domingo, 9 de setembro de 2018

XAVIER DE OLIVEIRA VIRA “MARCELO” PELO AVESSO E EXTRAI “ANDRÉ”

Em 1975 estava pressionado pelas noites mal dormidas decorrentes das pressões do Serviço Militar e exigências do Colégio Universitário da Universidade Federal de Viçosa (Coluni/UFV). O vestibular se aproximava com uma porção de novas exigências e perspectivas. Nesse contexto de intranquilidade, encontrei tempo para prestigiar a exibição de André, a cara a e coragem (1971), segundo longa metragem de Xavier de Oliveira. O primeiro, estrondoso sucesso de público Marcelo Zona Sul (1970), deixou excelente impressão. Ambos contam com o protagonismo do então muito jovem e promissor Stepan Nercessian. Hoje, passados quase 50 anos, gostaria de saber como esses títulos resistiram à passagem do tempo de tantas e tão inclementes mudanças. Ainda guardo bem as imagens de André, a cara e a coragem. É praticamente impossível não se identificar com o personagem do título: André Souza da Silva de apenas 17 anos, mineiro de Carangola que resolveu tentar a vida no Rio de Janeiro. Luta bravamente, no desespero da solidão e falta de perspectivas, para não ser engolfado pela fria, cruel e distante metrópole — ainda capital do estado da Guanabara. Deixei o cinema fascinado com a exposição direta, objetiva e precisa. André, a cara e a coragem é exemplo de cinema narrativo que faltava à produção brasileira naquele período. O diretor, talentoso contador de histórias, também é acurado construtor de personagens. André pulsa na interpretação sentida, tensa e, apesar de tudo, contida de Nercessian. O personagem comunica dramas, histórias, anseios e frustrações sem a necessidade dos artifícios fáceis e apelativos. Percorre literalmente as sendas de uma cidade pouco “Maravilhosa”. Raras vezes a metrópole carioca se mostrou tão despida de ilusões — ponto para a direção de fotografia do também operador de câmera Edison Batista. Senti André, a cara e a coragem como exemplo bem acabado de cinema verdade. Deixei a sala de exibição aproximando-o de clássicos da melhor Música Popular Brasileira: Felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e Pedro Pedreiro, de Chico Buarque de Hollanda. Segue apreciação escrita em 1975.






André, a Cara e a Coragem



Direção:
Xavier de Oliveira
Produção:
Lestepe Produções Cinematográficas
Brasil — 1971
Elenco:
Stepan Nercessian, Angela Valério, Ecchio Reis, Antônio Pattino, Cirene Tostes, Pichim Plá, Maria Regina, Edil Magliari, Maria Rita, Antônio Augusto, José de Freitas, Ilva Nino, Alvim Barbosa, Nelson Mariani, Manoel Santana, Divaldo Souza, Emiliano Ribeiro, Edilson Oliveira, Cid Fayão, Eugenio Santos, Dilberto da Silva, José Guilherme, Elcy Andrade, Alcídia Tavares, João Gerônimo, Maria Luiza Splendore, José Lube.



O diretor Xavier de Oliveira orienta Ângela Valério e Stepan Nercessian, intérpretes de Marly e André


O diretor Xavier de Oliveira — também produtor e roteirista — abriu a filmografia com o documentário curto Rio, uma visão de futuro, de 1966. Quatro anos depois, com a metrópole carioca novamente diante dos olhos, voltou a atenção à juventude de classe média mal entrada na adolescência. Entregou uma ficção em longa metragem, praticamente uma crônica sobre os caminhos e descaminhos do processo de descoberta para a vida: Marcelo Zona Sul, um estrondoso sucesso de público que se irradiou do eixo Rio-São Paulo para os quatro cantos do país. Além dos ganhos de bilheteria, fez jus ao prêmio especial concedido pelo governo do estado da Guanabara: um adicional em dinheiro em virtude da renda alcançada. Nada mal para uma produção de baixo orçamento, amortizada somente com a venda de ingressos na praça de realização.


