domingo, 15 de dezembro de 2013

PRESTON STURGES INVERTE A TRAJETÓRIA DE DANTE E DESTACA A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA COMÉDIA E DO RISO

O cineasta John L. Lloyd Sullivan (Joel McCrea) abomina as tolas mas lucrativas comédias que dirige. Acredita que o cinema deve valorizar as questões sociais, ainda mais nos Estados Unidos varridos pela Grande Depressão, tomados por desemprego e desesperança. Mas ele, milionário desde o berço, não possui conhecimento empírico sobre o assunto. Resolve sair em campo, como um sociólogo apoiado na mais sincera pesquisa participante. Conhecerá a pobreza e a exclusão social por dentro, vivenciando-as. Acaba indo, metaforicamente, do paraíso ao inferno mais tenebroso para descobrir a importância social da comédia. Ao mesmo tempo Contrastes humanos (Sullivan's travels, 1941) expõe, por meio de uma câmera cirúrgica, imagens fortes e tocantes sobre a pobreza e a miséria, raramente vistas em produções hollywoodianas. A realização de Preston Sturges é um clássico indiscutível. Integra, desde 1990, a lista dos filmes de preservação obrigatória do National Film Registry.





Contrastes humanos
Sullivan's travels

Direção:
Preston Sturges
Produção:
Preston Sturges (não creditado)
Paramount Pictures
EUA — 1941
Elenco:
Joel McCrea, Veronica Lake, Robert Warwick, William Demarest, Franklin Pangborn, Porter Hall, Byron Foulger, Margaret Hayes, Robert Greig, Eric Blore, Torben Meyer, Victor Potel, Richard Webb, Charles R. Moore, Almira Sessions, Esther Howard, Frank Moran, Georges Renavent, Harry Rosenthal, Alan Bridge, Jimmy Conlin, Jan Buckingham, Robert Winkler, Chick Collins, Jimmie Dundee, Billy Bletcher, Harry Hayden, Harry Seymour e os não creditados George Anderson, Myrtle Anderson, Elizabeth Ashley, Roscoe Ates, Ruth Bias, Monte Blue, Grace Boone, Arie Lee Branche, William Broadus, Jess Lee Brooks, Anita Brown, Ruth Byers, Matilda Caldwell, Mark Carnahan, Chester Conklin, Laurence Criner, Gladys Davis, James Davis, Edgar Dearing, Joan Douglas, A. Downs, Frances Driver, Robert Dudley, LeRoy Edwards, Fay Fifer, Elizabeth Gray, Jester Hairston, Inez Hatchett, Edward Hearn, Arthur Hoyt, Paul Jones, Bob Kortman, Pearl Lancaster, Elsa Lanchester, Cora Lang, Perc Launders, J. Farrell MacDonald, Esther Michelson, Frank Mills, Howard M. Mitchell, Paul Newlan, Artie Overstreet, Emory Parnell, War Perkins, Gus Reed, Mary Reed, Willard Robertson, Dewey Robinson, Sheila Sheldon, Irving Smith, Preston Sturges, Madame Sul-Te-Wan, Julius Tannen, Lillian Taylor, Henry 'Hot Shot' Thomas, Maggie Thomas, Harry Tyler, Notable Vines, Pat West, Jack Winslow, Bill Wolfe, Ted Billings, Ed Brady, Kit Guard, Chuck Hamilton, Sheldon Jett, Payne B. Johnson, Pat McKee, Ray Milland, Bert Moorhouse, Lon Poff.



Preston Sturges, diretor e roteirista



Em 2000, os irmãos Joel e Ethan Coen, baseados muito livremente em A odisseia, de Homero, levaram às telas a comédia que é, provavelmente, o melhor filme que realizaram: E aí, meu irmão, cadê você? (O brother, where art thou?). Com ação localizada no profundo sul estadunidense durante o auge da Grande Depressão, acompanha as desventuras de três presidiários em fuga — vividos por George Clooney, John Turturro e Tim Blake Nelson — que revelam ao espectador as mazelas e bem entranhadas contradições do país tingido por racismo, crise econômica, fundamentalismo religioso, crendices, banditismo, truculência policial, violência, especulação, oportunismo político e country music. A inspiração para o título veio de Contrastes humanos, quarta incursão de Preston Sturges na direção[1].


