domingo, 3 de abril de 2016

UM WESTERN AMBICIOSO QUE FICA NO MEIO DO CAMINHO

Hoje, infelizmente, o diretor John Farrow está relegado aos status de marido de Maureen O’Sullivan e pai de Mia Farrow. Faleceu precocemente em 1963, aos 58 anos. Artesão competente, fez filmes os mais diversos, inclusive cinco westerns: Califórnia (California, 1947), O vale da ambição (Copper canyon, 1950), O último caudilho (Red mountain, 1951), de William Dieterle — para o qual trabalhou como diretor não creditado —, A bela e o renegado (Ride, vaquero!, 1953) e Caminhos ásperos (Hondo, 1953) — o melhor. Esta apreciação, escrita em 1977, trata de Califórnia. É ambicioso épico valorizado por acurado aparato de produção: cenografia, reconstituição de época, música, fotografia e figurinos. Lamentavelmente, falhou na pretensão de abordar tudo em escassos 97 minutos: as caravanas das ilusões pioneiras, corrida do ouro e pendengas amorosas até chegar aos bastidores políticos da luta pela elevação do território à condição de trigésimo primeiro estado da União. Na falta de um seguro foco narrativo, ganham evidência o trabalho de câmera e as interpretações de Ray Milland, Barbara Stanwyck, Barry Fitzgerald e George Coulouris como o paranoico e delirante vilão com nome para lá de esquisito: Pharaoh Coffin. Anthony Quinn, ainda mero coadjuvante, mostra talento como dançarino.






Califórnia
California

Direção:
John Farrow
Produção:
Seton I. Miller, John Farrow
Paramount Pictures
EUA — 1947
Elenco:
Barbara Stanwyck, Ray Milland, Anthony Quinn, Barry Fitzgerald, George Coulouris, Albert Dekker, Frank Faylen, Gavin Muir, James Burke, Edward Ciannelli, Roman Bohnen, Argentina Brunetti, Howard Freeman, Julia Faye e os não creditados Crane Whitley, Joey Ray, Tommy Tucker, Frances Morris, Minerva Urecal, Virginia Farmer, Dock McGill, Sam Flint, Stanley Andrews, Don Beddoe, Harry Hayden, Ian Wolfe, Billy Andrews, Gary Armstrong, George Barton, Jack Baxley, Hank Bell, Al Bridge, Lane Chandler, Tom Chatterton, Russ Clark, Jeff Corey, Lester Dorr, Phil Dunham, Ralph Dunn, Eddie Ehrhart, Diane Ervin, Tom Fadden, Frank Ferguson, Francis Ford, Bud Geary, Joe Gilbert, Jesse Graves, Frank Hagney, William Hall, Gertrude Hoffman, Si Jenks, Ethan Laidlaw, Rex Lease, George Magrill, Louis Mason, George McDonald, George Melford, Tony Paton, Lee Phelps, Pepito Pérez, Fredric Santly, Kathryn Sheldon, LeRoy Taylor, Phil Tead, Janet Thomas, Philip Van Zandt, Dick Wessel, Joe Whitehead, Will Wright, Al Ferguson, Albert Cavens, Albert Ray, Ann Kunde, Betty Farrington, Bill Hunter, Blackie Whiteford, Bob Burns, Bob Kortman, Bobby Warde, Cap Somers, Charles Soldani, Chet Brandenburg, Chick Hannan, Clancy Cooper, Colin Kenny, Darby Jones, Dave Kashner, Ed Randolph, Ethan Laidlaw, Frank Mills, George Anderson, George Bruggeman, George Lloyd, George Sowards, Guy Wilkerson, Harry Cording, Henry Wills, Jack Perrin, Jack Rube Clifford, James Davies, Jasper Palmer, Jimmie Dundee, John George, John Sheehan, Joseph E. Bernard, Kernan Cripps, Len Hendry, LeRoy Edwards, Martin Garralaga, Mitchell Rhein, Pedro Regas, Perc Launders, Richard M. Norman, Stanley Blystone, Wesley Hopper, William Meader.



