos são suaves. Tudo é concebido para facilitar ao espectador a plena imersão em um mundo de contemplação e a absorção de considerável quantidade de finíssimos detalhes visuais. Tem-se de fato a sensação de se ver o tempo passar, em todas as suas tessituras, como convém a um trabalho de rememoração.


A presença materna é uma constante. Margarita Terekhova faz Maroussia, a mãe de Aleksei, mas também fornece vida a Natalya, esposa do poeta moribundo e mãe de Ignat (Daniltsev). Entretanto, a própria mãe do cineasta, Maria Ivanova Vishnyakova — reconhecidamente, a figura mais importante da vida de Tarkovsky — aparece como atriz não creditada, em linha de continuidade com as representações de Terekhova. Dadas as idades reais e díspares de ambas, percebe-se que estão separadas no tempo, mesmo que dividam a cena como nos belíssimos e intrigantes momentos finais. É uma forma de O espelho comunicar o sentido da permanência ou da imortalidade. Somos alimentados por outros que nos precederam numa existência que se faz em fluxo. A relação do presente com o passado, e do futuro que se alimenta de ambos, é informada pelo tratamento conferido até aos objetos. Não são coisas, simplesmente. A mesa utilizada pelo neto serviu ao pai e ao avô, está impregnada de tempo e memória. Os espelhos nos quais os personagens se miram já refletiram as imagens dos mais velhos e falecidos, recuperados apenas pela recordação. A vida é um fio contínuo, que ata o indivíduo aos que se foram e ao porvir.


Maroussia (Margarita Terekhova)


Outras personagens reais e essenciais à biografia de Tarkovsky marcam presença: Larissa Tarkovskaya, segunda esposa do cineasta, surge em um interlúdio como a dona de casa transformada em potencial cliente de Maroussia. A filha Olga Kizilova atua como interesse amoroso de Aleksei. Arseny Tarkovsky, pai do diretor e um dos grandes poetas russos — do qual o filho cresceu afastado — comparece rapidamente, interpretado por Oleg Yankovskiy. Porém, é a própria voz paterna que narra os poemas que vez ou outra comentam e ilustram passagens significativamente relevantes do filme.


Outro fator de extrema importância afetiva e com vistas à autenticidade exigiu, da parte de Tarkovsky, a reconstrução da casa onde passou a infância e que serve de cenário ao filme. O lugar não mais existia quando as filmagens estavam por começar. Restavam, no solo, apenas as marcas dos alicerces. Com a ajuda de fotografias a edificação foi plenamente refeita, o que levou às lágrimas Maria Ivanova Vishnyakova.


Natalya (Margarita Terekhova) e Ignat (Ignat Daniltsev)

  
A trilha musical sempre foi elemento de prestígio nos filmes de Tarkovsky, não apenas para comentar determinados trechos ou servir de marcação a personagens. Em geral, são composições que, em conjunto, apreendem todos os significados das realizações. Em O espelho não seria diferente. Os temas originais de Eduard Artemiev, somados a movimentos rigorosamente escolhidos de Bach, Pergolesi e Purcell, formam um repertório conveniente a uma ideia de sacralização, no sentido de que contribuem à imobilização do tempo — a eternização.


Maria IvanovaVishnyakova, mãe de Andrei Tarkovsky, e Margarita Terekhova


A direção de fotografia a cargo de Georgii Rerberg, um dos mais famosos cinegrafistas russos, é simplesmente brilhante. São imagens oníricas, em tomadas internas a revelar intimidades, ou nas externas que evocam a dimensão anímica da natureza. Poucas vezes o preto e branco foi tão bem conjugado às cores. Há instantes sombrios, revestidos por aura de assombro, que comunicam estados de tensão, principalmente em sequências marcadas pela ausência de cor. Já em muitas passagens coloridas, geralmente em contato com a natureza, a câmera de Rerberg adquire um dinamismo ímpar, com alto poder de criar sensações. A objetiva parece flutuar pelo cenário, sem pressa, ressaltando detalhes de personagens e objetos, contribuindo para instalar na sensibilidade do espectador o estado contemplativo ou meditativo, capaz de dissolver o tempo, fundamental para a experiência estética de O espelho se fazer completa. Como a maior parte da narrativa é construída pelas memórias do narrador, essa opção funciona muito bem. A câmera esculpe imagens quais estados mentais de alguém em viagem por lembranças muito próprias, na busca daquilo que é mais carregado de sentido e proximidade: palavras e olhares da mãe, folhas carregadas pelo vento, o estado de instrospecção dos filhos, o sorriso da esposa, a chuva revivificadora. O espelho é a mente em movimento. Os espectadores que se deixarem capturar por esse inventário afetivo de sons e imagens não ficarão imunes. Serão convidados a se exercitar, a explorar a própria capacidade de perceber e apreender flagrantes das próprias vidas e a interagir afetivamente com esses momentos únicos.





Música: Eduard Artemiev, movimentos de Bach, Pergolesi, Purcell. Roteiro: Aleksandr Misharin, Andrei Tarkovski. Poemas: Arseniy Tarkovski. Direção de fotografia (preto e branco, cores): Georgii Rerberg. Cenografia: Nikolay Dvigubskiy. Montagem: Lyudmila Feyginova. Figurinos: Nina Fomina. Maquiagem: Vera Rudina. Assistentes de direção: Mariya Chugunova, Larisa Tarkovskaya. Planejamento do set: A. Merkulov. Som: Semyon Litvinov. Efeitos especiais: Yuri Potapov. Operador de câmera: Alexey Nikolaev. Efeitos especiais: Mosfilm. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimaraes, 1992)