domingo, 27 de dezembro de 2015

UMA BELA PARA TEMPOS DE AFIRMAÇÃO FEMININA

A Bela e a Fera (Beauty and the Beast, 1991), de Gary Trousdale e Kirk Wise, é o trigésimo desenho animado longo dos Estúdios Disney. Adapta — a partir do conto escrito por Giovan Strapolo, no século XVI — a célebre história de Madame Le Prince de Beaumont. Em tudo difere de versões anteriores, a começar pelo caráter de Bela. A personagem é independente, forte, decidida e intelectualizada. Boas leituras são suas principais companhias e nutre pouca importância à aparência das pessoas, ainda mais as desprovidas de qualidades consideradas essenciais. Sabe descortinar além. Romântica, não deixa de ser, também, calculista e pragmática. Formalmente perfeito mas excessivamente incensado em seu todo, A Bela e a Fera é o primeiro desenho animado indicado à láurea máxima da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood: o Oscar de Melhor Filme. Também é a realização que tirou os estúdios Disney do marasmo acadêmico que engessava, no quesito criatividade, a produção de desenhos animados. Pioneiro no uso irrestrito da computação gráfica, valeu-se do recurso em prol da criatividade feérica, principalmente na viabilização de movimentos de câmera até então inéditos e em tomadas que ampliaram a profundidade do campo visual. A apreciação a seguir é de 1993.






A Bela e a Fera
Beauty and the Beast

Direção:
Gary Trousdale, Kirk Wise
Produção:
Don Hahn
Walt Disney Pictures, Silver Screen Partners IV, Walt Disney Feature Animation (uncredited)
EUA — 1991
Elenco:
Vozes originais de: Robby Benson, Jesse, Rex Everhart, Angela Lansbury, Paige O'Hara, Jerry Orbach, Bradley Pierce, David Ogden Stiers, Richard White, Jo Anne Worley, Mary Kay Bergman, Brian Cummings, Alvin Epstein, Tony Jay, Alec Murphy, Kimmy Robertson, Hal Smith, Kath Soucie, Frank Welker, Jack Angel, Scott Barnes, Vanna Bonta, Baureen Brennan, Liz Callaway, Philip L. Clarke, Margery Daley, Jennifer Darling, Albert de Ruiter, George Dvorsky, Bill Farmer, Bruce Fifer, Johnson Flucker, Larry Hansen, Randy Hansen, Mary Ann Hart, Alix Korey, Phyllis Kubey, Hearndon Lackey, Sherry Lynn, Mickie McGowan, Larry Moss, Panchali Null, Wilbur Pauley, Jennifer Perito, Caroline Peyton, Patrick Pinney, Cynthia Richards-Hewes, Phil Proctor, Susan Napoli, Gordon Stanley, Stephen Sturk, Giulliana Succine, Brian Harvey.



Os diretores Gary Trousdale e Kirk Wise. Ao fundo, imagens de Atlantis: o reino perdido (Atlantis: the lost empire), desenho animado longo que realizaram em 2001 para os Estúdios Disney


A Bela e a Fera é o trigésimo desenho animado longo dos Estúdios Disney. Inova na forma e no conteúdo o padrão de qualidade imposto pelo criador de Mickey Mouse ao recontar assustadora história infantil adaptada por Madame Le Prince de Beaumont do conto escrito por Giovan Strapalo, no século XVI, a partir de ecos de antiga lenda grega. Em nada se parece com versões cinematográficas anteriores, das quais a de Jean Cocteau  A Bela e a Fera (La Belle et la Bête, 1946)  é a mais famosa.


Uma Bela independente, intelectualizada e contemporânea


Os roteiristas liderados por Linda Woolverton amenizaram os elementos mais lúgubres e modernizaram a personalidade de Bela. Originalmente submissa, ganhou traços da mulher ocidental contemporânea. É independente, forte, decidida, intelectualizada e personalíssima. É mais adulta e feminina também. Não é assexuada, como muitas heroínas de celulóide da Disney. Encontra distração na leitura de bons livros, hábito que irrita profundamente Gaston, o rapaz forte, bonitão, bronco, bruto e mau caráter que a corteja.


A Fera foi humanizada o bastante para ter atenuado o aspecto horrendo e truculento. Se, a princípio, Bela se assusta com a visão da criatura, deixa-se atrair pelas qualidades que demonstra em termos de cultura, sensibilidade e, inclusive, por seu sofrimento. A aparência é a temática central da moral destilada pelo filme. É reduzida a algo vazio, desprovido de maiores significados se a pessoa considerada não possuir atrativos suplementares — internos, melhor dizendo — para preenchê-la. Por isso, Bela descarta Gaston e se apaixona pela Fera. Apesar de o sentimento de pena se fazer presente, não é a principal causa da afeição da moça pela besta  condenada por uma maldição a uma vida de solidão e tristeza , mas suas qualidades fundamentais, do coração, externadas às custas de longo e pungente processo.


Bela e Gaston - o bronco e mau caráter

Bela e Fera - criatura em busca de redenção


O castelo onde Bela cai prisioneira, medonho de início, logo se torna mais agradável graças às simpáticas e bem humoradas criaturas que aí se movem. São, em geral, utensílios do lar; na verdade, membros da criadagem também atingidos pela maldição que se abateu sobre o príncipe proprietário do lugar. E para tornar tudo mais agradável, há, claro, a música, elemento fundamental em qualquer animação da Disney. A trilha sonora de Alan Menken, esfuziante, recebeu o Oscar. Ele e Howard Ashman assinam as canções. A composição que embala a dança dos protagonistas também foi agraciada pela Academia. Ashman faleceu durante a realização. O filme é dedicado à sua memória.



Seres humanos reificados, ou  antropomorfizados utensílios do lar, garantem o humor e são atração à parte


A Bela e a Fera tirou a Disney do marasmo acadêmico que burocratizou a linha de produção dos desenhos animados, mal que afetou a criatividade da Companhia desde a morte de Walt em 1966. A necessidade de renovação na forma, nos temas, no humor e na moral caduca dos personagens começou a se impor com mais força desde a realização de As peripécias de um ratinho detetive (The great mouse detective, 1986), de Ron Clements, Burny Mattinson, David Michener e John Musker, considerado esteticamente ultrapassado apesar do reconhecido padrão de qualidade. A produção seguinte, A pequena sereia (The little mermaid, 1989), de Musker e Ron Clements, preparou o terreno para as inovações radicalizadas em A Bela e a Fera. A principal, o uso irrestrito da animação computadorizada, teve caráter experimental nas duas realizações anteriores. O computador viabilizou peripécias formais, revolucionou nos aspectos relacionados à dimensionalidade dos desenhos e permitiu a introdução de inéditos e elaborados movimentos de câmera, percebidos principalmente na sequência da dança e na animação dos utensílios domésticos do castelo. Foram tamanhas as inovações a ponto de alguns críticos se lançarem em comparações que aproximavam A Bela e a Fera do revolucionário Cidadão Kane (Citizen Kane, 1940), de Orson Welles. Entretanto, todas essas novidades se tornaram o calcanhar de Aquiles da produção. Formalmente, a realização é impecável. Mas teve andamento prejudicado em dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, pouca atenção foi dada à evolução da história. Faltou dinamismo. O ritmo é sacrificado em vários momentos. O segundo problema diz respeito à concepção dos personagens. São rasos e convencionais, excessivamente caricatos. Nesses aspectos, o formalmente menos ousado A pequena sereia é muito superior: privilegia o humor por quase todo o tempo, não deixa cair o pique narrativo e os personagens são melhor burilados.


O fim...

...e o começo


Apesar dos senões, A Bela e a Fera foi indicado ao Oscar de Melhor Filme. Até então nenhum desenho animado recebera nominação ao prêmio maior da Academia.



