domingo, 12 de julho de 2015

LEILA DINIZ NAS "MÃOS VAZIAS" DE LÚCIO CARDOSO POR LUIZ CARLOS LACERDA

Luiz Carlos Lacerda adaptou, em sua estreia no longa metragem, o denso Mãos vazias, de 1938, título consagrador de Lúcio Cardoso como romancista plenamente formado. O filme não é estritamente fiel ao original. Porém, preserva a atmosfera de irrealidade, a introspecção, mais os estados de tensão e inquietação que grassam numa comunidade conservadora, fortemente moralista, prestes a se desagregar pela intervenção de um elemento externo. A realização valoriza o silêncio e os planos longos. Os personagens parecem esmagados pelo peso da ambientação. Nesse contexto de contenção, povoado por seres acanhados, acuados e frustrados, irrompe Ida (Leila Diniz), espécie de anjo vingador e libertador. É o último trabalho da atriz. Pereceu em decorrência de acidente aéreo em 14 de junho de 1972, quando voltava da Austrália. Aí esteve, com integrantes da equipe e do elenco, para apresentar Mãos vazias no Festival Internacional do Filme de Adelaide, que a consagrou como Melhor Atriz. A comoção provocada pelo precoce e inesperado falecimento de Leila suspendeu todos os entraves internos à liberação do filme ao grande público, mesmo assim com uma ressalva inibidora impressa no cartaz.






Mãos vazias

Direção:
Luiz Carlos Lacerda
Produção:
Jece Valadão, Luiz Carlos Lacerda e Ana Maria Magalhães
Magnus Filmes, Ponto Filmes, Paraíso Filmes
Brasil — 1971
Elenco:
Leila Diniz, José Kléber, Arduíno Colasanti, Manfredo Colasanti, Márcio de Castro, Hélio Fernando, Ana Maria Magalhães, Ana Maria Miranda, Nildo Parente, Irene Stefânia, Hélio Braga, José Roberto Orosco, Gabriel Archanjo, Márcio de Castro, Dora Ribeiro, Shirley Rocha, Eunice Espínola, Sérgio, Daniella, Murilinho, Thamar.



Luiz Carlos Lacerda, roteirista e diretor de Mãos vazias



Mãos vazias — primeiro longa dirigido por Luiz Carlos Lacerda — ganhou triste notoriedade. Tornou-se, de certo modo, o responsável pela morte da atriz principal, Leila Diniz, aos 27 anos. De início, a apresentação da obra ao público quase não ocorreu. A Censura ameaçou interditá-la. Caso isso não acontecesse, o produtor principal, Jece Valadão, alardeou que não a lançaria em respeito à moral familiar. Tinha poderes para tanto. A Magnus Filmes, de sua propriedade, era a única companhia regularizada envolvida na realização. Embarcou no projeto com o único propósito de viabilizá-lo legal e financeiramente — bancou os custos de laboratório, da pós-produção e os salários de partes da equipe e do elenco. Essa colaboração — que por pouco não se mostrou indevida — se materializou por intermediação da própria Leila Diniz. Ela pessoalmente procurou Valadão — com quem trabalhou em Mineirinho vivo ou morto (1967), de Aurélio Teixeira — e o convenceu a se associar à empreitada. A parte restante do esforço produtivo se organizou informalmente, como cooperativa, principalmente em torno da Paraíso Filmes fundada por Lacerda e Carlos Alberto Diniz. Também foram essenciais os aportes do poeta e ator José Kleber. Influente na cidade-locação de Paraty/RJ, conseguiu disponibilizar dois casarões que serviram de cenários e hospedagem à equipe e aos atores, além de outros pontos fundamentais à ambientação. Julio Romiti, personalidade ligada ao cinema, há muito relacionada à família de Luiz Carlos Lacerda, viabilizou o empréstimo de uma câmera de 35mm e os equipamentos de iluminação e captação sonora. Outra vez os esforços de Leila foram vitais: vendeu o próprio automóvel, um fusca, para levantar recursos ainda necessários. Além do mais, segundo o diretor, o empenho e generosidade da atriz se manifestaram de outros modos: ela administrou "nossas carências, minha aflição de estreante (...); e – sintomaticamente – resolveu assumir o papel de mãe, engravidando durante a visita de seu namorado Ruy Guerra às filmagens"[1].