O diretor John Farrow com os atores Diana Dors e Rod Steiger durante intervalo das filmagens de A vergonha de ser profana (The unholy wife, 1957)



Muito injustamente, o diretor John Farrow é mais conhecido — ao menos nos dias que correm — como marido da Jane do Tarzan: a atriz Maureen O’Sullivan. Do casamento nasceu a não menos famosa Mia Farrow, intérprete de Rosemary Woodhouse — mãe do filho do capeta em O bebê de Rosemary (Rosemary’s baby, 1968), de Roman Polanski — e moçoila que horrorizou a moral puritana ao contrair matrimônio, com apenas 21 anos, em 1966, com o cinquentão Frank Sinatra. Apesar do rápido esquecimento que lhe envolveu o nome, John Farrow trouxe à luz títulos no mínimo interessantes. Alguns marcaram época: Nossos mortos serão vingados (Wake island, 1942), A quadrilha de Hitler (The Hitler gang, 1944), O relógio verde (The big clock, 1948), A noite tem mil olhos (Night has a thousand eyes, 1948), O enviado de Satanás (Alias Nick Beal, 1949), O vale da ambição (Copper canyon, 1950), Caminhos ásperos (Hondo, 1953) e Ainda não comecei a lutar (John Paul Jones, 1959).


Califórnia — seu primeiro western — é o vigésimo quinto dos 49 trabalhos que assinou ao longo de uma carreira de três décadas, encerrada precocemente em 1963, aos 58 anos, por ataque cardíaco. No gênero também é responsável por O vale da ambição, A bela e o renegado (Ride, vaquero!, 1953) e Caminhos ásperos. Pode-se acrescentar a esses títulos O último caudilho (Red mountain, 1951), para o qual trabalhou como diretor não creditado: rodou algumas sequências em substituição ao impossibilitado titular William Dieterle, intimado, na ocasião, a comparecer perante o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas (House Un-American Activities Committee – HUAC) do Senado estadunidense.


Lily Bishop (Barbara Stanwyck) e Jonathan Trumbo (Ray Milland)

Jonathan Trumbo (Ray Milland), Lily Bishop (Barbara Stanwyck) e Booth Pennock (Gavin Muir)


Belamente embalado, Califórnia é ambicioso em suas pretensões épicas. Infelizmente, tem desenvolvimento rasteiro. Faltam-lhe densidade e foco. Todo o aparato de produção da Paramount entrou em campo para trazer à luz um filme B com requintes de realização de primeira grandeza. Os 97 minutos de exibição são insuficientes para abarcar completa e satisfatoriamente a complexa e diversificada trama contida no roteiro de Frank Butler, Theodore Strauss e do não creditado Seton I. Miller, extraído da história homônima de Boris Ingster. Uma profusão de acontecimentos tem como partida o poder de atração exercido pelo então território da Califórnia entre os pioneiros alimentados por ideais puritanos e revestidos pelas narrativas bíblicas sobre a terra da promissão. O filme começa maravilhosamente bem: portentosa caravana de gente simples — em geral famílias —, conduzida pelo guia Jonathan Trumbo (Milland) — homem de poucas palavras e passado obscuro — luta para chegar em segurança às “terras livres” de Sacramento. Evidencia-se de imediato o rigor da recriação de época. Cenários, figurinos, equipamentos e utensílios estão afinados com o final da década de 40 do século 19. As canções e ditos populares que legitimam e animam o espírito pioneiro correspondem, apesar dos excessos — como faz falta um bom poder de síntese! —, ao tempo histórico focalizado e conferem rara fidelidade ao empreendimento cinematográfico. Impulsionados pela determinação mosaica do Exodus, homens e mulheres, apoiados na fé e na firme convicção dos seus ideais, buscam a felicidade prometida pelo direito à propriedade na “terra sem males”. Mas os bons propósitos vão por água abaixo quando a notícia da descoberta de ouro no território alcança a caravana. Cessa o espírito colonizador que antevia atividades prósperas, seguras e permanentes como arar, semear, cultivar e colher. Agora, impera o desejo do enriquecimento fácil e imediato a qualquer preço. O espírito colonizador é sobrepujado pelo impulso aventureiro estimulado pela cobiça. A caravana se desfaz na confusão armada por todos em obediência ao lema de cada qual por si na busca ao quinhão dourado. Incapaz de conter a desorganização, Trumbo é gravemente ferido pelo desafeto Booth Pennock (Muir) e deixado para trás na companhia do sereno, sábio e realista Michael Fabian (Fitzgerald), irlandês com pretensões ao cultivo de vinhas.