A Bela e a Fera




Roteiro: Linda Woolverton, Roger Allers, Brenda Chapman, Burny Mattinson, Brian Pimental, Joe, Kelly Asbury, Chris Sanders, Kevin Harkey, Robert Lence, baseados na história de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (não creditada). Produção do elenco de vozes: Albert Tavares. Canções: Howard Ashman, Alan Menken. Trilha sonora original: Alan Menken. Produção associada: Sarah McArthur. Direção de arte: Bran McEntee. Montagem: John Carnochan, Bill Wilner (não creditado). Supervisão artística: Roger Allers (story); Ed Ghertner (layout); Lina Keene (background); Randy Fullmer (efeitos visuais); Jim Hillen (imagens de computação gráfica). Direção de fotografia em Technicolor. Produtor executivo: Howard Ashman. Assistentes de gerente de produção: Theresa Bentz, Brett Hayden (efeitos de computação gráfica), Patrícia Hicks (layout), Paul Steele, Deborah Tobias, Suzie Vissitzky Tooley (composição e refilmagens). Gerentes de produção: Baker Bloodworth, Cathy McGowan Leahy, Tim O'Donell. Supervisão de produção: Dorothy McKim. Gerente de pré-produção: Ron Rocha. Desenvolvimento visual: Kelly Asbury, Michael Cedeno, Jean Gillmore, Darek Gogol (não creditado), Daan Jippes (não creditado). Consultor de produção de desenvolvimento visual: Hans Bacher, Jean Gillmore. Planejamento: Mac George (stained glass). Joe Grant, Kevin Lima, David Molina, Sue C. Nichols, Michael Peraza Jr., Chris Sanders, Terry Shakespeare, Mel Shaw. Cartaz original: John Alvin (não creditado). Assistentes da edição de som: Oscar Mitt, Sonny Pettijohn, David E. Stone, Steve Lee (não creditado). Edição de som: John H. Arrufat, Ron Bartlett, Michael J. Benavente, Julia Evershade, Jessica Gallavan. Edição de substituição de sons: Julia Evershade. Efeitos sonoros especiais: Drew Neumann, John Pospisil. Efeitos sonoros: Mark A. Mangini. Engenharia de gravaçao e mixagem: Dana Jon Chappelle. Gravação de combinação de som: Denis Blackerby. Gravação de ruídos de sala: Carolyn Tapp (não creditado). Mixagem da regravação de som: David J. Hudson, Mel Metcalfe, Terry Porter. Mixagem da substituição de diálogos: Vince Caro, Doc Kane. Mixagem de playback: Larry Hopkins. Pdl: Jeannette Cremarosa, Judy Nord. Ruídos de sala: Vanessa Theme Ament, John Roesch, Catherine Rowe, Jackson Schwartz (não creditado). Transferência de som: Matthew C. Beville. Animação computadorizada: Gregory William Griffith. James Tooley, Linda Bel. Arte stereoscópica: Felipe Cerdán, Shannon McGee. Assistentes de efeitos de animação: Cynthia Neill Knizek, Dan Chaika, James DeValera Mansfield, Jeff Dutton, John Tucker, Mabel Gesner, Mark Barrows, Allen Blyth, Steve Starr, Allen Stovall. Assistente de gerente de produção (desenhos de fundo, cor de modelos, conferência): Bruce Grant Williams. Composição: David J. Rowe, James 'J.R.' Russell, Shannon Fallis Kane. Consultoria ótica: Peter Montgomery. Coordenação de produção em computação gráfica: Rozanne Cazian. Efeitos de animação: Bob Bennett, Christine Blum, Eduardo Gomez Brieno, Christopher Jenkins, Ed Coffey, Eusebio Torres, Kelvin Yasuda. Efeitos gráficos: Bernie Gagliano. Engenharia de software de animação: Edward Kummer, Mary Jane 'M.J.' Turner, Scott F. Johnston. Gerente de computação gráfica: Dan Philips. Operador de câmera ótica: Allen Gonzales. Pintura digital: Thomas Cardone. Supervisão de computação gráfica: Jim Hillin, Dave Bossert. Supervisão de efeitos de animação: Dorse A. Lanpher, Mark Myer, Ted Kierscey, Barry Cook, Randy Fullmer, Stephen B. Moore. Supervisão ótica: Mark Dornfeld. Coordenação de operação de câmera: Louise Foley. Coordenação do departamento de câmera: Suzy Zeffren. Digitalização: Gina Wootten. Equipe de vídeo de ação viva: Al Vasquez, David Weiss. Gerente de câmera: Joe Jiuliano. Operador de câmera da pré produção: Robert Edward Crawford (não creditado).Operadores de câmera de animação: John Aardal, Mary Lescher, Gary W. Smith. Operadores de câmera: Christine Beck, Christopher W. Gee, Chuck Warren. Operadores de câmera digital: Kent Gordon, Tina Baldwin, Jo Ann Breuer, Karen China, Bob Cohen, Lynnette Cullen, Gareth Fishbaugh, Cindy Garcia. Supervisão de câmera de animação: John Cunningham. Supervisão de câmera digital: Robyn Roberts. Supervisão de câmera: Ariel Velasco-Shaw. Animação bidimensional: Bob Cohen, Gareth Fishbaugh, Jo Ann Breuer, Karen China, Kent Gordon, Robyn Roberts, Tina Baldwin, Cindy Garcia. Animação: Aaron Blaise, Anthony de Rosa, Barry Temple, Broose Johnson, Cynthia Overman, Dan Boulos, Dave Burgess, David Stephan, Doug Krohn, Brad Kuha, Alex Kupershmidt. Ellen Woodbury, Geefwee Boedoe, Joe Haidar, Ken Duncan, Larry White, Phillip Young, Lennie K. Graves, Lorna Cook, Mark Kausler, Michael Cedeno, Michael Show, Mike Nguyen, Randy Cartwright, Rejean Bourdages, Rick Farmiloe, Ron Husband, Tom Sito, Beverly Adams, Dorothea Baker, Kathleen M. Bailey, Tim Allen, Tony Anselmo, Tony Bancroft. Assistente de tomadas aéreas: Donna Weir. Assistentes de animação: Arland Barron, Arturo A. Hernandez, Bette Holmquist, Brett D. Newton, Brian Ferguson, Brian McKim, Bruce Strock, Carl Bell, Christine Lawrence Finney, Dan Tanaka, Dana M. Reemes, Daniel A. Gracey, Denise Meara-Hahn, Dusty Wakefield, Eric Pigors, Gail Frank, Gilda Palinginis, Ginny Parmele, James A. Davis, Jennifer Oliver, Johan Klingler, Juliet Stroud, Kaaren Lundeen, Karen Hardenbergh, Karen Rosenfield, Ken Cope, Jesus Cortes, Kent Culotta, Laura Nichols, Lee Dunkman, Leticia Lichtwardt, Lon Smart, Lou Dellarosa, Lureline Kohler, Marcia Kimura Dougherty, Margie Daniels, Maria Rosetti, Marianne Tucker, Mark Kennedy, Marshall Lee Toomey, Matt Novak, Maureen Trueblood, Merry Kanawyer Clingen, Michael Gerard, Mike Hazy, Mike McKinney, Natasha Selfridge, Peggy Tonkonogy, Philip S. Boyd, Philo Barnhart (não creditado), Pres Romanillos, Randy Sanchez, Ray Harris, Richard H. Green, Rick Kohlschmidt, Robert Bryan, Sam Ewing, Scott Anderson, Steve Lubin, Susan Lantz, Tracy M. Lee, Susan Sugita, Michael Surrey, Teresa Eidenbock, Teresa Martin, Terry Naughton, Terry Wozniak, Tom Bancroft, Trevor Tamboline, Trey Finney, William Recinos, Sue Adnopoz. Caracterização: Alex Topete, Dave Suding, Debra Armstrong, Emily Jiuliano. Conferência da animação: Barbara Wiles, Gary Shafer, Mavis Shafer, Karen Hepburn, Karen S. Paat, Saskia Raevouri, Teri McDonald. Controle de qualidade: Jeff Scheftel. Cor: Ann Sorensen, Beth Ann McCoy, Elrene Cowan (não creditada), Leslie Ellery, Rhonda L. Hicks, Diana Falk, Penny Coulter. Desenhos de fundo: Bill Kaufmann, Cristy Maltese, Dean Gordon, Diana Wakeman, Thomas Woodington, Donald Towns, Doug Ball, Greg Drolette, Debbie Du Bois, Jim Coleman, John Emerson, Kevin Turcotte, Christophe Vacher, Lisa Keene, Michael Kurinsky, Natalie Franscioni-Karp, Philip Phillipson, Robert E. Stanton, Serge Michaels, Tia W. Kratter, William Dely. Desenvolvimento da história: Tom Ellery. Esculturas: Kenny Thompkins, Ruben Procopio. Layout: Allen Tam, Mitchell Bernal, Bill Perkins, Daniel Hu, Daniel St. Pierre, David C. Gardner, Davy Liu, Ed Ghertner, Fred Craig, Jeff Dickson, Larry Leker, Lorenzo Martinez, Mac George, Michael O'Mara, Michael Tracy, Doug Walker, Robert Walker, Mark Wallace, Rasoul Azadani, Rick Moore, Tanya T. Wilson, Thom Enriquez, Tom Shannon. Pintura: Anne Hazard, Britt Van der Nagel, Irma Velez, Susan Wileman, Micki Zurcher, Bruce Phillipson, Carmen Sanderson, Chris Hecox, David Karp, Fumiko R. Sommer, Harlene Mears, Heidi Shellhorn, Hortensia Casagran, Karen Nugent, Leyla C. Amaro Nodas, Paulino García, Phyllis Fields, Russell Blandino, Sherrie Cuzzort, Deborah Mooneyham, Phyllis Bird. Planejamento de personagens: Dan Haskett. Reprodução xerográfica: Albert Francis Moore. Retificações: John Ramirez, Miriam McDonnell. Supervisão da animação: Ric Sluiter, Andreas Deja, Chris Wahl, David Pruiksma, Glen Keane, James Baxter, Janet Bruce, Mark Henn, Nik Ranieri, Ruben A. Aquino, Russ Edmonds, Will Finn. Supervisão de caracterização: Bill Berg, Brian Clift, Marty Korth, Nancy Kniep, Renee Holt, Richard Hoppe, Stephan Zupkas, Vera Pacheco. Supervisão de cor: Karen Comella. Supervisão de limpeza dos desenhos: Ruben Procopio, Vera Pacheco. Supervisão de pintura: Barbara Lynn Hamane, Rhonda L. Hicks. Supervisão de tomadas aéreas: Ann Tucker. Associado à produção de casting: Matthew Messinger. Assistentes de montagem: Eric C. Daroca (não creditado), Deirdre Hepburn-Mangione, Pamela G. Kimber, James Melton. Associado à montagem: Gregory Perler. Colorização: Kent Pritchett. Coordenação da pós produção da montagem: Robert Bagley, Jeannine Berger. Corte do negativo: Mary Beth Smith. Equipe da montagem: Beth Ann Collins, Chuck Williams. Uniformização da cor: Dale E. Grahn. Arranjos das canções: Alan Menken, Danny Troob. Arranjos vocais: David Friedman. Direção musical: David Friedman. Edição musical: Earl Ghaffari. Efeitos vocais especiais: Frank Welker. Engenharia de gravação da trilha musical: Vince Caro. Gravação da trilha musical: John Richards. Gravação das canções: Michael Farrow. Letras das canções: Howard Ashman. Mixagem da trilha musical: John Richards. Mixagem musical das canções: Michael Farrow. Músicas das canções: Alan Menken. Músicos: Bryan Pezzone (não creditado), James Thatcher (horn francês/não creditado), Norman Ludwin, Anna Rose Menken, Tom Boyd (Oboé/não creditado), John Moses (clarinete/não creditado). Organização da orquestra: Emile Charlap, Ken Watson. Orquestração adicional da trilha musical: Michael Starobin. Orquestração: Danny Troob. Produção das canções: Alan Menken. Supervisão da edição musical: Kathleen Bennett. Administração da produção: Dorothy McKim. Assistente para o produtor: Patti Conklin. Assistentes de produção: Karenna Mazur Alderton, Anthony F. Rocco, Kevin Traxler, Brett Drogmund, Eric Lee, Tod C. Marsden, Dale A. Smith, Christopher Tapia, Holly E. Bratton, Kevin L. Briggs, Janet McLaurin, Mary Jo Miller, Laura V. Perrotta, Raines Carr, Greg Chalekian, Matthew Garbera, Sean Hawkins, Laurie Ashbourne, Kirk Bodyfelt. Contabilidade: Carole Constantineau, Robin J. Flynn, Darrell Brown, Kyle Patterson. Continuidade: Roger Allers. Coordenação da produção: Charlie Desrochers, Kevin Wade. Coordenação de operações: Bruce Portman. Desenvolvimento da história em pré produção: Tim Hauser, Darrell Rooney, Jim Cox, Dennis Edwards, Rebecca Rees, Rob Minkoff. Engenharia de desenvolvimento: David Coons, Scot Greenidge, Jim Houston, Mark Kimball, Marty Prager. Equipe de tecnologia: Michael D. Kliewer. Gerentes de engenharia: Dave Inglish, David F. Wolf. Gerente de operações: John Brown, Robert Haro. Marcações de ação viva: Dan McCoy, Sherri Stoner, Peter Hastings. Planejamento de créditos: Nina Saxon. Processamento em branco e preto: Joe Parra, John White. Projecionista: Don Henry. Secretaria da produção: Barbara J. Poirier, Stephen Bove. Sequências de danças de modelos de ação viva: Mary Anderson, Duane May. Supervisão técnica para conversão estereofônica: Hank Driskill. Suportes à engenharia: Grace Shirado, Michael T. Sullivan, Mark M. Tokunaga, Michael C. Bolds, Randy Fukuda, Michael K. Purvis, Carlos Quinonez, Pradeep Hiremath, Kiran Bhakta Joshi, Brad Lowman, Raul E. Anaya, Bruce Hatakeyama, Paul Yanover. Dedicado a: Howard Ashman. Agradecimentos especiais a: Vance Gerry. Companhia de corte do negativo: Buena Vista Negative Cutting. Companhia de efeitos especiais: Weddington Productions.Companhia de renderização: Silicon Graphics Computer Systems. Companhia de ruídos de sala: Buena Vista Sound, TAJ Soundworks. Companhia de softwares de modelagem: Alias Research Inc. Estúdio de gravação e mixagem musical: Sony Studios. Estúdios de edição musical: Segue Music. Estúdios de gravação digital: Celco. Estúdios de gravação e mixagem das canções: BMG Recording Studios. Estúdios de gravação: Buena Vista Sound. Estúdios de mixagem e gravação: Evergreen Recording Studios. Firma para questões legais: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Planejamento de créditos: Buena Vista Imaging, Saxon/Ross Film Design. Trilha musical disponível por: Walt Disney Records. Sistemas de mixagem de som: Dolby Stereo (Surround Sound). Tempo de exibição: 85 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1993)

