domingo, 24 de junho de 2018

MARIO CAMUS EXPÕE A CASA DE BERNARDA E LORCA

A peça La casa de Bernarda Alba — obra derradeira de Federico García Lorca — foi concluída pouco antes do assassinato do autor, fuzilado por milícia fascista no período inicial da sangrenta guerra civil que cindiu a Espanha de 1936 a 1939. É texto fundamental da literatura, não apenas de seu país. Lê-lo significa se impregnar com palavras e gestos que jamais desocuparão a memória. Apesar do reduzido espaço proporcionado à movimentação dos personagens, não deve ser fácil adaptá-lo às telas. Ao que se sabe, fizeram-no os mexicanos Julio Castillo e Gustavo Allatriste, respectivamente em 1974 e 1982. Em 1991 houve uma coprodução entre britânicos e estadunidenses sob direção de Stuart Burge e Núria Espert. Nesse mesmo ano, na Índia, veio à luz Rukmavati Ki Haveli por conta de Govind Nihlani. As dificuldades, decerto, decorrem tanto da ambientação fechada — favorável ao teatro filmado — como das exigências de dar vida não somente aos personagens, mas ao espaço físico. A casa é testemunho vivo das ações e anseios de Bernarda, filhas e criadas. As dependências internas e externas respiram intensamente. Em 1992, com muitas reservas, fui apresentado à produção espanhola dirigida por Mario Camus: A casa de Bernarda Alba (La casa de Bernarda Alba, 1987). Fiquei sinceramente maravilhado. A “Espanha profunda” — estrutura moldada pelos rigores da moral católica medieval e legitimadora dos mores do patriarcado rural da Andaluzia natal de Lorca — teve tradução brilhante pelo cineasta. A abordagem, por mais convencional que pareça, soube equilibrar as exigências das interpretações com a pulsação dos ambientes. Irene Gutiérrez Caba está soberba como a tirânica matriarca do título, ciosa controladora dos desejos castrados de cinco filhas adultas trancafiadas por exigências de um luto prolongado. Florinda Chico no papel da impotente governanta Poncia é outra fonte de brilho. O filme é poderosa encenação de uma tragédia com personagens subjugados pelas cruéis exigências de regras e rituais que zombam da fragilidade de desejos e vontades.






A casa de Bernarda Alba

La casa de Bernarda Alba

Direção:
Mario Camus
Produção:
Paraíso Films S. A., Televisión Española (TVE)
Espanha — 1987
Elenco:
Ana Belén, Irene Gutiérrez Caba, Florinda Chico, Victoria “Vicky” Peña, Enriqueta Carballeira, Mercedes Lezcano, Aurora Pastor, Rosario Garcia-Ortega, Pillar Puchol, Ana Maria Ventura, Paula “Borrell” Soldevila, Álvaro Quiroga, Fernanda de Utrera (voz).



Mario Camus na direção de A casa de Bernarda Alba
À direita, a atriz Irene Gutiérrez Caba caracterizada como a personagem do título



A casa de Bernarda Alba, do cineasta espanhol Mario Camus, adapta a peça homônima e derradeiro opus de Federico García Lorca. O texto foi concluído pouco antes do fuzilamento do autor por fascistas em 19 de agosto de 1936, na cidade de Granada. É uma das obras fundamentais da literatura, não apenas de seu país. Expõe com brilho, conhecimento de causa e dinamismo a alma da “Espanha profunda” — moldada e cristalizada pela rígida moral embasada no catolicismo medieval e legitimada pela mentalidade agrária e patriarcal. Essa estrutura sólida e impermeável ganhou o reforço do beato regime reacionário do Generalíssimo Francisco Franco Behamonde, cujas forças venceram a sangrenta Guerra Civil que cindiu o país de 1936 a 1939.