Diante do sucesso de Marcelo Zona Sul, Xavier partiu com vigor renovado para o segundo longa. Permaneceu no cenário carioca e apresentou outra crônica, marcada por intimismo, melancolia, esperança e desesperança. O resultado é um dos melhores filmes nacionais dos últimos anos, eficaz na comunicação do drama e discreto na exposição: André, a cara e a coragem, protagonizado por Stepan Nercessian lançado no filme de 1970. O ator, de 17 anos, tem a mesma idade do personagem do título. Perambula literalmente por uma metrópole de aparência pouco convidativa e magnificamente captada pela direção de fotografia de Edison Batista. O Rio solar e convidativo das praias e bairros de classe média do trabalho anterior cedeu a vez à urbe da indiferença e do atropelo, lugar frio e distante transformado em cruel arena para a encenação da luta pela vida — situação complicada para um indivíduo anônimo, solitário e forasteiro como o protagonista.


Stepan Nercessian no papel de André


O Rio de Janeiro parece desabar sobre André, quase outro Marcelo entregue à condição de mão de obra não qualificada e pronto a encarar qualquer oportunidade em nome da sobrevivência imediata. A proximidade da prestação do Serviço Militar Obrigatório é sério entrave para conseguir algo melhor e durável. A produção, orçada em aproximados 250 mil cruzeiros, mira um personagem ciente de única certeza: não pode ficar parado. É obrigado a caminhar, procurar e se perder pelo tumultuado e impessoal centro financeiro-comercial da cidade maravilhosa. Também é visto nas áreas marginalizadas, empobrecidas e abandonadas pelo poder público: Santo Cristo, Gamboa, Engenho de Dentro, Cidade Nova, Benfica e ramificações da Avenida Brasil. Esporadicamente é encontrado na região portuária e, extraordinariamente, na Zona Sul que mais se parece a estranho outro mundo.


André veio da mineira Carangola. Entre tentativas, acidentes, incidentes e surpresas, procura, com sofreguidão, se encaixar em algum lugar que lhe sirva de começo. Acomoda-se mal numa pensão mixuruca cuja proprietária (Pichim Plá) demonstra preocupação com os aluguéis atrasados. Os demais moradores, pequenos marginais, o azucrinam. Apelidaram-no cruel e apropriadamente de Pé na Cova. Busca ajuda e indicações com conterrâneos relativamente melhor posicionados profissionalmente. Emprega-se como auxiliar de cozinha da Fundação João XXIII. De pronto conquista a antipatia gratuita de um colega (Nelson Mariani) e termina no olho da rua. A próxima função, de agenciador imobiliário, logo se revela ilegal e é interrompida pela polícia. Segue-se a difícil e antipática vida de cobrador na qual dura pouco: é enganado e roubado por novos e falsos amigos (José de Freitas, Maria Rita, Ilva Niño) em raro instante de descontração. Por pouco, graças ao acidente provocado por Dona Antonieta (Cirene Tostes), não é transformado em bibelô sexual para senhoras carentes e solitárias da Zona Sul. É alvo dos interesses afetivos do gerente de banco Guimarães (Antônio Patiño) e do novo colega de quarto (Edil Magliari), que o deixam em situação desconfortável. Para aplacar a solidão e o desejo, recorre às frustrantes e instrumentalizadas relações com prostitutas como a interpretada por Maria Regina. Felizmente, apesar da alegria de pobre que dura pouco, a desestabilização converge para melhor situação quando conhece a jovem e meiga Marly (Valério) no novo e prometedor trabalho de entregador de um complexo tintureiro. Apaixonam-se, sinceramente. Entretanto, os descuidos provocados pela circunstância logo geram a demissão de ambos. Assoberbado pelos compromissos que virão com a gravidez da companheira, André vaga pela cidade tomada pelas expectativas das festas de fim de ano. Avança indiferente em meio aos transeuntes alegres e à chuva de papel picado. Procura. Pensa em Marly e no filho que virá. Certamente, Carangola e a família também estão na cabeça. Sabe que não pode voltar atrás, derrotado. O jeito é continuar. Que surpresas estão reservadas para o próximo ano?