domingo, 20 de dezembro de 2015

STEPHEN FREARS E O BFI POSICIONAM A GRÃ BRETANHA NAS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DO CINEMA

Oficialmente, o cinema completou cem anos em 1995. Em comemoração, o British Film Institute organizou o painel O século do cinema (The century of cinema): dezoito realizações em formato de documentários conduzidos por diretores os mais diversos abarcam cinematografias nacionais, regionais e continentais: Estados Unidos, França, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Alemanha, Irlanda, Itália, Polônia, Austrália, China, Índia, Rússia, América Latina, Escandinávia, Arábia, África e Grã Bretanha. Ficou por conta de Stephen Frears, apoiado pela codireção de Michael "Mike" Dibb, a exposição sobre o centenário do cinema na Grã Bretanha. Tipicamente britânico (A personal history of British cinema by Stephen Frears/Typically British) está entre as mais interessantes peças do painel. A exposição é conduzida pelo próprio Frears em diálogo com Alexander Mackendrick, Michael Apted, Alan Parker e Gavin Lambert. Percorre com bom humor e ironia a trajetória britânica no cinema, sem desperdiçar tempo com lamúrias, ressentimentos e acusações. A vocação insular da produção cinematográfica britânica é vista no contraponto com a tendência cosmopolita que também a alimenta, ao longo de uma história pontuada de ciclos fechados e descontínuos. Dentro das limitações da exposição restrita a 53 minutos (há edições com até 74 minutos), tentou-se ao máximo a abrangência. Mas algumas omissões são especialmente sentidas. Restou muito pouco tempo, quase nada, ao tratamento do Free cinema e a contribuição ímpar do brasileiro Alberto Cavalcanti sequer é mencionada. A apreciação a seguir é de 1998.






Tipicamente britânico
A personal history of British cinema by Stephen Frears/Typically British

Direção:
Stephen Frears, Michael “Mike” Dibb
Produção:
Colin MacCabe
British Film Institute, Channel Four
Inglaterra — 1994
Elenco:
Participações de Michael Apted, Stephen Frears, Gavin Lambert, Alexander Mackendrick, Alan Parker.



Stephen Frears e o codiretor Michael "Mike" Dibb


Dedicado à Alexander Mackendrick, Lindsay Anderson e Derek Jarman, Tipicamente britânico celebra o centenário do cinema recapitulando a particular contribuição da Grã Bretanha à sétima arte. Responsável pela realização junto com “Mike” Dibb, Stephen Frears destaca as fases, obras e personalidades que considera as mais relevantes. Espertamente, resolveu não assumir sozinho os riscos da exposição. Para ajudá-lo, convidou os cineastas Alexander Mackendrick (falecido logo após as filmagens), Michael Apted, Alan Parker e o crítico e pesquisador Gavin Lambert. Resultado: Tipicamente britânico, apesar das imperdoáveis omissões, diz a que veio. É um dos mais interessantes títulos dos dezoito que integram o painel O século do cinema (The century of cinema, 1995), resultado do esforço, patrocínio e coordenação do British Film Institute. Interessante por tentar evitar o enfoque parcial. Procura a abrangência, dentro dos limites possíveis. Também não é um documentário sisudo. Percorre com bom humor e ironia a trajetória britânica no cinema, sem desperdiçar tempo com lamúrias, ressentimentos e acusações a quem quer que seja.


