domingo, 7 de outubro de 2018

SEXO, EROTISMO, CIÊNCIA DE ALMANAQUE E MUITO MORALISMO NO CANADENSE “L’INITIATION”

Por causa das particularidades da praça cinematográfica de Viçosa/MG e dos círculos cultivados por meu pai, enfrentei poucas dificuldades, na adolescência, para vencer os limites da censura diante de filmes vedados a menores. No caso de interdição até os 18 anos, tinha entrada franqueada se os títulos não exibissem “conteúdo picante” — segundo a subjetividade de porteiros, operadores e gerentes —, nudez e sexo. Assim, por tais critérios, somente em 1974 — já alistado para o serviço militar e apto a votar — fui apresentado ao erotismo cinematográfico. Com os hormônios à flor da pele, foi uma festa. O canadense A primeira noite de uma mulher (L’initiation, 1969), de Denis Héroux, abriu a temporada. Segundo os valores e conveniências da época, trazia generosa exposição de belos corpos femininos ao natural e muita lascívia. Diante da ação do tempo e de mudanças no campo dos costumes, tais encenações tidas como ousadas ou escandalosas se tornaram pudicas e evangelicamente recatadas. Entretanto, lá estava a então lendária atriz franco-canadense Danielle Ouimet incendiando os olhos e o imaginário da curiosa juventude carente há pouco emancipada. Apesar de tanta carnalidade e explosão de sensualidade, algo chamava a atenção. Era época de atenta vigilância da Divisão de Censura de Diversões Públicas da Polícia Federal. O instituto mutilava ou proibia integralmente produtos os mais ousados no âmbito das artes e do entretenimento de massas. Como A primeira noite de uma mulher passou praticamente incólume pela avaliação dos censores? Provavelmente, por ser obra das mais conservadoras e moralistas — apesar de revestida pela ousada e vistosa embalagem erótica de então. A apreciação a seguir é de 1974.






A primeira noite de uma mulher

L'initiation

Direção:
Denis Héroux
Produção:
John Dunning, André Link
Cinépix
Canadá — 1970
Elenco:
Chantal Renaud, Danielle Ouimet, Jacques Riberolles, Gilles Chartrand, Serge Laprade, Céline Lomez, Louise Turcot, France Dionne, Daniel Gadouas, Michel Girouard, Jean-Pierre Payette, Béatrice Picard, Janine Sutto, Jacques Zouvi, Pierre Labelle. 



Denis Héroux dirige Samantha Eggar no episódico Trama sinistra (The uncanny, 1977)



Final dos anos 60: no rastro da liberação de costumes propiciada pela “revolução sexual”, o Canadá — via polo de produção de Quebec — experimentou dinâmica e ambiciosa efervescência cinematográfica. Uma das pontas de lança do movimento, o diretor Denis Héroux, realizou em 1969 os aparentemente ousados Valérie e A primeira noite de uma mulher (L’initiation). Repletos de erotismo e generosas exibições de corpos femininos ao natural, tais títulos angariaram relativo sucesso na praça de origem e mereceram exibição nos mercados da Europa ocidental e Estados Unidos. O filão erótico não demorou a se esvair. Porém, projetou a desinibida atriz franco-canadense Danielle Ouimet e confirmou o vigor da cinematografia canadense — logo aberta a outras possibilidades.


Nadine (Danielle Ouimet)

Louise Turcot no papel de Judith


Em Valérie, Ouimet interpreta a personagem-título. Segundo as depreciativas avaliações moralistas tão em voga — inclusive nos países mais arejados no campo dos costumes —, é a libertina mulher emancipada pela “revolução sexual”. Estudante católica, narcisista e exibicionista, vive em Montreal e experimenta de tudo em relacionamentos. Protagoniza inúmeras aventuras com múltiplos parceiros, apresenta-se em clubes de strip-tease e segue carreira como garota de programa. Um dia encontra o amor verdadeiro, o tal homem dos sonhos. Chegou o momento de se estabilizar emocionalmente, acredita! Ledo engano! A vida plena e feliz é frustrada pelos ecos das opções passadas. Valérie é punida pela consciência e pelos rescaldos do “irrecuperável” vício no sexo sem barreiras. Dificilmente haveria mensagem mais reacionária e tão carregada de moralismo barato.