Ida é interpretada por Leila Diniz


Por sorte — ou azar, diriam os supersticiosos no tocante a Leila — Mãos vazias chegou ao conhecimento de Eric Williams, diretor do Festival Internacional do Filme — realizado sucessivamente em Adelaide (Austrália) e Auckland (Nova Zelândia) —, que se interessou em tê-lo na parte competitiva do certame. Diante disso, ficaria mal qualquer impedimento, tanto por parte das obtusas autoridades federais como do próprio Jece Valadão. Leila e outros participantes da realização viajaram para a Austrália e colheram os melhores resultados em críticas positivas e, para ela, o prêmio de Melhor Atriz. A nota trágica, que marcou para sempre o filme, repercutiu em 14 de junho de 1972. O jato da Japan Airlines que a trazia de volta ao Brasil explodiu sobre o espaço aéreo da Índia. A comoção nacional provocada pela morte de Leila — que tanto se empenhou na viabilização de Mãos vazias — suspendeu todos os entraves que internamente se apresentavam à sua liberação ao público, ainda mais após a boa repercussão conseguida no festival de Eric Williams. Mesmo assim, os cartazes foram impressos com uma ressalva inibidora: "Este é um filme de arte. Deve ser assistido somente por pessoas amantes do gênero".


Antes de se lançar à realização de Mãos vazias, o estreante em longa metragem Luiz Carlos Lacerda acumulou larga experiência em cinema. Também gozava da amizade de Lúcio Cardoso — autor do romance homônimo no qual se baseia o filme — e era profundo conhecedor de sua literatura. Lacerda se familiarizou ao processo de realização cinematográfica desde a casa paterna: é filho do atuante produtor dos anos 40 e 50 João Tinoco de Freitas. Também fez assistência de direção em Onde a terra começa (1966), de Ruy Santos; El justiceiro (1967), de Nelson Pereira dos Santos; Fome de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos; Máscara da traição (1969), de Roberto Pires; É Simonal (1970), de Domingos de Oliveira; Azyllo muito louco (1970), de Nelson Pereira dos Santos; e Como era gostoso o meu francês (1971), também de Nelson. Participou como diretor de produção do importante documentário Panorama do cinema brasileiro (1968), de Jurandyr Passos Noronha. Atuou em Possuída dos mil demônios (1970), de Carlos Frederico; dirigiu os curtas Odóia 67 (1967) e Nelson filma (1971), espécie de making off de Como era gostoso o meu francês[2].


O romancista Lúcio Cardoso

  
Ao parto de Mãos vazias foi imprescindível o incentivo do sempre generoso e estimulador Nelson Pereira dos Santos. Luiz Carlos Lacerda integrava a comunidade formada em torno da inspiração do diretor de Vidas secas (1963) desde que este elegeu Paraty, litoral sul do estado do Rio Janeiro, para cenário de quatro de suas realizações: Fome de amor, Azyllo muito louco, Como era gostoso o meu francês e o desconcertante Quem é Beta? (1972). O grupo nuclearmente constituído por Arduíno Colasanti, Ana Maria Magalhães, Irene Stefânia, José Kléber e marginalmente por Leila Diniz, estruturava-se, à sua maneira, como foco de resistência cultural e existencial ao endurecimento da ditadura militar. Era partidário da liberdade sexual e revolução alucinógena. Tanto desbunde escandalizou a esquerda ortodoxa e os moralistas de direita, que tinham a turma na alça de mira, inclusive o diretor. Nesse contexto, Nelson terminou as filmagens de Como era gostoso o meu francês. Sabedor da vontade de Luiz Carlos Lacerda de se lançar à direção de longas, presenteou-o com 10 latas de negativo e a recomendação para começar a filmar[3].