A partir daí Califórnia se converte num carrossel de ritmo desigual. Passa da caravana das ilusões pioneiras à ensandecida corrida do ouro. Logo chega às disputas políticas entre poderosos interesses privados — que tentam manter a região como território aberto à livre exploração de negociantes e especuladores de todos os tipos — e “homens de bem”, candidatos a cidadãos, em campanha para transformá-la no trigésimo primeiro membro da União, regulada por leis e princípios garantidores de direitos. No meio deste imbróglio se elevam as más intenções do traficante de escravos africanos Capitão Pharaoh Coffin (Colouris), delirante paranóico assombrado pelos fantasmas dos negros mortos em seus navios. Almeja transformar a Califórnia em império pessoal, um grande empreendimento privado. Também sobra espaço à faiscante pendenga amorosa entre a nada fácil e vingativa Lily Bishop (Stanwyck) — sempre em busca de reparações às humilhações sofridas — e o ríspido e direto Jonathan Trumbo.


Lily Bishop (Barbara Stanwyck) é lançada ao chão pela Liga da Decência de Pawnee Flats


É antológica a entrada em cena da personagem interpretada por Stanwyck. Trajada em vistosa e moralmente acusadora cor vermelha, é expulsa de Pawnee Flats, Missouri, pela ciosa liga feminina da decência. Basicamente é uma reedição da proscrição sofrida por Dallas (Claire Trevor) em No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), de John Ford. Sem alternativas, Lily é acolhida na caravana graças à generosidade de Michael Fabian. Torna-se, de imediato, alvo dos desejos inconfessáveis de Trumbo, ainda que estejam sempre às turras. O tenso interregno amoroso chega ao auge algum tempo depois, em Sacramento: no jogo de cartas, o guia leva a melhor e toma da impulsiva mocinha, enriquecida pelo fluxo de ouro fácil, a posse do promissor saloon Lírio de Ouro. Porém, o negócio logo será apropriado de modo vil pelo açambarcador Pharaoh Coffin, sedento na sanha de monopolizar tudo o que encontra, do ouro à água de beber.


Jonathan Trumbo (Ray Milland), Lily Bishop (Barbara Stanwyck)  e Pharaoh Coffin (George Coulouris)


Diante de tão desmedida ambição, Trumbo organiza a oposição política republicana. Apoiado pela população espoliada, cutuca com vara curta o poder dos monopólios privados. Lança o aliado Michael Fabian como delegado à convenção territorial em Monterey, com o objetivo direto e claro de elevar a Califórnia à condição de membro da União. Ao mesmo tempo, ferido em seu orgulho, almeja atingir o coração de Lily. A voluntariosa garota correu para os braços de Pharaoh quando perdeu o saloon. Infelizmente, a alta temperatura da disputa provoca vítimas. Fabian é covardemente assassinado. A perversidade do ato apressa, da parte de Trumbo, a solução do problema de uma vez por todas. Inclusive com a incorporação da regenerada Lily aos partidários da boa vontade.


Michael Fabian (Barry Fitzgerald) e Jonathan Trumbo (Ray Milland)


Apesar da narrativa frouxa e corrida, Califórnia tem algumas louváveis qualidades. Logo se nota a espetacular direção de fotografia de Ray Rennahan, principalmente ao captar o avanço da caravana e o esplendoroso traje vermelho de Lily Bishop. A qualidade do Technicolor salta aos olhos e, sem exageros, faz o figurino da mocinha brilhar. O poder das imagens de Rennahan teve comprovação em duas realizações que lhe valeram o Oscar: ...E o vento levou (Gone with the wind, 1939)[1], de Victor Fleming; e Sangue e areia (Blood and sand, 1941)[2], de Rouben Mamoulian.


O vibrante comentário musical de Victor Young fica, infelizmente, muito além das potencialidades do épico de envergadura que Califórnia não conseguiu ser. Apesar de muito criticadas, as canções de Earl Robinson (música) e E. Y. Harburg (letra) encantam. Tentam traduzir com fidelidade os motivos que animavam o espírito pioneiro impregnado de religiosidade puritana. Porém, ocupam tempo precioso — às vezes com plena exclusividade — de uma narrativa incapaz de equilibrar adequadamente as consecutivas frentes de dispersão.


Lily Bishop (Barbara Stanwyck) diante do corpo de Michael Fabian (Barry Fitzgerald)



O trabalho de câmera transforma o espaço em componente dinâmico da encenação, principalmente em duas sequências complementares, obtidas na sede da hacienda de Pharaoh Coffin. Na primeira, Jonathan Trumbo é apresentado ao traficante de escravos. O diálogo tenso se faz com os personagens circulando pelo ambiente. Do fundo do recinto, dirigem-se para a saída. A objetiva, dinâmica, acompanha de perto a ação. Ao mesmo tempo esquadrinha o cenário, até revelar a então oculta Lily junto ao piano em cômodo contíguo. Trumbo não esperava pela surpresa. A tensão resultante da contradição entre amor e ódio domina o conjunto. Próximo ao final, diante do definitivo ajuste de contas, o delirante Coffin aguarda a chegada de Trumbo, o anjo vingador. O fator surpresa está ao lado do vilão. Mas no momento extremo um disparo mortal, desferido de posição fora do quadro, salva o guia. Novamente Lily é revelada pela câmera em evolução.