Contrastes humanos é filme cômico de primeira grandeza. Mas está longe de provocar o riso descompromissado e inconsequente, apesar de tratar exatamente disto: o poder liberador e humanizador da gargalhada a partir de produções supostamente inocentes e pueris. Destaca a relevância social da comédia e ao mesmo tempo enaltece o papel de Hollywood na produção de filmes classificados genericamente como escapistas. Estes, percebidos simplesmente como alienantes — segundo a ortodoxia mal-humorada de determinadas cartilhas e manuais —, também servem ao alívio de tensões e à recomposição da humanidade em segmentos marginalizados e brutalizados, relegados, no limite, à mais miserável das existências. Porém, até se convencer disso, o diretor de cinema John L. Lloyd "Sully" Sullivan (McCrea) passará por situações as mais insólitas, que partem do inusitadamente cômico ao intensamente dramático, avançando para o trágico.


O título original — Sullivan's travels (Viagens de Sullivan) — alude em tom de brincadeira ao clássico livro Gulliver's travels (Viagens de Gulliver) do inglês Jonathan Swift, publicado em 1726. O personagem vivido por Joel McCrea, tal qual o de Swift, é lançado numa jornada de reconhecimento do mundo à sua volta, povoado por seres e realidades totalmente desconhecidos. John Sullivan é diretor hollywoodiano consagrado. Moldou a carreira realizando comédias popularescas, de forte apelo entre as massas, que alegram principalmente os produtores. Ele, porém, está frustrado, totalmente insatisfeito com o que faz. Pretende realizar filmes sérios, engajados, com atenção voltada aos deserdados sociais, à realidade obscura dos anônimos que vivem do trabalho duro ou que estão abandonados ao infortúnio da miséria. Para a mudança de rumo, Sullivan já tem um projeto em mente: adaptar o famoso romance O brother, where art thou?. O momento vivido pelos Estados Unidos é oportuno à guinada. O país absorve os efeitos da Depressão Econômica de 1929. Desemprego, pobreza e desesperança estão em todo lugar. Sullivan sente vergonha, pois o cinema dá as costas a esta realidade, preferindo a mundanidade e futilidade das existências vazias do reino do faz de conta.


Diante da pronta decisão do cineasta, os chefões do estúdio, Mr. LeBrand (Warwick) e Mr. Hadrian (Hall), manifestam compreensível apreensão. Temem a diminuição dos ganhos da empresa devido ao desvio de rota de seu diretor mais lucrativo. Conhecem como ninguém os desejos do público e as questões concretas da indústria cinematográfica. Contra-argumentam alegando que filmes realistas fracassam nas bilheterias. Também invocam o parco conhecimento de Sullivan sobre a pobreza. Ele, afinal, nasceu em berço esplêndido. Sempre foi milionário. "O que você sabe sobre a realidade da vida e da pobreza; quando teve a necessidade de esmolar, implorar por um prato de comida, buscar alimentação nas lixeiras?", perguntam-lhe.


Convencido de que carece de conhecimento empírico sobre o assunto, Sullivan resolve sair em campo, a caráter, armado de vontade, cara e coragem. Atuará como um cientista social na realização da mais sincera pesquisa participante. Entrará em contato, em primeira mão, com o cidadão comum curtido nos percalços da existência. Cai na estrada qual autêntico andarilho, em andrajos, levando uma trouxa e apenas 10 centavos no bolso. Por segurança, a identidade funcional vai oculta num dos sapatos.