Parecendo atender a um ordenamento natural, Lacerda optou por levar às telas algo do universo de velho conhecido Lúcio Cardoso, autor lançado em 1934 com Maleita e que se firmou no cenário literário brasileiro desde A luz do subsolo, de 1936. Ganhou feições de romancista bem acabado em 1938, com Mãos vazias, e O desconhecido, de 1940. Ao autor, além do mais, Lacerda se confessou endividado por sua formação intelectual e preferências literárias. Também lembra que pouco antes de falecer, em 1968, por consequência de um derrame que o inutilizou parcialmente alguns anos antes, Cardoso manifestara desejo de ter vertidos para o cinema Mãos vazias ou A professora Hilda, de 1946[4].


Coincidência ou não, as obras de Lúcio Cardoso sempre atraíram a atenção do nosso cinema. O próprio autor nutria vivo interesse pela forma de expressão das imagens em movimento. Foi, de certo modo, um diretor frustrado, desde 1949, quando não conseguiu concluir o próprio projeto de pessoalmente fazer A mulher de longe, adaptado de roteiro seu. O material filmado, dado como desaparecido por mais de 60 anos, ressurgiu em 2012 pelas mãos de Luiz Carlos Lacerda — como pagamento de um débito afetivo — em formato de documentário. Foi lançado no circuito dos festivais de cinema daquele ano[5].


Cardoso está entre os autores brasileiros mais visitados por nossos cineastas. Desenvolveu amizade com muitos. A parceria começou em 1948, com Almas adversas, roteiro seu dirigido por Leo Marten. Em 1961, Paulo César Saraceni levou às telas Porto das Caixas; voltaria ao universo de Lúcio Cardoso no curta O enfeitiçado (1968) — espécie de cinebiografia do autor —, A casa assassinada (1971) — extraído do livro A crônica da casa assassinada (1959) — e O viajante (1999). Em 1978, Rui Santos verteu para o cinema o romance O desconhecido.


Dentre os títulos que Cardoso gostaria de ver filmados, Lacerda preferiu Mãos vazias por apresentar, em relação a A professora Hilda, mais forte embasamento social[6]. Em linhas gerais, ambos os romances se assemelham graças ao pano de fundo que serve à movimentação dos personagens: comunidades conservadoras, limitadas por ranços tradicionais, lidam com a presença de uma forasteira à qual, inicialmente, opõem resistência. Fruto desse intercâmbio são as mudanças provocadas nos cenários — trágicas algumas. Igualmente, em ambos os romances, os personagens se movem e administram suas ações inspirados por tensões resultantes do cruzamento da racionalidade com a mais aberta visceralidade. Cultiva-se um desejo de liberdade. Mas não há noções claras acerca do que isso significa, inclusive por falta de conhecimento empírico no assunto. Toma-se a liberdade como algo absoluto, bastante em si mesmo. No limite, ser livre passa a ser compreendido como a eliminação pura e simples do outro, principalmente de quem surge como agente limitador. Evidencia-se, acima de tudo, a impossibilidade de autonomia e da ação responsável, pois consciências e comunidades alimentadas por valores e preconceitos tão entranhados não permitem o surgimento de algo destacado como individualidade, imediatamente transformado em diferente e ameaçador.


Ida (Leila Diniz) no conservador e intrigante cenário social de Vila Velha


Como é comum nos romances de Lúcio Cardoso, uma mulher tomada de insatisfação, em oposição ao patriarcado, ao machismo, ao descaso e frivolidade de seus iguais, protagoniza a narrativa. Toma para si a condução do processo, seja passivamente — apenas como expositora de fatos e casos gerados em contexto no qual se percebe prisioneira — ou como agente de transformação, exigindo para tanto, quase sempre, a intromissão da fúria dos elementos, tanto os da natureza exterior aos indivíduos como aqueles típicos de suas constituições: carne, sangue e vísceras, ainda mais quando as situações e tensões esbarram em impedimentos morais e sociais. Há muito som e fúria nos romances de Lúcio Cardoso, ainda que isso não tenha tradução em ações expansivas. Explosões e rompantes são quase sempre contidos, porém não são menos destruidores em seu alcance. Normalmente não fica pedra sobre pedra. Após desencadeada, a ação transformadora é ininterrupta. Parece avançar desprovida de sensos de direção ou racionalidade, como se a compreensão da liberdade significasse apenas o desmantelamento geral de tudo o que se apresentava como estruturador.