Alexander Mackendrick, Derek Jarman e Lindsay Anderson - a eles Tipicamente britânico é oferecido


O século do cinema releva cinematografias nacionais, regionais e continentais. Das nacionais, além da experiência britânica, comparecem: Estados Unidos da América  Uma viagem pessoal através do cinema americano com Martin Scorsese (A personal journey with Martin Scorsese through American movies), de Martin Scorsese; França  Duas vezes cinquenta anos de cinema francês (Deux fois cinquante ans de cinéma français), de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville; Japão  Cem anos de cinema japonês (Nihon eiga no hyaku nen), de Nagisa Oshima; Coreia do Sul  Ensaio pessoal sobre o cinema da Coreia por Jang Sun-Woo (Gilwe-eui younghwa), de Jang Sun-Woo; Nova Zelândia  O cinema da inquietação: uma viagem pessoal de Sam Neill (Cinema of unease: a personal journey by Sam Neill), de Sam Neill e Judy Rymer; Alemanha  A noite dos cineastas (Die nacht der regisseure, de Edgar Reitz; e, Irlanda  Cinema irlandês ‑ Nós sozinhos? (Irish cinema ‑ Ourselves alone?), de Donald Taylor Black. Bernardo Bertolucci, Pavel Lojinski, George Miller, Shu Kei, Mrinal Sem e Nikita Mikhalkov abordam, respectivamente, Itália, Polônia, Austrália, China, Índia e Rússia em trabalhos que ainda não vi. Das regionais há: América Latina  Cinema de lágrimas (Cinema de lágrimas), de Nélson Pereira dos Santos; Escandinávia (Noruega, Suécia, Islândia, Finlândia)  Sou curioso ‑ Filme (Jagär nyfiken, film/Jeger nysgerrig, film/Jeger nysgjerrig/Olen utelias, filmi/Eger Forvitin, Kvikmynd), de Stig Björkman; e as abordagens sobre os centenários do cinema na Arábia, por Mohamed Abderrahman Tazi, e na África, por Jean-Pierre Bekolo, ambas desconhecidas por mim. A cinematografia africana é a única continental destacada em O século do cinema.


A realização de Tipicamente britânico correu paralela às filmagens de O segredo de Mary Reilly (Mary Reilly, 1995), de Stephen Frears, nos ativos Pinewood Studios fundados nos anos 30 por Arthur Rank, um dos nomes mais importantes do cinema britânico — tão vulnerável às crises que invariavelmente determinam o brusco fim e esperançoso recomeço de épocas. As interrupções processuais aproximam a trajetória do cinema na Grã Bretanha da experiência brasileira, também marcada por ciclos fechados e sem continuidade.


Na foto maior, o produtor Alexander Korda; à direita, os produtores Arthur Rank (acima) e Michael Balcon

  
Tipicamente britânico começa marcando contraponto ao crítico e cineasta francês François Truffaut. Ele acreditava na existência de “uma incompatibilidade entre os termos “cinema” e “Grã Bretanha”. "Ora! Bolas para Truffaut”, diz Stephen Frears. Pronto! A partir daí o documentário enfatiza uma cinematografia em luta para se afirmar, vivendo o dilema de se manter genuína e original, mas presa ao insular isolamento da Grã Bretanha; quando não tenta o reconhecimento internacional via adesão a Hollywood, como fizeram os renomados Alfred Hitchcock, Alexander Mackendrick, Michael Apted e Alan Parker. David Lean não deixou a ilha, mas se abriu ao modelo praticado nos Estados Unidos. Para Frears, esse paradoxo é a marca permanente do cinema de sua terra.


Tipicamente britânico, a princípio, dialoga com sentimentos e lembranças de Frears. O cineasta relembra os tempos do internato, aos oito anos, quando estava aberto a tudo e tudo consumia, indistintamente. Essa época relacionada à escola fundamental, disciplina e castigos físicos ganha sentido nas imagens de produções que marcaram fundo a infância do diretor: o britânico Housemaster (1938), de Herbert Brenon, e os estadunidenses Adeus, Mr. Chipps (Goodbye, Mr. Chips, 1939), de Sam Wood, e Boys will be boys (1935), de William Beaudine, inclusive Uma noite na ópera (A night at the opera, 1935), de Sam Wood. Para assistir a este filme Frears pagou o preço da surra disciplinadora aplicada pelo diretor do estabelecimento.


Essa fase encontra correspondência em Alfred Hitchcock, que entende de castigo como poucos. O mestre do suspense, também passou por internatos. Lembra que aprendeu com os professores o significado de suspense: eles o informavam na segunda-feira sobre a punição que sofreria na sexta.


À esquerda, Alfred Hitchcock nos bastidores de seu  Jovem e inocente (Young and innocent, 1937)


A memória da repressão escolar, tão presente no sistema educacional britânico, prolonga-se quase naturalmente na seminal peça de contestação de Lindsay Anderson, Se... (If..., 1968), com Stephen Frears na assistência de direção.


Malcolm McDowell no papel de Mick em Se... (If..., 1968), de Lindsay Anderson


Após destacar as lembranças pessoais, Frears dialoga com Alexander Mackendrick e Gavin Lambert. Percorrem a época heroica do cinema britânico. São praticamente nulas as referências ao período silencioso. A ilha adentra o mapa cinematográfico ao final dos anos 20. Alfred Hitchcock é o referencial. Seu Chantagem e confissão (Blackmail, 1929) é obra emblemática e de maior impacto. O período é influenciado pelo expressionismo alemão, mas — destaca Lambert — o futuro diretor de Um corpo que cai (Vertigo, 1958) emancipou a câmera; ensinou que cinema não é literatura mas linguagem com repertório próprio, podendo ser alimentado e expandido por outras formas artísticas. O principal é a imagem: Hitchcock consegue uma “fantástica narração visual”; é o único a se preocupar com a técnica cinematográfica na Grã Bretanha dos anos 30, afirma Lambert. Essas qualidades o tornam fonte permanente de inspiração. Seguem-se cenas de A dama oculta (The lady vanishes, 1938) — última e melhor realização de Hitchcock na fase britânica —, com quase toda a ação passada no interior de um trem, até então o veículo cinematográfico por excelência na ilha, presente em obras marcantes como Noite tenebrosa (Terror by night, 1943), de William Neill; Pimpernell Smith (1941), de Leslie Howard; Oh! My Porter (1937), de Marcel Varnel; Gestapo (Night train to Munich, 1940), de Carol Reed; Night mail (1936), de Basil Wright e Harry Watt; e Os 39 degraus (The 39 steps, 1935), de Alfred Hitchcock.


Margaret Lockwood como Anna Bomasch em Gestapo (Night train to Munich, 1940), de Carol Reed


No quesito “produtores” Alexander Korda e Michael Balcon são proeminentes. Fundaram companhias de produção; tentaram dar dimensão industrial à atividade cinematográfica e estabilizar a atividade de realização. Fracassaram, apesar do início promissor. O húngaro Korda criou a London Film, aberta ao cosmopolitismo, de onde saíram os seus Os amores de Henrique VIII (The private life of Henry VIII, 1933) e Rembrandt (Rembrandt, 1936); O ladrão de Bagdá (The thief of Bagdad ‑ An Arabian fantasy, 1940), de Michael Powell, Tim Whelan e Ludwig Berger; e, entre outros, a ambiciosa ficção científica Daqui a cem anos (Things to come, 1936), de William Cameron Menzies, único deste grupo a ter imagens apresentadas em Tipicamente britânico.


Michael Balcon ergueu os Estúdios Ealing nos anos 40. Ao contrário de Korda, evitou a dispersão cosmopolita e pautou a ação da empresa na confecção de filmes acerca de temas genuinamente britânicos. Produziu Comboio (Convoy, 1940), de Pen Tennyson; Mergulhamos ao amanhecer (We drive at dawn, 1943), de Anthony Asquith; Mar cruel (The cruel sea, 1952), de Charles Frend; Um país de anedotas (Passport to Pimlico, 1949), de Henry Cornelius; e, entre outros, O expresso de Titfield (The Titfield Thunderbolt, 1952), de Charles Crichton.


O trabalho de produção de Michael Balcon alterou radicalmente a face do cinema britânico. Influenciou os anos da Segunda Grande Guerra ao começo da década de 50. É a "época de ouro”, segundo Gavin Lambert. Esse período, dominado pela visão de mundo de classe média, abre-se aos temas mais prosaicos e cotidianos, às questiúnculas do homem comum, em filmes que metaforicamente reproduzem a estrutura social britânica. É o caso das contribuições ao esforço bélico por Nosso barco, nossa alma (In which we serve, 1942), de Noël Coward e David Lean; e O caminho das estrelas (The way to the stars, 1945), de Anthony Asquitt. Os filmes ganham o rosto característico do ator John Mills, e um diretor, Humprhey Jennings, de Fires were started (1943), que persegue um cinema livre de preconceitos sociais, ao tentar retratar os indivíduos simplesmente como são ou aparentam ser.