A dona da pensão (Pichim Plá) e André (Stepan Nercessian)

André (Stepan Nercessian) na zona boêmia com a prostituta interpretada por Maria Regina

André (Stepan Necessian) e Marly (Ângela Valério)

André (Stepan Nercessian) e Guimarães (Antônio Patiño)


Objetivo, direto, conciso e bem interpretado — inclusive por atores conhecidos apenas em bairros e periferias — André, a cara e a coragem é marcante. Leva o espectador a pensar nas razões de encontrar poucos filmes parecidos na agenda da produção nacional, à revelia da pornochanchada e da herança deixada pelo Cinema Novo. A realização mira o cotidiano de muitos brasileiros, cidadãos incompletos deixados ao deus dará da falta de atenção e visibilidade. Buscam um lugar ao sol em época marcada por desilusão e insegurança. A narrativa revela um diretor com pleno domínio do metieur. Xavier tem carinho pelos personagens. Recusa-se a estereotipá-los. Todos, inclusive os relegados a papéis menores, são personalíssimos e dotados de aura específica. Além do mais, o cineasta soube, como poucos, contar uma história sem a preocupação de cometer arroubos estilísticos ou de se perder em experimentações renovadoras da linguagem. Não que isso seja pouco importante. No entanto, vale acima de tudo a pretensão de deixar aberto um canal para o simples e bom cinema narrativo como André, a cara e coragem. É realização que procura comunicação com o grande público deixado quase sempre em estado de orfandade. Faz isso sem recorrer ao banal, muitas vezes resultado da irresistível vontade de fazer concessões fáceis e apelativas. Nada disso há no triste, amargo, reflexivo, realista e arrojado André, a cara e a coragem. O esforço valeu à produção, merecidamente, os prêmios Governador Estado de São Paulo para Melhor Direção e Melhor Atriz (Ângela Valério).


Também é bom ver que André não é um indivíduo qualquer localizado sem mais nem menos e de forma imediata no centro de uma narrativa em desenvolvimento. É um ser completo. Tem história e fortes vínculos com a vida passada junto à família na mineira Carangola. O núcleo de origem está sempre presente em lembranças e conversas que o reposicionam existencialmente. Provavelmente, tais imagens e recordações podem ser apenas idealizações originadas da vontade de possuir alguma estabilidade, principalmente emocional. Mas são sinceras e suficientes para revelar alguém em seus genéricos anseios para a vida, apesar da dureza da realidade envolvente, tão competitiva e com poucas propensões para oferecer algo concreto e durável a alguém como ele.


Marly (Ângela Valério) e André (Stepan Necessian): raro instante de felicidade que custará caro


O filme começa com a apresentação dos créditos comentados por composição melodiosa, semelhante a um ângelus, de autoria dos inspirados Denoy de Oliveira (irmão do diretor) e Maria Aparecida. Seguem-se fotos desbotadas da família, lembranças de folguedos e da escola, a imagem da carteira profissional tida como sinônimo de responsabilidade e respeitabilidade. A seguir, vê-se André — André Souza da Silva, como tantos —, solitário, galgando literalmente as ladeiras e escadarias da vida na interminável procura que é a tônica dominante e dinâmica de todo o filme.


Há instantes sublimes. Um deles é o longo e descompromissado bate-papo de André com Marujo (Ecchio Reis) no quarto da pensão. Enquanto o garoto pode apenas expor as lembranças da estreita vida que levou em família e as vicissitudes da busca por trabalho no Rio de Janeiro, o companheiro correu o mundo em navios e conhece gentes variadas em lugares os mais diversos. Conta casos e histórias que deixam o interlocutor maravilhado. O solidário Marujo, que tanto contribui para a recomposição da humanidade de André, logo estará de partida para passar muito tempo fora. O outro momento é a suave exposição do primeiro relacionamento sexual de André com Marly. Acontece em cômodo de uma casa abandonada e em ruínas do bairro de Benfica.



Acima e abaixo: Ângela Valério, intérprete de Marly


Há muito em comum entre André, a cara e a coragem com recentes clássicos do cancioneiro popular brasileiro, principalmente A felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e Pedro Pedreiro, de Chico Buarque de Hollanda.


Stepan Nercessian como André Souza da Silva


História, roteiro e diálogos: Xavier de Oliveira. Assistente de direção: Nino Ottoni. Direção de fotografia (Eastmancolor) e operador de câmera: Edison Batista. Cenografia e costumes: Armênia Xavier de Oliveira. Música: Denoy de Oliveira, Maria Aparecida. Montagem: Manoel Oliveira. Som: José Tavares. Gerente de produção: Denoy de Oliveira. Produção executiva: Eduardo Osório. Assistência de produção: Divaldo Souza. Continuidade: Chico Borges. Assistência de câmera: Jaime Macedo. Fotografia de cena: Herberto Tavares, Dinand. Eletricistas: Gelson Antônio, Lídio Rocha. Maquinista: José Pequeno. Sonoplastia: Geraldo José, A. César. Tempo de projeção: 91 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)