Mãos vazias, o filme, não é adaptação literal do original de Lúcio Cardoso. Porém, de imediato, a fidelidade não estava nos planos do diretor. O escritor é recuperado pelo clima de irrealidade e permanente tensão/inquietação que perpassam os ambientes, modelam os estados de alma e impulsionam os personagens à ação ou inanição. Tem-se a sensação de que o estado de natureza a tudo domina. Logo no começo, o tom monocórdio do comentário musical de Jaceguay Lins antecipa o que se verá. Ouve-se, em meio ao cenário tomado de estagnação, algo semelhante ao ranger de um mecanismo prestes a se exaurir. Lembra o som de um engenho decadente ou o onipresente eco de uma lembrança que atormenta lugares e consciências. A narrativa avança sem pressa desde as primeiras cenas. Porém, o ritmo é cortado, interrompido por instantes vazios e demoradas pausas. Os planos são longos. Sente-se o peso da ambientação. Tudo se move com lentidão semelhante ao rio das proximidades. O curso d'água também se mostra cansado, estagnado. É como se estivesse impedido de fluir. Os personagens, quando se expressam, dão a impressão de dialogar com o público, pois o campo de comunicação com os elementos do interior da cena se afiguram inexistentes; ou se há, de nada adiantam.


Dois personagens logo tomam a primazia da condução/apresentação dos eventos. O primeiro é o espaço geográfico: a interiorana e assombrada cidade de Vila Velha na ambientação de Paraty. O local entra em cena moldado como microcosmo alimentado de repressão e conservadorismo. Mina a alma de seus habitantes, reduzindo-os a seres acanhados, frustrados, acuados em seus desejos e temerosos de seus próximos. Cumpre-se o dizer de Sartre: "O inferno são os outros". A cidade é uma entidade coletiva que age em uníssono. Vigia, coopta e dilacera aos poucos os moradores, principalmente os ainda possuidores de reservas de autonomia e vitalidade. Estes, logo percebidos como ameaças, são admoestados a entregar os pontos, às vezes pela trilha do suicídio ou da loucura. Intrigas, maledicências e o vigiar constante da vida alheia andam de braços dados com a moral religiosa e as muitas carências que afloram nesse universo. Pichações de autoria desconhecida infestam muros e paredes. Acusam os malfeitos de uns e outros; aumentam o clima de intolerância. Chega-se ao ponto de proibir o fornecimento de giz às professoras — que passam a lecionar sob severa vigia policial — e a comercialização do produto.


Acuada pela insuportável pressão social, a jovem Maria comete suicídio


O segundo personagem é Ida (Diniz), protagonista e narradora da história. Suas falas descortinam o espaço físico e social a partir de tempo e lugar não definidos. Vemo-la movimentando-se ao longo da história, como se fosse a intérprete de si mesma ou de acontecimentos que testemunhou e ajudou a desencadear, a partir de uma rememoração construída em outro lugar, transcorridos alguns períodos após a década de 30. Todo o filme se molda como álbum de recordações nem sempre bem definidas, que conecta momentos e tempos dispersos sem o auxílio de uma linha de contínua coesão.


Leila Diniz, intérprete de Ida, a protagonista de Mãos vazias


Ida é mineira, herdeira de família tradicional e de posses, casada com o moralista Felipe (Kléber), ao qual se submete. Luisinho é filho criança de ambos. Por determinação do marido deixam a cidade em que viviam. Mudam-se para a ensolarada e assombrada Vila Velha. Felipe sonha com posto de projeção no Banco do Brasil local e na reativação do engenho estagnado da família. Planeja internar o filho em colégio de boa formação, no Rio de Janeiro. Entretanto, dada a atmosfera local, os planos não se materializam. Lembranças da infância, de um tempo mais promissor, atravessam a narrativa ao som da exasperante trilha de Jaceguay Lins. Enquanto isso, os recém-chegados se aclimatam à nova ambientação, principalmente pelas relações de amizade logo desenvolvidas com um casal em crise: Ana (Magalhães) e Mário (Arduíno Colasanti). Ele, médico, alimenta parte das intrigas que movimentam a cidade, graças a um envolvimento homossexual.