Se os chefes não demoveram Sullivan, seus perplexos criados não terão melhor sorte. Enquanto o camareiro (Blore) se tranca no mutismo, aparentando pavor com a ideia, o fleumático mordomo Burroughs (Greig) adianta sábias e preocupadas impressões. Teme pela segurança do patrão e desconfia da relevância social da empreitada. Diante dos andrajos usados por Sullivan, adianta, empertigado: "Nunca fui simpático às caricaturas dos pobres e necessitados, Senhor!". O cineasta retruca. Alega que não se trata de caricatura, mas de produção de conhecimento relevante sobre a pobreza e a necessidade, com o propósito de gerar um filme sério e realista. Cada vez mais cético, Burroughs contrapõe, como um Joãozinho Trinta avant la lettre: "Se me permite opinar, Senhor, o tema não possui relevância alguma. Os pobres sabem tudo sobre a pobreza e apenas ricos e teóricos, que são geralmente ricos, consideram o assunto digno e glamouroso. Duvido que os pobres apreciem o seu esforço, Senhor. Eles irão se ressentir da invasão de sua privacidade e com toda razão". E prossegue, de forma premonitória: "Pessoas ricas como o Senhor pensam sobre a pobreza negativamente, como falta de riquezas, da mesma forma como se a doença pudesse ser falta de saúde. Mas não é, Senhor, em absoluto. A pobreza é um estado, não é falta de coisa alguma. É uma praga real, virulenta, viciosa, insidiosa, infecciosa. Deve ser mantida à distância, evitada, mesmo que desperte interesses ao conhecimento".


Apesar da desconfiança do mordomo, Sullivan vai em frente. Logo estará na estrada, sentindo o desconforto de ser seguido, muito de perto, por estranha comitiva. Afinal, os produtores não só estão preocupados com a segurança do diretor como pretendem capitalizar sobre o empreendimento. Assim, enquanto o constrangido cineasta avança pelo acostamento, um ônibus com equipe de filmagem, assessoria de imprensa, unidade médica e cozinheiro o acompanham. Para se livrar do incômodo, pega carona num tanque de guerra improvisado e sem freios, pilotado por um garoto (Payne B. Johnson; não creditado), que avança desembestado a 120 milhas/hora. Dessa forma, num clima de comédia rasgada, francamente pastelão, começa a aventura propriamente dita de Contrastes humanos.


Num primeiro momento, Sullivan, inexperiente, assemelha-se ao protagonista das descompromissadas e tontas comédias que dirigiu. Tudo é idílio e diversão. Tem-se uma visão alegre da suposta vida aventureira, livre, leve e solta dos andarilhos, totalmente apartada das coerções sociais. De certa maneira, a partir de um começo francamente cômico, pode-se dizer que ele empreenderá trajeto semelhante ao de Dante em A divina comédia, descontada a inversão de sentido. Nesse clássico do Renascimento literário italiano, parte-se do Inferno ao Paraíso com escala no Purgatório. Contrastes humanos começa metaforicamente no Paraíso — equivalente à comédia em Dante, pois sua obra contraria o espírito da tragédia. Nesta, os personagens experimentam o fracasso e terminam invariavelmente mal. Sullivan evolui da aventura cômica para as colorações sombrias do purgatório da pobreza e do desemprego até experimentar o pesadelo trágico da violência e cessação da liberdade. Tal qual Dante, também terá a companhia de um Virgílio. Este, em A divina comédia, guiará o protagonista pelas sendas do Inferno e do Purgatório. Mas devido às suas origens pagãs não entrará no Paraíso. Sullivan terá como guia aquela que será conhecida simplesmente como A Garota (Lake). Ela será o equivalente a Virgílio, mas com pretensões a Beatriz. Auxiliará o cineasta a transitar do mundo louco e desvairado da comédia para o purgatório do drama coalhado de deserdados sociais que ele tanto quer conhecer. Mas não o acompanhará na queda à infernal estação da mais abjeta miséria e negação da humanidade. Sullivan, por descuido e pelas tramas do infortúnio, será largado praticamente só no terceiro e definitivo estágio de provação e descoberta.




Acima e abaixo: Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) na estação da comédia



Após as primeiras desventuras com o tanque improvisado e o ônibus do estúdio, Sullivan se livra das intenções nada inocentes de Zeffie Kornheiser (Howard), alegre e carente viúva que o empregou para cortar lenha em troca de comida. Ainda está nos limites de Hollywood quando encontra A Garota numa lanchonete de beira de estrada. Era aspirante a atriz; sonhava trabalhar com Ernst Lubitsch. Como nada conseguiu, pretende voltar à casa paterna. Generosa, paga o lanche para o maltrapilho Sullivan. Feitas as apresentações, não acredita estar diante de um cineasta famoso. Este, ainda por cima, leva-a à sua luxuosa mansão. Apanha a limusine para facilitar a viagem da moça. Mas a polícia desconfia do motorista em andrajos e os aprisiona. São libertados graças à intervenção de Burroughs e Blore. Sullivan, ao interceder pela Garota, termina brincando com um dos mais famosos clichês de Hollywood. "Onde entra A Garota nesta história?", pergunta o policial. Sullivan responde: “Sempre há uma garota na história. Qual é o problema, você não vai ao cinema?”.