O diretor David Lean e o poster de seu Grandes esperanças (Great expectations)


O boom da influência de Balcon ocorre durante a vigência do Gabinete Trabalhista de 1944-1949: Basil Dearden faz o moderno precursor do policial inglês, A lâmpada azul (The blue lamp, 1949) — chocante pela exposição realista da violência, sordidez, deliquência e criminalidade; David Lean se projeta com a poderosa trinca Desencanto (Brief encounter, 1945), Grandes esperanças (Great expectations, 1946), e Oliver Twist (Oliver Twist, 1948), com os quais se torna um dos maiores nomes do cinema britânico; Carol Reed festeja imagem e forma narrativa em O terceiro homem (The third man, 1949); Laurence Olivier mostra a que veio com Henrique V (Henry V, 1944); Michael Powell e Emeric Pressburger combinam plasticidade, idiossincrasia e ousadia formal ao abrigo da Production of the Archers, geradora, entre outros filmes magníficos, de Neste mundo e no outro (A matter of life and death, 1946), cujas imagens são destacadas.


O diretor Carol Reed e poster de seu O terceiro homem (The third man)


Na abordagem da “época de ouro” Frears, Lambert e Mackencrick fazem discreta troça com a vocação interpretativa dos franceses, pois cometeram o absurdo de perceber conotações homossexuais em Desencanto. Brincam com a característica inglesa de ocultar emoções e sentimentos e destacam a importância da instituição nacional do chá em vários filmes. Segundo Gavin Lambert, não importa a situação, quanto ao chá a reação será sempre a mesma: “Com uma boa xícara de chá você vai se sentir melhor”, diz a classe trabalhadora, enquanto a aristocracia e a alta burguesia preferem “Acabei de fazer chá. Acho que uma chávena lhe fará bem”. Faz as comparações carregando na pronúncia e arrancando risos dos interlocutores.


Ao otimismo dos anos 40 vem a derrocada na década seguinte. O cinema britânico perde vigor, praticamente desaparece. Sobrevive em obras de exceção, dentre as quais Quinteto da morte (The ladykillers, 1955), de Alexander Mackendrick; Almas em leilão (Room at the top, 1958), de Jack Clayton; e O pranto de um ídolo (This sporting life, 1963), de Lindsay Anderson.


Frank Machin (Richard Harris) em O pranto de um ídolo (This sporting life, 1963), de Lindsay Anderson


A partir daí, com a falha de tecer rápidas considerações — praticamente nenhuma — às contribuições do Free cinema nos libertários anos 60, Tipicamente britânico aborda a contemporaneidade de Frears. O diretor e apresentador dialoga com Michael Apted e Alan Parker, companheiros de geração. Apted destaca a importância da TV para a continuidade da atividade cinematográfica nos anos 60, veículo no qual se iniciou com os pouco conhecidos Coronation Street (1963) e Seve-up (1964). Também recapitula o papel determinante das produtoras Granada Films, Woodfall Films, BBC e Channel Four, bem como as séries de TV World in action e Z Cars. Alan Parker, egresso da publicidade — estreou no cinema com Bugsy Malone  quando as metralhadoras cospem (Bugsy Malone, 1976) — presta tributo ao David Lean da grandiosidade de Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962), que tanto o influenciou; exalta a força das imagens de Ken Loach em filmes considerados impactantes: Cathy come home (1966) e Kes (1969); celebra a ímpar originalidade de Nicolas Roeg em Performance (1970), codirigido por Donald Cammell, A longa caminhada (Walkabout, 1971) e Inverno de sangue em Veneza (Don’t look now, 1973); e também abre espaço ao exagero anárquico de Ken Russel em Delírios de amor (The music lovers, 1970).


Acima, Michael Powell e poster de seu Neste mundo e no outro (A matter of life and death), codirigido por Emeric Pressburger; abaixo,  Nicolas Roeg e poster de seu A longa caminhada (Walkabout)


O final dos anos 70 assiste as tentativas de David Puttnam para dar continuidade, via produtora Goldcrest, ao sonho de grande cinema que animou Alexander Korda e Michael Balcon. Os sucessos dos primeiros anos — abertos ao mercado externo e em franca competição com Hollywood — geram ilusões: Carruagens de fogo (Charriots of fire, 1981), de Hugh Hudson, ganha o Oscar de Melhor Filme; e Gandhi (Gandhi, 1982), de Richard Attenborough, repete a façanha. A Goldcrest também produz obras de cor local como o elogiado Momento inesquecível (Local hero, 1983), de Bill Forsyth, mas passa a maior parte do tempo buscando prêmios e o prestígio da grande indústria: Os gritos do silêncio (The killing fields, 1984), de Roland Joffé, concorre a oscars; e A missão (The mission, 1986), também de Joffé, ganha a Palma de Ouro de Melhor Filme em Cannes. Mas o fracasso de Revolução (Revolution, 1985), de Hugh Hudson, era premonitório. A derrocada da Goldcrest não tardaria.


O fim da Goldcrest ocorre paralelo ao aparecimento de Minha adorável lavanderia (My beautiful laundrette, 1985), de Stephen Frears, novo sopro de vida ao cinema inglês, conforme afirmação de Michael Apted. Desfilam as últimas imagens de Tipicamente britânico: Nu (Naked, 1993), de Mike Leigh; Os Commitments  Loucos pela fama (The commitments, 1991), de Alan Parker; Blade Runner, o caçador de androides (Blade runner, 1982), do mais americano que inglês Ridley Scott; Em nome do pai (In the name of the father, 1993), de Jim Sheridan; Quatro casamentos e um funeral (Four weddings and a funeral, 1994), de Mike Newell. Enquanto cineastas como Mike Leigh e Ken Loach se recusam a deixar a ilha, Frears afirma seu caráter híbrido e saúda uma abertura democrática ao cinema britânico, com a conciliação de filmes que atendam a todos os gostos e tendências. Sobre as imagens de uma plateia cinematográfica em Vozes distantes (Distant voices/Still lives, 1988), de Terence Davies, atesta: “...“Aprendi! As pessoas, quando vão ao cinema, gostam de ver filmes americanos. Continuarei fazendo filmes ingleses. Num dia feliz e com um bocado de sorte poderemos conciliar essas contradições”.


Infelizmente o documentário termina deixando no espectador atento o travo amargo da ausência de referências a Alberto Cavalcanti — o brasileiro internacionalmente reconhecido por suas contribuições ao cinema —, principalmente durante o ininterrupto período de aproximadamente quinze anos, encerrado em 1949, todo dedicado à glória da Grã Bretanha na sétima arte.





Roteiro: Charles Barr, Stephen Frears. Direção de fotografia (cores, preto e branco): Alistair Cameron, Bill Megalos, Chris Sugden-Smith, Mark Trottenberg. Produção executiva: Bob Last, Colin MacCabe. Gerente de produção de séries do BFI: Esther Johnson. Consultor de séries do BFI: Tony Rayns. Operadores de câmera: Alistair Cameron, Bill Megalos, Chris Sudgen Smith, Mark Trottenberg, Ken Morse. Som: Neil Brown, Jeff Edrich, Trevor Hotz, Chris Atkinson. Edição on-line: Bill Ogden. Mixagem da combinação de sons: Bob Jackson. Consultoria: Michael Eaton. Pesquisa: Mary Scott Albert. Gerente de produção: Paula Jalfon. Montagem: Nigel Barker. Primeiro assistente de câmera: John "Yannis" Samaras. Dedicado a: Alexander Mackendrick, Derek Jarman, Lindsay Anderson. Agradecimentos a: Mary Lea Bandy, Celeste Bartos, Bob Bress, Peter Flower, Charles Glyn, Simon Golding, Norma Heyman, Jackie Lane, Rachel Lovitt, Malcolm Mitchell. Tempo de exibição: 53 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)



domingo, 13 de dezembro de 2015

O BÁSICO DO EXISTIR EM MEIO AO SAGRADO, À NATUREZA E À CULTURA SEGUNDO SHÔEI IMAMURA

Shôei Imamura — expoente da Nouvelle Vague Japonesa — está entre os mais importantes cineastas de sua terra. Em realizações marcadamente autorais expõe, sem qualquer apelo sentimental ou romântico, os aspectos mais arraigados da cultura nipônica. A condição humana, as dicotomias velho-novo, cultura-natureza, sagrado-profano e o papel da mulher são seus temas preferenciais em filmes organizados de forma minuciosamente detalhada. Possui o olhar do etnógrafo em campo, principalmente ao registrar o cotidiano comunal no trato da sobrevivência em meio às regras, crenças e aos ritos daí emanados. A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983) é das obras mais conhecidas de Imamura. A exposição verista, naturalista e semidocumental faz a crônica da sobrevivência na comunidade rural de Moto-Mura, norte do Japão, ao fim da Era Edo. Orin (Sumiko Sakamoto) é a anciã prestes a completar a idade máxima permitida de 70 anos. Segundo as prescrições de um costume ancestral, prepara-se para a jornada decisiva, ao alto da montanha sagrada onde será deixada para perecer. Ao acompanhar o cotidiano da personagem na interação com a família e a comunidade, o olhar atento de Imamura — aberto a questões tanto específicas quanto gerais — lança interrogações básicas: o que é o homem em meio às normas? Até que ponto é um ser que perdeu contato com a natureza? Qual é o sentido do existir? A apreciação a seguir é de 1985. Passou por revisão e ampliação em 1996.