Acima e abaixo:  Ida (Leila Diniz) com o marido Felipe (José Kléber)


A vicissitude conjugal de Ana e Mário, somada à peculiaridade social de Vila Velha, aos poucos interfere e mina a relação de Ida com Felipe. A cisão se instala definitivamente com a enfermidade e morte de Luisinho. Depois de muitas noites de vigília na atenção ao garoto, Ida desaba emocionalmente com a constatação do óbito. Alivia a tensão em cena ousada, entregando-se sexualmente a Mário no leito onde jaz o corpo do filho. Cometida a máxima transgressão, julga-se desimpedida para agir. O coroamento do luto se dá ao abandonar o marido. Com as mãos livres (ou vazias) deixa a casa em disparada, discretamente sorridente. Tenta a independência. Mas há a cidadezinha que tudo ouve, vê e cerceia. Torna-se indispensável acertar contas com este microcosmo social. A isto Ida se obriga, de forma a mais visceral e desconcertante.


Elas atuam em Mãos vazias: Irene Stefânia (à direita, acima), Ana Maria Miranda e Ana Maria Magalhães (à esquerda).


O farmacêutico de Vila Velha (Parente) é a primeira vítima fatal da reconstrução da personagem. Ela o assassina de forma aparentemente banal e gratuita. Porém, ele sabia da vida de todos. Pouco antes de morrer admitiu: "Não há limite entre eu mesmo e outras pessoas". A seguir, como se desse testemunho da impossibilidade da individualidade, admite: "O pior sofrimento é permanecer à margem". Logo após, Ida se acumplicia a Ana para dar cabo de outro sabedor de segredos: Mário. O amante deste acompanhado de outras mulheres vitimadas pela moral social se juntam à trama, o que fornece validade à observação sobre a comunidade da parte de um dos personagens: “Todas as pessoas desta cidade são idênticas. Umas completam as fraquezas e mentiras das outras. Não se perdoa nenhuma saída individual. É como um gado que caminha para a morte, em silêncio”. Consumado mais um ato de liberação sanguinolenta, o filme se encaminha para o final. Apesar dos esforços do temeroso Felipe acerca dos julgamentos da moral social, não consegue assegurar o retorno de Ida ao convívio doméstico. No epílogo, assiste impotente a partida da esposa no barco de um marinheiro que ela há pouco conheceu. Ida vai com sua ilusão de liberdade. Simbolicamente carrega todas as suas culpas no enorme baú que guarda o corpo de Mário. O final, francamente pessimista, aponta para a impossibilidade do viver pleno em qualquer tipo de relacionamento, seja no social mais amplo ou no convívio matrimonial, ainda mais quando estão cerceadas todas as possibilidades de fruição individual. Atesta taxativamente uma fala final: “A gente só vai se ver livre do outro quando um de nós morrer”. Ou segundo afirmação da emblemática figura da cartomante (Stefânia), liberdade significa não ter culpa. Porém, como?


Nildo Parente (à esquerda) interpreta o farmacêutico; Arduíno Colasanti faz o médico Mário

Em primeiro plano a mal afamada cartomante Irene (Irene Stefânia) 

Irene (Irene Stefânia) e Ida (Leila Diniz)


Mãos vazias é indispensável, apesar de não ser fácil assisti-lo, principalmente pelos espectadores de hoje, mal habituados à introspecção, aos planos longos e ao silêncio. Há muitos momentos silenciosos durante a narrativa, inclusive quando se ouve algo. Acima de tudo, é um filme contido. Por isso, faz-se desafiador a quem a ele se entrega. Causa também estranhamento saber que foi realizado por um diretor estreante, membro da juventude que poderia facilmente ser tomada como alienada segundo as classificações dicotômicas dos grupos antenados do começo dos anos 70.