Após breve temporada na mansão, entre o bom e o melhor, Sullivan retorna à pesquisa, acompanhado da Garota, também devidamente caracterizada. Juntam-se a outros andarilhos e embarcam no vagão de um cargueiro. Mal conseguem disfarçar o amadorismo. Com isso, atraem o desprezo dos mais experientes. Logo estarão famintos, sujos e mal cheirosos. Desembarcam atabalhoadamente, com o trem em movimento, nos arredores de Las Vegas. Encontram outra lanchonete e, por sorte, o ônibus da comitiva. Entregam-se por alguns instantes às comodidades proporcionadas pelo veículo até se depararem, enfim, de forma participativa, com a pobreza tão procurada.




Acima e abaixo:  Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) na fartura do bom e do melhor após o início fracassado da expedição de conhecimento à pobreza


Sullivan e A Garota testemunham a vida ao relento e em casebres improvisados de papelão e compensado. Enfrentam fila para conseguir comida distribuída por agências de caridade. São infestados por pulgas. Frequentam banhos públicos; cultos religiosos endereçados aos desesperançados; restaurantes comunitários; albergues lotados e mal cheirosos. São roubados em seus parcos pertences, trabalham no que podem e reviram latas de lixo em busca de comida. Todos os seus movimentos são registrados pelos fotógrafos do estúdio. Em meio aos momentos cômicos, Sturges obtém cenas fortes, chocantes e tocantes, praticamente silenciosas, sobre a pobreza. São passagens raramente vistas em produções hollywoodianas, captadas por uma câmera cirúrgica, sempre em movimento. O efeito dessas imagens de privação extrema se torna mais poderoso se contrastado ao luxo e a fartura da vida despreocupada levada por celebridades hollywoodianas, como Sullivan.



Sullivan Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) na estação do purgatório


Não demora para encerrarem a provação. Suficientemente enfastiados e enojados com a dura realidade, abandonam as latas de lixo e voltam correndo à mansão. Aparentemente, viram o que era preciso. Tanto que o tocado e agradecido Sullivan resolve voltar sozinho aos campos de pesquisa para distribuir cinco dólares, de um montante considerável, a cada deserdado que encontrar. Descuidado, termina espancado, roubado, desacordado e abandonado. Desperta cambaleante, num vagão em movimento. Agredido pelo guarda-linha, revida com violência. É preso e julgado por tentativa de assassinato. Desmemoriado em consequência dos golpes sofridos, é condenado a seis anos de trabalhos forçados. Conhecerá enfim, o Inferno, o lado pior da humanidade, feito de cerceamento à liberdade, arbitrariedade e violência. Na prisão, Sullivan praticamente refaz a experiência de James Allen (Paul Mumi) em O fugitivo (I am a fugitive from a Chain Gang, 1932), de Mervyn LeRoy.


Nos primeiros momentos de Contrastes humanos, Sullivan encontrava dificuldades para ultrapassar os limites do seu mundo hollywoodiano. Algo como um alerta parecia prendê-lo a uma espécie de destino manifesto, à realidade do faz de conta. Agora, a comédia e a liberdade de escolha estão distantes. É prisioneiro sofrendo de amnésia, degradado, achincalhado e brutalizado por carcereiros truculentos. O ladrão que indiretamente o lançou nesta situação morreu sob um trem. A documentação de Sullivan é encontrada junto aos irreconhecíveis restos do marginal. Por isso, todos acreditam que o cineasta pereceu.


Evidentemente, a memória é recuperada. Mas isso de nada servirá. Sullivan, conforme amplamente divulgado, está morto e enterrado. Insistir que se trata de engano não adianta. Só irrita o diretor do presídio (Alan Bridge), que o castiga no exíguo espaço do "suadouro". Terminada a tortura, ele e os demais prisioneiros terão direito a alguns momentos de prazer. Acorrentados, são conduzidos a um pobre templo evangélico, de negros despossuídos, para assistir a alguns filmes.