Danielle Ouimet retorna em A primeira noite de uma mulher. O título padece de idêntico mal. Agora é coadjuvante. Interpreta Nadine, amiga da quase universitária Victoire — protagonista vivida com correção pela também cantora Chantal Renaud. Tal qual em Valérie, Montreal é o cenário da história. Pobre Victoire! Deseja ardentemente uma vida sexual sadia e estável. Porém, é constantemente tentada pelo comportamento desregrado de Nadine e demais companheiras partidárias do prazer sem barreiras à medida que surgem as oportunidades. A realização mira o despertar da garota para o sexo saudável, sem a instrumentalização do prazer e dos relacionamentos. Parece ótimo! Entretanto, o vil puritanismo continua à espreita — mais indiscreto que nunca.



Acima e abaixo: Danielle Ouimet no papel de Nadine

A protagonista Victoire, interpretada por Chantal Renaud


Enquanto Nadine carrega nas tintas em viscerais aventuras sexuais com exposições fartas de nudez, a sardenta e delicada Victoire é mais centrada e racional na busca pela felicidade. Está insatisfeita com os envolvimentos casuais completados por parceiros poucos interessados em algo sólido e duradouro. Tudo muda após conhecer o livro erótico-científico L’initiation, do francês Gervais Messiambre (Riberolles). Para melhorar, o próprio autor vem ao Canadá para apresentar suas pesquisas na universidade de Montreal. A interessada Victoire aproveita o ensejo para conhecê-lo pessoalmente e encontrar as benfazejas respostas para muitas dúvidas e questionamentos. Segundo os manuais da previsibilidade, tudo se completa com lições práticas ministradas pelo solícito Gervais. Ele logo volta à França. No entanto, cumpriu a missão. Para trás deixou Victoire, mais segura acerca das matérias relacionadas ao sexo, amor, prazer e desejo. Poucas vezes alguém amadureceu tão rapidamente nos planos físicos e intelectuais. Bastou somente uma noite, integralmente dedicada ao conhecimento empírico das interações satisfatórias de mente-corpo em prol da plenitude da existência diária. Aliás, a relação entre Chantal Renaud e Jacques Riberolles ultrapassou os limites profissionais. Segundo o folheto publicitário da distribuidora, engrenaram um caso durante as filmagens. Voaram juntos para a França — terra de origem do ator — ao término do trabalho.


Victoire (Chantal Renaud) e a mãe de Nadine (Janine Sutto)


Cinematograficamente, a produção é bem embalada. Os valores visuais são plenamente aceitáveis; as atrizes, belas e desinibidas. Infelizmente, por trás de tanta ousadia no tratamento supostamente livre e descontraído da sexualidade, há uma terrível mistura de pretensão e vazio. A primeira noite de uma mulher — título nacional dos mais apelativos e oportunistas[1] — é colagem de imagens ousadas logo banalizadas. Faz referências a uma ciência de almanaque. O epílogo não deixa dúvidas: após aprender o melhor do sexo e do amor na companhia de Gervais, Victoire tem apenas uma saída para os próximos capítulos da vida de mulher feliz e realizada: abandona as amigas libertinas, cada vez mais compenetradas em noitadas orgiásticas, e busca abrigo na Associação Cristã de Moças. Meu Deus! Puxa vida! Homessa!


Nadine (Danielle Ouimet)  com a mãe (Janine Sutto)

Victoire (Chantal Renaud)


Apesar de ter a profundidade de um pires, A primeira noite de uma mulher apresenta performances sinceras e envolventes. A arrojada Danielle Ouimet pode ser classificada como força da natureza pela carga erótica de Nadine. Chantal Renaud exala ternura e demonstra possuir talento para voos mais altos. Infelizmente, o empenho das atrizes não basta. Falta ao filme um essencial estágio de amadurecimento ou desenvolvimento das personagens. São apresentadas como seres sem história ou recheio. No entanto, roteirista e diretor não merecem reparos acerca desse pormenor. Afinal, o nada exigente público-alvo de produções assim pouco interesse tem na coerente progressão das personalidades. O desenho de produção, os figurinos e a música são afinados com a moda e as tendências culturais do final da década de 60.





Roteiro: Yves Thériault. Direção de fotografia (Eastmancolor): René Verzier. Música: François Cousineau. Tempo de exibição: 94 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)



[1] O título brasileiro tem a clara e desonesta intenção de se aproveitar do sucesso de A primeira noite de um homem (The gratuate, 1967), de Mike Nichols.