A balada de Narayama
Narayama bushikô

Direção:
Shôhei Imamura
Produção:
Gorô Kusakabe, Jirô Tomoda
Sato Co. Ltd., Tohei Co. Ltd., Imamura Productions, Shochiku
Japão — 1983
Elenco:
Ken Ogata, Sumiko Sukamoto, Tekejo Aki, Tompei Hidari, Seichi Kurasaki, Nijiko Kiyokawa, Mitsuko Baishô, Norihei Miki, Ryutaro Tatsumi, Kaoru Shimamori, Junko Takada, Nijiko Kiyokawa, Shôichi Ozawa, Mitsuaki Fukamizu, Norihei Miki, Akio Yokoyama, Sachie Shimura, Masami Okamoto, Fujio Tsuneda, Taiji Tonoyama, Kêshî Takamine, Fujio Tokita, Tsutomu Miura, Nenji Kobayashi, Kansai Eto, Hideo Hasegawa, Fusako Iwasaki, Kenji Murase, Sayaka Nakamura, Kosei Sato, Yukie Shimura, Azumi Tanba, Sanshô Shinsui, Ben Hiura, Satoko Iwasaki.



O diretor Shôei Imamura


A balada de Narayama é a décima sexta experiência de Shôhei Imamura na direção. Também é, salvo engano, seu primeiro trabalho a merecer ampla exibição comercial no Brasil. Para isso contribuíram as muitas premiações angariadas em mostras e festivais.


Trata-se de refilmagem de A balada de Narayama (Narayama bushiko, 1958), realizado por Keisuke Kinoshita em encenação estilizada segundo os cânones do teatro kabuki. A versão de Imamura, por sua vez, busca o registro naturalista e verista. Aos olhos do espectador das afluentes sociedades ocidentais, vale-se de visão desencantada e cruel para narrar o cotidiano da aldeia de Moto-Mura, região montanhosa no norte interior do Japão durante a segunda metade do século 19. Nessa época o país atravessava os últimos anos do feudalismo. A Era Edo, ou Tokugawa, chegava ao fim.


O livro Estudos das canções de Narayama, de Schichiro Fukazawa — base para a adaptação de Kinoshita —, serve de suporte principal ao roteiro de Imamura. Outra obra de Fukazawa também inspirou a realização: Homens do norte, da qual foram extraídos o personagem do fedorento e carente Risuke (Hidari) e observações sobre os hábitos sexuais dos camponeses. Meticuloso e compassado, Imamura despendeu muito tempo na pesquisa de detalhes e no planejamento da produção. Esse cuidado explica porque as filmagens de A balada de Narayama se estenderam ao longo de 16 meses — de dezembro de 1981 a abril de 1983. Fiel ao naturalismo que o tornou conhecido, o diretor procura tirar o melhor proveito do movimento das estações do ano, a fim de enriquecer os aspectos dramáticos e estéticos da encenação.


Poster de A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983)


Praticamente desconhecido no Brasil, Imamura está entre os mais importantes realizadores do cinema japonês. Seus filmes, em geral ambientados na Era Edo, tratam dos aspectos e costumes mais arraigados da cultura japonesa. Os temas preferenciais aludem à dicotomia velho-novo, cultura popular, ao inevitável e à condição humana. A minuciosa organização do relato o aproxima da abordagem etnográfica. Invariavelmente registra homens e mulheres em luta permanente pela sobrevivência num ambiente que se lhes apresenta adverso[1].


Nome de ponta da Nouvelle Vague Japonesa, Imamura ingressou no cinema em 1951, nos Estúdios Shochiku. Foi assistente de Keisuke Kinoshita. Nessa condição serviu aos realizadores Yoshitaro Nomura, Yuzo Kawashima, e, principalmente, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa, dos quais herdou qualidades marcantes: a paciência e o perfeccionismo. Ao buscar novas oportunidades, transferiu-se em 1954 para a produtora Nikkatsu. Aí, como assistente de direção e roteirista, colaborou nas comédias de Yuzo Kawashima. Estreou na direção em 1958. Nesse ano realizou Desejo roubado (Nusumareta yokujo), Estação Nishiginza (Nishiginza eki mae) e Desejo não alcançado (Hateshinaki yokubo).


Em Desejo não alcançado “Já se sente uma crueza de tendência naturalista no tratamento dos personagens e das cenas”[2], marcante em A balada de Narayama e tão destoante dos cânones mais arraigados do cinema japonês. Com Meu irmão Nianchan (Nianchan, 1959), filmado em locações e inspirado no neorrealismo italiano, apresenta outro traço marcante, também encontrado na realização em tela: o registro semidocumental[3].


A adesão ao naturalismo e à abordagem semidocumental levam Lucia Nagib a atestar: “Em quase todos os seus filmes (...) Imamura tenta alcançar a realidade através da ficção. Para ele não há teatro maior que o representado pelos japoneses na vida diária. Assim, seu cinema se destina a trazer à tona a verdade escondida das relações humanas”[4].


Após Meu irmão Nianchan apresenta Todos porcos (Buta to gunkan, 1961), drama policial sobre as relações da Yakuza (máfia japonesa) com forças estadunidenses de ocupação. É produção demolidora. Investe contra o mito da mulher imaculada, conformada às mazelas da existência — tão caro ao cinema japonês, principalmente nas produções da Shochiku e nos filmes de Yasujiro Ozu. Diante de homens embrutecidos, governados por instintos básicos — com trajetórias paralelas à vida animal que lhes serve de contraponto (as imagens de A balada de Narayama fartam-se desse ponto de vista) —, a mulher se apresenta como vítima de circunstâncias geradas pela dominação masculina. Em compensação, é a guardiã dos segredos da natureza e zeladora dos acordos culturais — qual Orin (Sukamoto) no filme de 1983. A respeito, afirma Nagib: “Ao contrário do (...) cinema de seus antecessores, a mulher de Imamura não se resigna a uma posição inferior (...); através de um louvável autossacrifício, (...) vai à luta lançando mão das mesmas armas sujas com as quais se vê atacada”[5].


No cinema de Imamura a mulher encontra amplos espaços de afirmação entre “camponeses, miseráveis, gângsteres e prostitutas. Exemplar nessa abordagem é A mulher inseto ou Tratado entomológico do Japão (Nippon konchuki, 1963), por muitos considerado obra-prima. Aqui, a pobre camponesa Tome Matsuki (Sachiko Hidari) não vacila diante da exigência de sobreviver. Enfrenta a violência sexual, o incesto, o êxodo para a metrópole e o bordel. Ao longo do percurso, retribui atos e gestos com igual intensidade. Segundo o enfoque, trata-se de uma heroína e não a depravada e irremediavelmente perdida, encontrada nos exemplares tradicionais do cinema nipônico. Não para menos, foi impactante o lançamento de A mulher inseto. Idêntica visão há em Segredos de uma esposa (Akai satsui, 1964) — última realização de Imamura para a Nikkatsu: Sadako Takahashi (Masumi Harukawa), dona de casa cotidianamente brutalizada pelo marido infiel e por um estuprador apaixonado, rompe com o lugar comum de sua posição social e enfrenta os agressores em pé de igualdade.