Sullivan (Joel McCrea), à esquerda, experimenta a violência carcerária na estação do inferno



Segue-se uma sequência curta mas de memorável impacto. Enquanto a congregação entoa a tradicional Let my people go (ou Go down, Moses), surgem os condenados, como espectros silenciosos. Cruzam acorrentados a paisagem pantanosa. Adentram o templo sob o lancinante som dos grilhões arrastados e tomam assento. Começa a exibição de um movimentado desenho animado da Disney Productions, repleto de nonsense, estrelado por Mickey Mouse e Pluto[2]. Toda a plateia, sem exceção, explode em gargalhadas. O atônito Sullivan, a princípio, não compreende como gente tão sofrida pode se divertir com tantas e despropositadas tolices. Mas não demora para ele também entrar no clima. O riso francamente liberado se apodera do ambiente. Parece gerar uma epifania que devolve os condenados a um estado de humanidade do qual estavam há muito afastados.


Nos momentos centralizados pelo templo, Sturges, mais uma vez, explora territórios na maioria das vezes estranhos a Hollywood. Há a humanização catártica dos prisioneiros e também o tratamento respeitoso concedido aos negros, mostrados como seres perfeitamente normais ao contrário das figurações assustadas, de olhos esbugalhados, como tantas vezes foram pintados. Tais cenas, com o tempo, perderam muito do seu efeito desbravador. Mas, na época da realização, certamente funcionaram como bem-vindo sopro revolucionário aos padrões estabilizados do cinema comercial americano. Prisioneiros e negros, apartados das benesses dos direitos civis, mas estranhamente irmanados pelo abrigo do templo e ao som de Let my people go, inscrevem Contrastes humanos entre os mais poderosos manifestos sociais conseguidos pelo cinema.


Sullivan, por sua vez, não encontrou o que pretendia. Mas adquiriu inesperada consciência sobre o poder do riso. Sua pesquisa participante revelou, graças a Pluto e Mickey, que pobres e miseráveis não querem se ver nas telas tais quais são. Ao contrário. Almejam se emancipar desse estado, refugiando-se no universo do faz de conta. É o meio, apesar de breve, que encontram para recompor suas vidas fragmentadas. A comédia que Sulivan fazia e passara a abominar talvez não seja, assim, tão irrelevante.


Contrastes humanos, desde as cenas iniciais, é dedicado “À memória daqueles que nos fazem rir: saltimbancos, palhaços, bufões, em todas as épocas e em todas as nações, cujos esforços diminuíram um pouco nosso fardo". Após tantas desventuras, Sullivan compreendeu o sentido dessas palavras. Seu filme eleva a comédia ao máximo patamar da nobreza, não importando o quão despretensiosa e absurda seja.


Depois de fazer as pazes com sua vocação e consigo mesmo, resta ao cineasta sair da prisão. A esta altura, o recurso encontrado só poderia ser inusitadamente cômico. Sullivan assume a responsabilidade pela morte de... Sullivan. Confessa que assassinou o cineasta. A revelação chega aos jornais. A fotografia do suposto criminoso é estampada nas primeiras páginas e gera comoção. Ele é reconhecido. A Garota atuava num filme quando soube das novidades. Sai correndo pelo estúdio, para espalhar a boa nova, num dos momentos mais divertidos do filme.


Livre, Sullivan abandona as intenções de rodar O brother, where art thou? e qualquer outra pretensão de se enveredar pela seara dos filmes sérios, realistas e dramáticos. Assume-se como realizador de comédias. "Eu quero fazer as pessoas rirem. Pode não ser muito, mas é tudo o que alguns têm neste mundo louco", afirma taxativamente.


Contrastes humanos transita com maestria por uma sucessão de gêneros os mais distintos, sem jamais deixar de lado sua filiação à comédia. É documento social, musical, melodrama, policial, manifesto político e tragédia. Sua execução é praticamente perfeita. É um dos filmes mais equilibrados que há. Tal pode soar espantoso, dadas algumas condições que presidiram a realização, dentre as quais o roteiro. Apesar de previamente escrito, houve a necessidade de reajustá-lo às contingências dos quase dois meses de filmagens em locações[3]. A peça era constantemente reescrita, fato que não só confirma o talento de Preston Sturges como diretor e roteirista[4], mas, também, o conhecimento de que dispunha sobre o método de realizar filmes segundo os cânones do sistema de produção hollywoodiano.