A contenção do filme também tem reflexos na interpretação de Leila Diniz. A atriz, geralmente tão solar, alegre, voluntariosa e vibrante, sai-se maravilhosamente bem nos trajes reflexivos de uma personagem em conflito consigo mesma, desafiadora do casamento sacrossanto e da moral de um meio social altamente castrador. Causa até estranhamento a ausência de sorrisos no semblante de Leila, ao menos na forma larga ao qual nos habituou.


Disposta a deixar tudo e todos, Ida (Leila Diniz) firma relações com o marinheiro que levará de Vila Velha 


Em 1987, sob a pele da atriz Louise Cardoso, Leila receberia belíssima homenagem em filme dirigido pelo mesmo Luiz Carlos Lacerda: Leila Diniz.


Para finalizar, cabe ressaltar a generosidade agradecida do diretor. Os diálogos, em alguns momentos, tomam a liberdade da tecer referências às pessoas que lhe são caras. Diante da possibilidade de se conseguir um empréstimo financeiro para Felipe reativar a propriedade e o engenho da família, diz Mario: "Tenho um amigo influente, o Nelson Pereira dos Santos... Se quiser, posso falar com ele". Mais adiante, a atriz Maria Gladys também tem o nome mencionado afetivamente por uma personagem.


Luiz Carlos Lacerda com o "padrinho" e incentivador Nelson Pereira dos Santos

  
Roteiro: Luiz Carlos Lacerda, com base em novela homônima de Lúcio Cardoso. Música: Jaceguay Lins. Direção de fotografia (Eastmancolor): Rogério Noel. Montagem: Raymundo Higino. Direção de arte e figurinos: Mara Chaves. Som guia: Nelson Pereira dos Santos Filho. Direção de produção: Carlos Alberto Diniz. Produtores associados: Nelson Pereira dos Santos, Júlio Romiti. Assistência de produção: Luiz Carlos Lacerda de Freitas. Equipe de produção: Hélio de Oliveira; Francisco Nunes, Pedro Jaconi. Gerente de produção: Hélio de Oliveira. Assistentes de direção: Raimundo Bandeira de Mello, Arduíno Colasanti. Continuidade: Dora Ribeiro. Assistente de fotografia: Antonio Luiz Mendes. Fotografia de cena: Antônio Luiz Mendes, Arduíno Colasanti. Eletricistas: Sandoval Dóres, Rodrigo Jorge. Assistente de montagem: Ronaldo Marques. Laboratório: Líder Cine Laboratórios. Estúdio de Som: R. F. Farias. Técnico: Fonseca. Mixagem: Somil. Gravação de músicas: Estúdio B. Agradecimentos à: Prefeitura de Parati, Delegacia de Polícia de Parati, América Fabril, Souza Cruz, Vera Barreto Leite, Anna Maria Ribeiro, Helena Marques, Paulo Bittencourt, Moura Brasil, Colégio Samuel Costa, Douglas Rameck, Hugo de Magalhães, Família Cruz Martins, Capitania dos Portos de Parati. Tempo de exibição: 9o minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2014)



[1] LACERDA, Luiz Carlos. Mãos vazias. <http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/leila/filmes/cinema/02_03_12.php>. Acessado em 18 jun. 2014. Da união de Leila com Ruy Guerra nasceu Janaína Diniz Guerra em 19 de novembro de 1971.
[2] Cf. MIRANDA, Luiz F. A. Dicionário de cineastas brasileiros. São Paulo: Art Editora, 1990. p. 183.
[3] Cf. LACERDA, Luiz Carlos. Op. cit.
[4] FARFÁN. René Capriles. Luiz Carlos Lacerda: "A poesia marcou meu cinema". Entrevista. Filme Cultura. Rio de Janeiro, ano VI, n. 20, p. 39-41, maio-jun. 1972.
[5] A MULHER de longe retoma poeticamente filme de Lúcio Cardoso. <http://www.famdetodos.com.br/por/noticias/252-A_mulher_de_longe_retoma_poeticamente_filme_de_Lucio_Cardoso>. Acessado em 18 jun. 2014.
[6] FARFÁN. René Capriles. Op. cit.