As atuações evidenciam outros valores de Califórnia. No auge de suas carreiras, Ray Milland, Barbara Stanwyck e Barry Fitzgerald não decepcionam, ainda que a intérprete de Lily Bishop soe, às vezes, excessivamente enfática e pouco à vontade. Milland, no entanto, apresenta-se como ágil cowboy de primeira linha, conforme o figurino traçado pelo cinema. Fitzgerald faz com convicção o papel do agricultor compassivo, paciente, capaz de interpretar os sinais da terra e o caráter das pessoas.


Ao centro, o brutal Mr. Pike (Albert Dekker)


George Coulouris exagera na paranoia e trejeitos de Pharaoh Coffin. Mas acrescenta cor especial, até deliciosa, à galeria hollywoodiana dos delirantes insanos. Tem por braços direitos os brutos representados pelos bons Albert Dekker como Mr. Pike e Gavin Muir na pele do viscoso e traiçoeiro Booth Pennock.


Don Luis Rivera y Hernandez (Anthony Quinn) e Jonathan Trumbo (Ray Milland)


Anthony Quinn ainda amargava longo período largado em papéis menores, às vezes como mero figurante, numa carreira iniciada em 1936 e que só começaria a ganhar relevância no começo dos anos 50. Em Califórnia faz Don Luis Rivera y Hernandez, gentil aliado da conspiração de Pharaoh Coffin. Entra em cena como galante dançarino para logo terminar assassinado após se arrepender e revelar a Jonathan Trumbo os planos com vistas à eliminação de Michael Fabian.





Roteiro: Frank Butler, Theodore Strauss, Seton I. Miller (não creditado), com base em história de Boris Ingster. Direção de fotografia (Technicolor): Ray Rennahan. Música: Victor Young, Phil Boutelje. Canções: California, California or bust, I should ‘a stood in Massachusetts, The gold rush, Lily-I-Lay-de-o, Said I to my heart, said I, compostas por Earl Robinson (música) e E. Y. Harburg (letra). Figurinos: Edith Head, Gile Steele. Montagem: Eda Warren. Direção de arte: Roland Anderson, Hans Dreier. Consultores de cor: Robert Brower, Natalie Kalmus. Consultores técnicos: Dr. John Walton Caughey, Princesa Conchita Pignatelli. Assistente de direção: Herbert Coleman. Decoração: Sam Comer, Ray Moyer. Gravação de som: Stanley Cooley, John Cope. Efeitos fotográficos especiais: Gordon Jennings. Arranjos vocais: Ken Lane. Maquiagem: Wally Westmore, Charles Gemora (não creditado). Direção de segunda unidade (não creditada): Joe Keller, Roy Kreuger. Segundos assistentes de direção (não creditados): Michael D. Moore, James A. Rosenberger. Mixagem de som: Philip Wisdom (não creditado). Assistente de efeitos fotográficos especiais para tomadas com miniatures: Devereaux Jennings (não creditado). Assistente de efeitos óticos especiais: Paul K. Lerpae (não creditado). Dublê: Richard Farnsworth (não creditado). Segundo operador de câmera: Archie R. Dalzell (não creditado). Guarda-roupa: John A. Anderson (não creditado). Supervisão de montagem: Eda Warren. Arranjos vocais: Ken Lane. Compositores do acervo musical (não creditados): Charles Bradshaw, Gerard Carbonara. Orquestração (não creditada): Sidney Cutner, George Parrish, Leo Shuken. Associado à direção de Technicolor: Robert Brower. Direção de Technicolor: Natalie Kalmus. Consultoria técnica (não creditada): John Walton Caughey, Princess Conchita Pignatelli. Coordenação de produção: Gerd Oswald (não creditado). Direção de pesquisa: Gladys Percey (não creditada). Assistente de pesquisa: Elvira Smith (não creditada). Pesquisa de locações e auxiliar de produção: Joseph C. Youngerman (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 97 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1977)



[1] Premiado com o parceiro Ernest Haller.
[2] Premiado com o parceiro Ernest Palmer.