Início dos anos 20: os jovens Salvador Dali e Federico García Lorca

Imagem publicitária: Irene Gutiérrez Caba, sentada, como Bernarda Alba
De pé: Florinda Chico, Enriqueta Carballeira, Ana Belén, Mercedes Lezcano, Victoria "Vicky" Peña e Aurora Pastor nos respectivos papéis de Poncia, Angústias, Adela, Amélia, Martírio e Magdalena


Camus logrou, com rara felicidade e poder de síntese, recriar a atmosfera envolvente, soturna, pesada e de desejos castrados, concebida pelo autor. Preservou, acima de tudo, a essência do original em um filme protagonizado por mulheres, sobre problemas femininos, em uma sociedade organizada pela moral masculina — que toma o gênero oposto e seu espaço de movimentação como bens e símbolos invioláveis. O roteiro adaptado pelo diretor em parceria com Antonio Larreta se concentra na matriarca do título, principalmente pelo aspecto que mais valoriza: a fidelidade das filhas e serviçais às ordenações do núcleo doméstico. Neste espaço valem, sobremaneira, as aparências de sobriedade e contenção. Questões individuais não são relevantes. Devem ser resolvidas na solidão de ambientes restritos, às portas fechadas. Nada pode abalar as prerrogativas dos oito longos anos de luto em honra da memória do marido, pai, patrão e plenipotenciário de algum lugar da Andaluzia, cuja alma é encomendada em solene e exclusivo ofício religioso.


Antes de Mario Camus a peça teve, ao que se sabe, duas adaptações às telas em produções mexicanas: o telefilme La casa de Bernarda Alma (1974), de Julio Castillo, e a realização cinematográfica de igual nome dirigida por Gustavo Allatriste em 1982. Em 1991, também para a TV, produtores britânicos e estadunidenses se associaram em A casa de Bernarda Alba (The house of Bernarda Alba), de Stuart Burge e Núria Espert. No mesmo ano, na Índia, sob a direção de Govind Nihlani, veio à luz Rukmavati Ki Haveli.



Acima e abaixo: Irene Gutiérrez Caba como Bernarda Alba


Bernarda Alba (Caba) é incansável e ciosa defensora da integridade moral do lar que controla com mãos de ferro. Como se fosse a alma de uma estrutura social que não admite mudanças, guarda atentamente a honra das filhas. Paradoxalmente, poucas vezes uma mulher se ergueu com tanta disposição como vigorosa representação do patriarcado. A realização de Camus é uma feliz e contundente radiografia da opressão e de seu implacável alcance por ambientes, corações e mentes. Cinematograficamente, A casa de Bernarda Alba soa como profundo e surdo lamento prolongado em um clima denso, envolvente e fascinante de tragédia compassadamente narrada.


No original, Bernarda tem 60 anos. Controla por completo, com vontade tirânica, atitudes, comportamentos e esperanças de cinco filhas — algumas jovens, outras avançadas na idade: Adela, Angústias, Martírio, Magdalena e Amélia com respectivos 20, 39, 24, 30 e 27 anos — interpretadas por Ana Belén, Enriqueta Carballeira, Victoria “Vicky” Peña, Aurora Pastor e Mercedes Lezcano. Sob o teto também vivem uma criada, a governanta Poncia e Maria Josefa — mãe idosa, viúva, louca e enclausurada da personagem do título. Como sucessora do poder do finado marido, Bernarda revela do quanto é capaz ao reivindicar o manto da tradição para se legitimar. Apóia-se na estrita e dura observação de regras e rituais fúnebres pela família considerada em núcleo e demais extensões. Prescreve, acima de tudo, a segregação de homens das mulheres. Proíbe rigorosamente a exposição de sentimentos, desejos e paixões. Sabe que a comunidade envolvente, deixada convenientemente de fora, mantém vigilância cerrada sobre a casa. Por isso, preocupa-a qualquer mancha na reputação da família em decorrência de escândalos e fuxicos. Ao final, a caçula Adela não suporta o peso de tantas exigências de recato com a consequente castração dos desejos à flor da pele. Desesperada, suicida-se após a descoberta da relação proibida que mantinha com Pepe el Romano (Quiroga) — prometido à primogênita Angústias. O que aconteceu no interior da casa ali deve permanecer. Assim, para todos os efeitos, a matriarca proclama: a mais nova das filhas morreu virgem; por ela “Afundaremos em um mar de luto”.