Introdução à antropologia (Jinruigaku nyumon, 1966) —, adaptação do romance Os pornógrafos, de Akiyuki Nozaka — inaugura a fase independente de Imamura. Segundo os entendidos, seu "cinema-verdade" atinge o ápice com A evaporação do homem (Ningen johatsu, 1967). Aqui, percebe-se pela primeira vez o intercâmbio com processos e técnicas narrativas europeias, em particular o distanciamento de Brecht adotado na França pela Nouvelle Vague. Aparentemente, a realização é um documentário que se esclarece como pura ficção. O ponto de partida é a real busca de uma mulher ao noivo desaparecido. Várias entrevistas são feitas, todas verdadeiras. Na última, as paredes do ambiente são desmontadas e o mundo encenado a partir dos estúdios ganha primazia. A partir de A evaporação do homem, Imamura dará vazão, no cinema ou na TV, à vocação documental, às vezes com a pretensão de intervir na ordem das coisas: Kamigami no fukaki yokubô (1968), Mikikan-hei o otte: Marei-hen (1970), Nippon sengoshi - Madamu onboro no Seikatsu (1970), Mikikan-hei o otte: Tai-hen (1971), Buban no kaizoku (1972), Muhomatsu kokyo e kaeru (1973) e Karayuki-san (1975). Encerra-se aí a participação de Imamura na Nouvelle Vague Japonesa. A seguir, a partir de Minha vingança (Fukushû suru wa ware ni ari, 1979), começa a fase de reconhecimento e consagração pelo Ocidente. Seguem-se Eijanaika (1981), A balada de Narayama, Zegen (1987), Chuva negra (Kuroi ame, 1989), A enguia (Unagi, 1997) e Dr. Akagi (Kanzo sensei, 1998).


Poster de A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983)

  
Como um poema rude de estrofes compostas por versos brutos, A balada de Narayma é uma crônica da sobrevivência contada ao longo de aproximadamente um ano. É o tempo de vida que resta a Orin. Está com 69 anos. Fará aos 70, obrigatoriamente — segundo as prescrições de um costume ancestral —, a peregrinação ao alto de Narayama, elevação sagrada que guarnece a comunidade de Moto-Mura com o reforço dos espíritos de todos que lá pereceram em prol da continuidade da vida do lugar. Será conduzida pelo filho mais velho. Ao fim do percurso, será deixada para morrer — um sacrifício ao deus da montanha. Conforme os versos de canção tradicional, Orin terá sorte se nevar quando estiver em seu "altar de sacrifício", rodeada pelos restos mortais dos que fizeram a extrema peregrinação. A neve trará o frio e a abreviação do sofrimento. Provocará transição mais suave que a fome. Aves de rapina — idênticas a lúgubres mensageiras — já habituadas ao farto repasto estão em inabalável prontidão. Desse destino inexorável habitante algum de Moto-Mura está livre. Quem descumprir com o imperativo da tradição, por qualquer motivo, transformará os seus em alvo de chacota e os submeterá a uma série de interditos. Foi o que aconteceu à família de Orin, por causa de seu marido, Rihei. Sem coragem para levar a mãe a Narayama, fugiu, cobrindo de vergonha os filhos e a esposa. Agora, a sempre vigilante comunidade teme que Tatsuhei (Ogata), o primogênito de Orin, falte ao compromisso.


 Orin (Sumiko Sakamoto)

O primogênito de Orin (Sumiko Sakamoto): Tatsuhei (Ken Ogata)


A vida é dura na aldeia. A terra fria e montanhosa não favorece o cultivo de arroz. A fome está sempre presente. As porções são racionadas. Tais fatores determinam as condições de vida e o valor das pessoas. Se os septuagenários são obrigados a abrir lugar aos vivos, recém nascidos e crianças também não têm melhor sorte. Em ocasiões de extrema carência alimentar, bebês masculinos são mortos. Não raro seus corpos são largados nas matas ou nos cultivos. Quanto às meninas, possuem valor de troca. Podem ser permutadas por comida ou condimentos com os muitos comerciantes que interligam as comunidades próximas.


Orin (Sumiko Sakamoto) e um dos comerciantes que interligam as comunidades vizinhas


Atualmente, no Japão industrializado e afluente, a dinâmica vital praticada em Moto-Mura é conhecida como cultura da vergonha. Por envergonhar os japoneses atuais e pelos rígidos códigos convertidos em tabu, a governar a existência de quem os vivenciou. Reportam ao tempo do arroz considerado produto de luxo, quando a fome era uma realidade sempre presente. A apropriação indevida de alimentos — o roubo — era exemplarmente punida. O filme mostra o triste fim da numerosa família Amaya, enterrada viva por toda a comunidade zelosa com a aplicação das normas das quais depende a continuidade de todos. A própria Orin — tão integrada ao grupo e sempre atenta ao respeito às tradições — não deixa de ser tratada de forma até impiedosa pelos demais, inclusive pela própria família. Afinal, é uma anciã, mas ainda tem forças para trabalhar. Como se não bastasse, possui todos os dentes, em perfeito estado. Deveria estar alquebrada, até para facilitar a passagem ao deus da montanha. É como se a saúde perfeita de uma quase septuagenária constituísse ofensa à ordem, sagrada ou natural, das coisas. Por causa desse problema, ela não titubeia em quebrar quatro dentes frontais[6].


À direita, Orin (Sumiko Sakamoto) com uma vizinha da comunidade de Moto-Mura


Os habitantes de Moto-Mura estão submetidos a duas instâncias surdas e implacáveis. Primeiro, ao absolutamente outro, o deus da montanha, legitimador de crenças e responsável pelo sacrifício que todos praticam em sua honra. É a ordem transcendente que obriga e conforma os camponeses a aceitar o mundo tal qual é ou como lhes foi apresentado: uma realidade feita de permanências, imutável, assombrada pela fome e acossada pelo desejo incontrolado do sexo e obstinação pela continuidade. O mundo é um estágio de constante provação/privação e não pode ser de outra maneira. Segundo, em conformidade com o dado transcendental há a ordem natural, representada pela ligação complementar, quase umbilical, dos homens com os animais. Os bichos marcam presença constante, sejam cães, sapos e cobras. São encontrados nas casas e nos campos, como que chamando a atenção dos moradores para uma identidade animal da qual não se separaram. Mas também há as estações do ano e o trabalho, o convívio comunal, os nascimentos e a imperturbável sombra da morte com prazo marcado. Orin, certamente, é a personagem principal desta trama escrita pelo sagrado em parceria com a natureza. Aceita o destino imposto. Faz de tudo para respeitar as imposições e determinações de um roteiro cujas prescrições sabe apenas que deverá cumprir — ela e os demais — sem que possa comprometer qualquer esforço para alterá-lo. No máximo, a personagem vivida por Sumiko Sakamoto procura não ser um fardo aos seus e demais. Cultiva a terra, cuida da casa, separa e prepara os alimentos. Antes de subir a montanha, nas costas do viúvo Tatsuhei — como deve ser feito —, providencia-lhe nova esposa — a atenta e solícita Tamayan (Takejô). Será praticamente uma substituta. Ensina a ela segredos fundamentais à melhor sobrevivência. Também se esforça para sanar a carência sexual do filho mais novo, o jovem e ainda virgem Risuke (Hidari). Devido ao mau cheiro que exala, mulher alguma tem disposição para se deitar com ele. Mesmo assim, faz de tudo para lhe providenciar uma parceira.


Pode-se dizer que o filme é construído como um imenso prólogo que dará sentido ao título e à derradeira jornada de Orin. Imamura apresenta a cultura de Moto-Mura em estreita integração com as ordens sacras e naturais. Uma não existe sem as demais. Há um firme continuum entre a terra — o palco natural que serve de suporte à encenação da vida — e a montanha deificada que a tudo legitima com o compulsório ato da morte. Vive-se para morrer, algo tão certo como os dias sucedem as noites e os ciclos inalteráveis das estações do ano. Mas sem a adesão — tão obrigada como voluntária — ao ato de morrer, o viver não teria sentido aos pés de Narayama — ao menos segundo os contratos sociais que legitimaram e permitiram a existência da comunidade, com todos os seus interditos, ao longo do imutável corredor das estações.


Como se fosse o próprio deus de Narayama em sua imobilidade, a câmera observa a tudo, fixa, impassível, com prudente distanciamento. É uma objetiva marcada pela objetividade do registro. Os movimentos, suaves, são executados apenas no início, num sobrevoo que apresenta a comunidade em sua geografia, tomada pela neve. O comentário musical, repetitivo, firma parceria com a fixidez do registro.


A impassividade e o distanciamento da câmera chegam ao máximo na meia hora final. Tatsuhei conduz Orin à montanha. Antes, uma reunião de mãe e filho com os anciãos da comunidade informa como proceder na subida. Frisa principalmente sobre o silêncio reverencial a ser observado por todo o caminho. Nada deve complicar esse processo de dor e sacrifício. A ressalva lembra que em momento algum Imamura apelou para saídas sentimentais. Os ocidentais, principalmente os estadunidenses, inundariam as imagens com músicas de acordes contundentes. O comentário musical praticamente desaparece de A balada de Narayama nos últimos 30 minutos. Amanhece. Tatsuhei e Orin estão sozinhos. Ninguém deve testemunhar a partida. É um ato que diz respeito apenas à mãe e ao primogênito, guardados pelo silente deus da montanha. Os demais membros estão respeitosamente afastados. Mas sabem que também terão sua hora e vez.