Uma torrente de piadas visuais e verbais perpassa Contrastes humanos. As primeiras predominam principalmente nos momentos iniciais, francamente cômicos, e na fase do purgatório. As demais marcam presença em todo o filme e contam com o auxílio de alguns dos diálogos mais rápidos já escritos para a tela. Até parece que os atores não tomam fôlego enquanto falam, de modo praticamente ininterrupto, em tomadas sem cortes. O espectador necessitado de legendas para acompanhar a montanha russa verbal de Contrastes humanos deverá ser consideravelmente fluente em leitura, ou perderá muita coisa. Nesse quesito, pelas minhas lembranças, apenas Jejum de amor (His girl Friday, 1940), de Howard Hawks, se equipara ao filme de Sturges.


Joel McCrea está excelente. Sullivan é, certamente, a melhor interpretação de sua carreira. Apresenta-se plenamente crível como milionário e vagabundo, pesquisador e prisioneiro, personagem de comédia e tragédia que pagou preço muito alto pela sua pretensão, a ponto de ser privado de quase tudo, exceto da capacidade de rir. Veronica Lake, geralmente desvalorizada, tem em Contrastes humanos o seu melhor momento nas telas. Sua personagem multifacetada equilibra estados de frustração, diversão, graça, sensualidade, incredulidade, esperança, razão e certeza. De certo modo, funciona como um espelho para o próprio Sullivan. No entanto, se dependesse dos produtores, A Garota ficaria com Lucille Ball, Claire Trevor, Ida Lupino, Betty Field ou Frances Farmer. Mas Veronica Lake fora escolhida pessoalmente por Sturges. Diante de sua recusa em substituí-la por talentos mais consolidados, a Paramount Pictures impôs prazo restrito para as filmagens e fixou o orçamento da produção em exíguos 600 mil dólares.


A insistência do diretor pela atriz logo seria explicada. Ambos ocultavam um relacionamento amoroso. Lake, inclusive, engravidara de Sturges. Segundo consta, conseguiu disfarçar a gestação até o sexto mês. Temia prejudicar o pai, casado, e a própria produção do filme. Quando a situação se tornou insustentável, Lake tomou a iniciativa de revelar o caso a Louise Tevis, esposa de Sturges. Rompido o segredo, a figurinista-mor da Paramount, Edith Head, foi chamada para confeccionar trajes largos, capazes de dissimular a gravidez da atriz.



Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) no início de aventura de conhecimento da pobreza

Apesar de seus estados de graça, McCrea e Lake não seguram sozinhos as interpretações de Contrastes humanos. Uma farta e muito bem aproveitada constelação de atores característicos como William Demarest, Dewey Robinson, Charles R. Moore, Esther Howard, Frank Moran, Steve Forrest, Julius Tannen, Al Bridge, Franklin Pangborn, Jimmy Conlin, Margaret Hayes, Esther Howard, Byron Foulger, Steve Forrest, Roscoe Ates, Porter Hall, Robert Greig, Eric Blore, Margaret Hayes, Torben Meyer, Robert Warwick, Almira Sessions e Robert Greig contribui decisivamente para o brilho do filme.


No cinema americano, Contrastes humanos dá prosseguimento às trilhas abertas por King Vidor e Frank Capra, pioneiros na revelação das contradições sociais americanas. Tal qual seus predecessores, Sturges, ao mesmo tempo em que expõe a pobreza, não retira dos pobres a dignidade e humanidade. Prova disso são as sequências em que Sullivan e A Garota experimentam os estados do submundo bem como os momentos passados na congregação dos negros. Contrastes humanos chega ao final reafirmando a necessidade do riso como bem fundamental à preservação da humanidade em meio aos extratos sociais largados às condições limites de existência. Mas deixa a trava da amargura na consciência do espectador. Este dificilmente esquecerá as duras, tocantes e realistas cenas de pobreza, privação e miséria tão bem documentadas por Preston Sturges.