No filme de Camus, a andaluza Bernarda Alba guarda estrita fidelidade às linhas de Lorca. Encarna o poder e a autoridade do finado marido. Sua figura onipresente e rígida trata de manter as filhas em idade matrimonial sob o tacão da mais severa vigilância quanto aos corpos, figurinos e emoções. O mundo que domina é magistralmente simbolizado logo nas cenas iniciais, durante a longa e extenuante cerimônia religiosa em honra à alma do esposo. Exibem-se os semblantes temerosos e consternados das enlutadas personagens principais no interior ricamente ornado de uma igreja de aldeia. Destaca-se o vulto inabalável e o perfil da zelosa mãe, agora chefe de família. Na posição ocupada durante o culto, Bernarda faz jus ao lugar e papel social que doravante terá e diligentemente honrará. Sua presença altiva, imóvel e silenciosa contamina o ambiente e a todos em volta, indistintamente. O primeiro plano da mão da matriarca, firmemente apoiada na bengala que simboliza o poder no qual foi investido, tudo comunica. A circunspecção da mulher torna mais pesada e hierática a atmosfera. Madalena não resiste ao longo ritual, de mais de duas horas, assistido de pé, e desmaia. É socorrida por Poncia (Chico). Apesar da ligeira perturbação, Bernarda sequer se move ou demonstra alguma comoção.


O marcante plano da mão de Bernarda Alba apoiada na bengala - símbolo da autoridade - durante a cerimônia fúnebre

A governanta Poncia (Florinda Chico)


O grosso da narrativa se desenrola na casa fechada e escura. Após a cerimônia fúnebre, Bernarda se reúne com a prole e parentes próximos. Comunica as regras do prolongado luto. Proíbe às filhas qualquer contato com homens durante o período. Apesar de proscrita, a figura masculina assombra ambientes e personagens — principalmente o emblemático, sempre sugerido e prometido de Angústias: Pepe el Romano, do qual se percebe apenas a silhueta algo distante. Assalta ardentemente o imaginário de todas as irmãs. Sua fantasmagórica presença — inclusive ausência — desencadeia situações prontas a ameaçar a austera rotina do lar. Jovem e aproveitador, Pepe se move nas franjas sombreadas da história. Aproveita a discreta abertura de janelas, o vão das grades e as noites sem luz. É a representação da desordem que refaz a ordem, a resposta aos desejos aprisionados de um restrito grupo feminino constituído por futuros prolongamentos da alma espanhola. Catalisa desejos e vontades de uma rebelião que precisa ser contida custe o que custar. Bernarda percebe as almas frustradas e cativas — prontas a entrar em ebulição — das filhas trancafiadas em longo estágio de reclusão na casa enlutada. Porém, evita qualquer palavra de compreensão e conforto. Apenas se obriga a honrar a tradição. Autoritária, exorta: “As coisas nunca são como desejamos” e “Não posso controlar corações, mas quero harmonia familiar”.


Amélia (Mercedes Lezcano)


O testemunho definitivo sobre o ambiente e os sentimentos represados é a fornecido pela governanta Poncia em diálogo com a criada (Puchol): “São apenas mulheres sem homens, nada mais”. Às filhas resta único consolo: aliviar tensões enquanto prepararam enxovais para matrimônios que, provavelmente, jamais acontecerão. Enquanto vigia e admoesta, a despótica Bernarda encontra motivos de satisfação na imposição sempre repetida das regras que abolem quaisquer vestígios de felicidade e realização. Na observação de fainas, mesas, leitos, conversas e fastios, recompõe, incansável, ordens e valores: “Linhas e agulhas para as fêmeas, chicote e mula para o varão”. Dentro da casa domina o som quase onipresente das máquinas de costura. Do lado de fora vem o eco de galopes e conversas masculinas. Assim é e deve continuar, informa a matriarca. Que o diga a enlouquecida e enclausurada Maria Josefa (Ortega). Incapaz de se controlar, arde em desejos manifestados sem pudor. De certo modo é a vaticinadora do futuro sombrio de todas ali.


A primogênita Angústias (Enriqueta Carballeira) e Bernarda Alba (Irene Gutiérrez Caba)

Adela (Ana Belén)