Acima e abaixo: Tatsuhei (Ken Ogata) e Orin (Sumiko Sakamoto) na decisiva jornada ao alto de Narayama

  
Orin demonstra tenacidade. Está conciliada ao inevitável. Tatsuhei vacila algumas vezes, mas é vencido pela persistência da mãe. Para ela, é um caminho sem volta. Paga o preço para Moto-Mura continuar a existir. Por mais difícil que tudo pareça a Tatsuhei, a conformação silenciosa da mãe facilita as coisas na escalada lenta, penosa e detalhada. Nem sempre o caminho ajuda. Demasiado diferente será a subida do velho Matayan (Ryutaro Tatsumi). Teve que ser amarrado e conduzido à força. Sequer foi deixado na estação final. Como relutava em obedecer às prescrições, forçou o filho ao expediente tolerável de empurrá-lo despenhadeiro abaixo.


Apesar da objetividade da exposição, não deixa de ser desesperadora a entrada no largo espaço funerário, tomado de esqueletos, corpos em decomposição e corvos vigilantes. Tatsuhei estanca, mas Orin, inabalável e irredutível, indica onde deve ser deixada. Dali o outro deve voltar, sem olhar para trás. Conforme o canto da tradição, a fria e benfazeja neve vem socorrer Orin e apaziguar o filho. Aos primeiros flocos Tatsuhei viola as prescrições e volta ao local do abandono. Entre generoso e aliviado comunica o óbvio à mãe, já tingida de branco: "Veja, mãe, que sorte! Está nevando!". Entregue às orações, ela apenas acena mais uma despedida. É um dos momentos mais dolorosos e contundentes de todo o cinema.


Tatsuhei (Ken Ogata) para Orin (Sumiko Sakamoto): "Veja, mãe! Que sorte! Está nevando!"
  

A balada de Narayma está longe de ser apenas um tratado antropológico. É certo que é um registro particularizado de determinado setor da diversidade cultural. Mas, por outro lado, também pode ser apreciado como descrição mais geral da condição humana. Numa situação onde o viver está reduzido ao básico — o desejo carnal e à luta sem tréguas pela sobrevivência —, Imamura afasta do foco qualquer traço romântico na redução que transforma Moto-Mura em abstração simplificada do existir. O filme parece responder à pergunta fundamental: o que é o homem, basicamente? É um criador de regras —, adianta o cineasta. Mas também é um ser que não perdeu contato com suas origens naturais/animais. A necessidade imperiosa de sobreviver, individual e social, está no centro da questão. Com A balada de Narayama Imamura oferece ao mundo moderno, industrializado e tão dependente de tecnologias poupadoras de esforço, o mapa que conduz às raízes perdidas de tudo isso. Também afirma que muita coisa não mudou. Atualmente, os velhos não são deixados ao relento, no alto de montanhas — ou nas vastidões geladas como em outras realidades culturais. Mas não deixam de ser um fardo para as sociedades e seus familiares. São internados em asilos, clínicas e hospitais, locais não raro de abandono e esquecimento. Sejam nas sociedades afluentes ou nos países miseráveis e em desenvolvimento, o destino das crianças também não foi essencialmente alterado. Podem ser abortadas, assassinadas, abandonadas nas portas alheias, em caixas de papelão ou largadas em lixões. Nem todas contam com a caridade alheia ou pública para serem poupadas, o que também pode não significar muita coisa.


Orin (Sumiko Sakamoto)
  

A direção de fotografia a cargo de Masao Tochizawa Himeda, apoiado por Hiroshi Kanazawa e Shigeru Komatsubara, é nitidamente esplêndida. Não é a embalagem que se resume a uma sucessão de vistas deslumbrantes da natureza. A balada de Narayama não se perde com fogos de artifício. As imagens não se prestam à fuga na contemplação. Todos os planos são funcionais à história. O esplendor das tomadas somente realça e esclarece os movimentos dos atores no meio que os envolve. Preenche de sentido uma abordagem que apreende a vida em sua totalidade, como realidade construída no cruzamento da natureza com a cultura, legitimada pela transcendência do sagrado, esfera repleta, por sua vez, de contribuições naturais e culturais.


Em 1984 A balada de Narayama foi considerado o Melhor Filme pela Academia Japonesa. A instituição também indicou Sumiko Sakamoto (Melhor Atriz), Mitsuko Baixhô (Melhor Atriz Coadjuvante), Shôhei Imamura (Melhor Direção e Melhor Roteiro), Masao Tochizawa Himeda (Melhor Direção de Fotografia), Yasuo Iwaki (Melhor Iluminação), Tadataka Yoshino (Melhor Direção de Arte), Shin'Ichirô Ikebe (Melhor Música) e premiou Ken Ogata (Melhor Ator) e Kenichi Benitani (Melhor Som).


Ken Ogata foi considerado, em 1984, Melhor Ator pelo Blue Ribbon Awards e Mainichi Film Concours. Este também premiou Kenich Benitani pela trilha musical. No Festival de Cannes de 1983 Shôhei Imamura recebeu as Palmas de Ouro de Melhor Direção e Melhor Filme. Nesse ano a fotografia de Masao Tochizawa Himeda foi premiada no Festival Internacional do Filme do Havaí e Mitsuko Baisho foi eleita a Melhor Atriz Coadjuvante pelo Hoichi Film Awards.


Orin (Sumiko Sakamoto)


Roteiro: Shôhei Imamura, com base em Estudos a respeito das canções de Narayama e Homens do norte, histórias de Shichirô Fukazawa. Música: Shin'Ichirô Ikebe. Direção de fotografia (Vista size/cores): Masao Tochizawa Himeda, com apoio de Hiroshi Kanazawa, Shigeru Komatsubara. Montagem: Hajime Okayasu, Toshihiko Kojima, Fusako Matsumoto, Yoshiko Onodera, Masahito Watanabe. Desenho de produção: Nobutaka Yoshino, Gorô Kusakabe. Direção de arte: Tadataka Yoshino, Hisao Inagaki. Decoração: Hisao Inagaki, Senki Nakamura, Mitsuto Washizawa. Figurinos: Kyoto Isho. Maquiagem: Seiko Igawa. Gerente de produção: Kanji Aoi. Assistente de direção: Kunio Takeshige. Som: Kenichi Benitani. Técnico de iluminação: Yasuo Iwaki. Controle da produção: Shinji Komiya. Perucas: Zenichirô Ishikawa. Penteados: Takeshi Matsuo, Yôichi Mitsuoka, Tomoe Ookawa. Gerentes de produção: Kimiyoshi Adachi, Kanji Aoi, Sôji Fukushima, Nobutsugu Tsubomi. Assistentes da gerência de produção: Hisashi Iino, Shinji Komiya, Ikuko Murase. Assistentes de direção: Shunsaku Ikehata, Nobuaki Murooka, Kunio Takeshige, Takashi Tsukinoki. Modelagem: Noriyuki Sugimori. Assistentes de som: Toshio Nakano, Tatsuo Tsukamoto. Efeitos especiais: Yoshio Kojima. Fotografia de cena: Kenji Ishikuro. Eletricistas-chefes: Yasuo Iwaki, Tadahiro Kimura, Yûjirô Miura, Masayuki Okao. Técnico de iluminação: Yasuo Iwaki. Corte do negativo: Kazuko Okayasu. Dentistas: Yasuhiko Chiga, Hiroshi Tanaka, Teruyuki Tanaka. Planejamento de jardins: Yoshiyaka Hayakawa. Supervisão de culinária: Naomi Honjô, Yoshiko Morita. Publicidade: Katsuyuki Katô, Toshiyuki Mogi, Tsuneyoshi Yamada, Yasuo Yamamoto. Controladoria da produção: Shinji Komiya. Pecuarista: Tsuguo Kuroda. Continuidade: Midori Kuwabara. Fornecimento de alimentação: Ryôhei Nakagawa. Planejamento de créditos: Hideo Suzuki. Amestrador da águia: Uichiro Takeda. Companhia da pós produção: Denki Kagaku kôgyô. Fornecimento de perucas: Maruzen Katsura, Okamoto Gisho. Serviços de pós produção de som: Nikkatsu Studio. Fornecimento de equipamentos de câmera: Sanwa Cine Equipment. Tempo de exibição: 131 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985; revisto e ampliado em 1996)



[1] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. 2. ed. Porto Alegra: L&PM, 1988. p. 263; e, EWALD FILHO, Rubens. Um belo filme, apesar das restrições. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 ago. 1984. p. 15.
[2] NAGIB, Lúcia. Em torno da Nouvelle Vague Japonesa. Campinas: Unicamp, 1993. p. ?.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] NAGIB, Lúcia. Op. cit.
[6] A atriz Sumiko Sukamoto estava com aproximados 40 anos quando interpretou Orin. Extraiu de fato, cirurgicamente, quatro dentes frontais para imprimir ares de veracidade ao seu personagem.