Sullivan (Joel McCrea) e A Garota (Veronica Lake) experimentam as provações da pobreza


Quando do seu lançamento, Contrastes humanos não chegou a fazer tanto sucesso. Mesmo assim, graças à sensibilidade de alguns analistas, foi incluído entre os 10 filmes mais importantes de 1942 pela National Board of Review. Desde 1990 está faz parte do rol do National Film Registry como produção merecedora de preservação.






Roteiro: Preston Sturges. Produção associada: Paul Jones. Produção executiva: Buddy G. DeSylva (não creditado). Música original: Charles Bradshaw, Leo Shuken. Música não original: Gerard Carbonara (não creditado), John Leipold (não creditado), Joseph J. Lilley (não creditado), Albert Hay Malotte (não creditado), Felix Mendelssohn-Bartholdy (não creditado), Ernst Toch (não creditado), Victor Young (não creditado). Direção de fotografia (preto-e-branco): John F. Seitz. Montagem: Stuart Gilmore. Produção de elenco: Robert Mayo (não creditado). Direção de arte: Hans Dreier, A. Earl Hedrick. Figurinos: Edith Head. Maquiagem: Wally Westmore, Hal Lierley (não creditado). Penteados: Merle Reeves (não creditada). Supervisão de penteados: Leonora Sabine (não creditada). Gerente de unidade de produção: Joseph C. Youngerman (não creditado). Segundo assistente de direção: Barton Adams (não creditado). Primeiro assistente de direção: Hollingsworth Morse (não creditado). Assistente de direção: Anthony Mann. Contrarregra: Robert Goodstein (não creditado), Oscar Law (não creditado). Camareiro: Ray Moyer (não creditado). Gravação de som: Harry D. Mills, Walter Oberst, Grant Rymal (não creditado). Operador de microfones: George Ziegler (não creditado). Engenheiro de som: Wallace Nogle (não creditado). Dublês: Wesley Hopper (para Joel McCrea; não creditado), Cheryl Walker (para Veronica Lake; não creditada), Allen Pomeroy (não creditado), John Sinclair (não creditado). Animadores de Playfull Pluto (1934): Norman Ferguson (não creditado), Dick Lundy (não creditado). Produtor de Playfull Pluto (1934): Walt Disney (não creditado). Direção de Playfull Pluto (1934): Burt Gillett (não creditado). Processos fotográficos: Farciot Edouart. Direção musical: Sigmund Krumgold. Assistente de roteiro: Ernst Laemmle. Guarda-roupa: Clayton Brackett (masculino; não creditado), Hazel Hegarty. Assistente de câmera: Francis Burgess (não creditado). Publicidade: Teet Carle (não creditado). Escriturário: Nesta Charles (não creditado). Eletricista-chefe: Earl Crowell (não creditado). Secretária de Preston Sturges: Edwin Gillette (não creditada). Assistentes de produção de elenco: Bill Greenwald (não creditado), Bert McKay (não creditado), Alice Thomas (não creditada). Assistente de corte: Chandler House (não creditado). Gerente de locações: Norman Lacey (não creditado). Mecânicos e ferramenteiros: Walter McCloud (não creditado), George Ziegler (não creditado). Secretária da produção: Marie Morris (não creditada). Fotografia de cena: Talmadge Morrison (não creditado). Engenheiro de palco: Wallace Nogle (não creditado). Segundo assistente de câmera: Otto Pierce (não creditado). Assistente de continuidade: Isabelle Sullivan (não creditada). Eletricista: James Tait (não creditado). Joalheria: Eugene Joseff (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 90 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2003)



[1] Os filmes dirigidos anteriormente por Sturges são: O homem que se vendeu (The great McGinty, 1940), Natal em julho (Christmas in July, 1940) e As três noites de Eva (Lady Eve, 1941).
[2] Trata-se de Playfull Pluto (1934), dirigido pelo não creditado Burt Gillett.

[3] Fato pouco comum às produções hollywoodianas de então, quase sempre realizadas nos espaços controlados dos estúdios. cf. HARPER, Amy. Biography for Preston Sturges. Disponível em <http://www.imdb.com/name/nm0002545/bio> Acessado em 24 jul. 2003.

[4] Preston Sturges se consagrou como roteirista antes de se firmar na direção. Enquanto esteve em atividade, de 1930 a 1958, redigiu mais de 40 guiões. Inicialmente, a comédia maluca foi o seu campo de batalha. Cf. Ibidem.