Uma impostação teatral domina a encenação. Porém, A casa de Bernarda Alba está longe de ser teatro filmado. Apenas encontrou no modelo de representação dos palcos a ênfase necessária para acentuar gestos e falas. Dessa forma, Mario Camus também deu vida ao cenário. O espaço físico da casa exala tensão, contenção, repressão, carências e assombros por escadas, móveis, cômodos e áreas externas. A “Espanha profunda” impregna seres, locais e coisas. São como entidades que ganham vida pela atuação de um elenco precisamente afinado. As interpretações de Irene Gutiérrez Caba e Florinda Chico são irrepreensíveis. A primeira foi indicada ao Goya de Melhor Atriz em 1988, graças à encarnação rigorosa e cheia de fúria de Bernarda Alba. Valorosa também é seu oposto, a impotente governanta Poncia vivida pela propositalmente contida Chico. Em seu papel subalterno, pode apenas testemunhar o drama familiar aguçado até o desencadeamento da trágica morte de Adela. Compreende motivações e dramas. Porém, nada pode fazer para aliviar a situação. É sempre posta em seu devido lugar social pela matriarca. A casa de Bernarda Alba também é a dura exposição da cruel situação de servidão à qual estão lançadas as classes subalternas. A matriarca se vale das posses para subjugar e se mostrar superior. Por isso, o luto ciosamente guardado é uma oportunidade de reafirmação da posição ascendente de Bernarda sobre vizinhos e aldeões considerados indignos e segregados além dos portões convenientemente trancados.


Ana Belén como Adela

  
A direção de fotografia de Fernando Arribas é funcional no sentido de evocar e ressaltar os aspectos dramáticos sugeridos por Lorca. O mesmo pode ser dito dos figurinos concebidos por Pepe Rubio, outro indicado ao Goya, e da premiada cenografia despojada de Rafael Palmero. A direção de Mario Camus parece prisioneira do academicismo. Porém — diante dos desafios enfrentados —, saiu-se muito bem — ainda mais com a opção de valorizar precipuamente a contribuição do elenco. O esforço de Camus foi parcialmente reconhecido no Festival Internacional do Filme de Moscou, em 1987, quando mereceu indicação ao Prêmio Dourado.






Assistentes de direção: Walter Prieto, Mischa Müller. Adaptação e roteiro: Mario Camus, Antonio Larreta, a partir da peça homônima de Federico García Lorca. Som direto: Bernardo Menz. Diretor de produção: Ricardo García Arrojo. Figurinos e vestuários: Pepe Rubio. Montagem: José María Biurrún. Direção de arte: Rafael Palmero. Continuidade: Marisa Ibarra. Operador de câmera: Manuel Velasco. Direção de fotografia (cores): Fernando Arribas. Fotografia de cena: José Salvador. Administração da equipe: Pedro Gracia. Gerente de construções: Ramón Moya. Maquetes: Julián Martín. Técnico de som: Eduardo Fernández. Efeitos de sala: Luis Castro. Maquiagem: Juan Pedro Hernández. Penteados: Esther Martín. Microfones: Julio B. Recuero. Efeitos especiais: Pedro Balandín, Reyes Abades. Companhia de guarda-roupa: Peris Hermanos. Produção executiva: Jaime Borrell, José Miguel Juárez, Antonio Oliver. Segunda assistência de montagem: Manuela Camus. Primeira assistência de montagem: Julia Salvador. Assistentes de maquiagem: Álvaro Gutiérrez, Jorge Hernández Lobo. Assistência da gerência de produção: Jaime Cortezo. Assistência da contrarregra: Agustín Alcázar, Juan Jesús Escudero, José Moreno. Planejamento gráfico: Juan de la Flor, Ángel Uriarte. Contrarregra: Antonio Mateos, Jesús Mateos. Gravação de som: Antonio Illán. Eletricistas: Rafael Castro, Francisco Duran, Ángel Granell, Eugenio Martínez. Eletricista-chefe: Rafael García Martos. Assistência de câmera: Ángel Gómez, Fernando Perrote, José Luis Pérez, Valero. Corte e costura: Manuela Iglesias. Assistente de figurinista: Verónica Toledo. Consultoria musical: Ángel Alvarez. Motoristas: Jesús Gil, Pascual Ibáñez, Valentín Sánchez. Jardins: Fausto Alonso. Tapeçaria: Emilio Ardura. Controladoria da produção: José A. de Andrés G. de Barreda. Armeiro: Juan Maján. Assistente da produção: Susana Prieto. Fornecimento de câmeras e equipamentos correlatos: Cámara Rent. Companhias de arte e decoração: Decor-Moya, Mateos. Estúdios de filmagem: Estudios Delta. Estúdio de pós-produção sonora: Estudios Exa. Equipamentos de câmera e iluminação: Gecisa. Companhia de seguros: Legiscine. Tempo de exibição: 107 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1992)